18.10.11

Vamos fazer de conta que a realidade existe

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O coro dos indignados do Prós e Contras de ontem incluía um sacerdote, muito chocado com os horrorosos défices gerados pela saúde e pela educação.

É claro que ele nunca gastou dois minutos a olhar para o orçamento geral do estado, mas, como é padre numa frequesia rica, as suas paroquianas informaram-no de que as suas mulheres-a-dias têm iPhones, os eletricistas ou polícias seus maridos compraram um Alfa Romeo a prestações, os filhos foram estudar para Oxford e elas só comentam os cruzeiros que fazem no Mediterrâneo. Ainda por cima, têm educação e saúde à borla. Um horror.

Ora vamos lá fazer uma pausa na excitação para considerar um facto elementar: 80% do acréscimo do défice desde que se iniciou a crise resultou diretamente da queda das receitas dos impostos, por sua vez provocada pela quebra da atividade económica.

Quer isto dizer que o brusco salto de mais de vinte pontos percentuais do endividamento total em proporção do produto nada tem a ver com a insustentabilidade do estado social, o envelhecimento da população, o rendimento social garantido e outras malfeitorias do género. Pense-se o que se pensar sobre matérias de política social, não é sério sustentar-se que é nela que radica a origem das nossas presentes aflições.

É ao contrário: a crise financeira com origem nos EUA alastrou a todo o mundo, provocou uma colossal retração económica, levou ao fecho de empresas e ao disparo do desemprego, contraíu o comércio mundial, quebrou a procura interna, baixou as receitas fiscais, contaminou os estados e fez pular o endividamento público. Em resultado, os estados têm agora dificuldade em financiar as suas despesas sociais.

Percebeu, senhor padre? Reze duas avés-marias e três padres-nossos, que a gente perdoa-lhe.
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2 comentários:

Anónimo disse...

20 valores.
O menino está que não se pode.
Brilhante e acutilante.

Aquele abraço ...

António Parente disse...

Mais umas informações para o senhor padre:

1) Leia o relatório do Tribunal de Contas sobre a conta geral do estado de c2009, está lá tudo explicado;

2) Perceba que o anterior governo não compensou a quebra da receita fiscal com a recdução da despesa, antes pelo contrário;

3) Em 2009, ano eleitoral, o nosso governo viu-se confrontado com a quebra das receitas fiscais e com o aumento brusco das prestações sociais mas aumentou os saláriso dos funcionáriso públicos em 2.9% (deu mais ou menos mil milhões de euros) e investiu 2,5 mil milhões de euros (os entendidos chama a isto "kainesianismo") sem que isso tivesse impacto duradouro no emprego, para além de não controlar outros défices avulsos;

4) Em 2010, o nosso governo viu-se confrontado com o problema do financiamento do kainesianismo: tinha um défice, queria financiá-lo e pediam-lhe juros cada vez mais altos (vamos pagar 8 mil milhões de juros por ano, senhor padre);

5) Para não alongar: Portugal perdeu todo o financiamento externo, essencial para uma política kainesianista mas também para coisas elementares como pagamento de despesas correntes.

José Sócrates teve culpa? Na minha opinião, não. Tal como a maioria de nós (parece que só Medina Carreira, Vitor Bento, Manuela Ferreira Leite e uns comentadores avulsos viram mais longe) engoliu aquela coisa de estarmos no euro e termos o mesmo risco de crédito da Alemanha (esquecemo-nos todos dos spreads), foi mal aconselhado dado que se rodeou de optimistas e faltou-lhe um pessimista como Medina Carreira que o fizesse pensar duas vezes sobre as opções político-económicas que tinha de tomar. Mais tarde até percebeu, quis arrepiar caminho mas a sua imagem estava de tal modo desgastada que não tinha condições políticas para prosseguir.

Espero que estas explicações de um humilde cristão tenham complementado as doutas opiniões do nosso anfitrião (uma das mentes mais brilhantes da blogosfera portuguesa - posso elogiá-lo porque ele não me deu, não dá nem dará emprego, não o conheço pessoalmente embora o tivesse observado discretamente na livraria almediana numa conferência sobre blogues, nem tenho afinidades político-ideológico-religiosas com o Professor).

Já agora, não vou à confissãozinha há muito tempo. Falha minha que penso comaltar nos próximos meses.

Um abraço