6.4.13

A defensiva estratégica na resistência à troika



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Quando Aníbal invadiu a península itálica e impôs uma série de derrotas humilhantes às legiões romanas, Fabius Maximus foi designado ditador com poderes ilimitados para assegurar a salvação da pátria.

Mas Fabius optou pela estratégia impopular de evitar o confronto directo com o inimigo, preferindo segui-lo à distância, dificultar-lhe os abastecimentos e as comunicações e atacá-lo apenas em pequenos recontros de cada vez que uma parte das suas forças se deixava isolar. Isso valeu-lhe a alcunha de “Cuntactor” (contemporizador) e motivou não poucos conflitos com oficiais que, embora nominalmente sob as ordens, optaram, sempre com resultados trágicos (mormente na batalha de Canas), por desobedecer-lhe.

No final, porém, a estratégia de defesa activa de Fabius acabou por obrigar o enfraquecido e desmoralizado exército de Aníbal a retirar para o Norte de África.

Uns dois mil anos depois, os generais Barclay de Tolly, primeiro, e Kutuzov, depois, repetiram com êxito o estratagema de Fabius perante o exército napoleónico que, no Verão de 1812, atravessou o rio Nieman e avançou sobre Moscovo. Aplicando uma política de terra queimada, o exército russo recuou continuamente à frente de Napoleão, frustrado por não lograr uma batalha decisiva e obrigado a caminhar por um território deserto abandonado pelas populações, tornando muito difícil o dia a dia dos seus 285 mil homens.

Quando a Grande Armée se encontrava já consideravelmente enfraquecida, Kutuzov aceitou travar batalha em Borodino. Após um resultado inconclusivo, o exército russo continuou a retirar, abandonando inclusive Moscovo ao invasor. O caos que se seguiu obrigou à retirada precipitada de Napoleão em pleno Inverno, sendo o seu exército metodicamente dizimado e perseguido até Paris.

Já no século XX, Mao teorizou os princípios da defensiva estratégica nos seus escritos militares. Tanto na guerra contra o Kuomintang como, poucos anos depois, na guerra contra a invasão japonesa, foi forçado a reconhecer que a fragilidade dos seus efectivos, a insuficiência do seu equipamento e a vulnerabilidade da sua posição o impediam de bater-se frontalmente contra o inimigo. Nessas condições, inspirou-se em Sun Tzu para caracterizar a estratégia mais indicada: “O inimigo ataca, nós recuamos; o inimigo pára, nós flagelamo-lo; o inimigo cansa-se, nós atacamos; o inimigo cansa-se, nós perseguimo-lo.”

Portugal encontra-se numa situação de grande fragilidade política e financeira perante os seus principais parceiros internacionais. Aderiu ingenuamente a uma zona monetária mal concebida que, em vez de o proteger perante as tempestades internacionais, o condena a ainda maiores penas. Não estava nem está ainda em condições de recusar liminarmente as condições do resgate que foi forçado a pedir em 2011. Nenhum dos seus mais importantes parceiros europeus está disponível para defender uma solução diferente. A narrativa moralista e punitiva da Alemanha é todos os dias imposta sem contraditório. Extravasando as suas competências, o BCE permite-se ditar opções políticas aos países membros. Os países em dificuldades têm relutância em assumir posições comuns. Finalmente, a opinião pública europeia permanece em larga medida alheada destes problemas, em parte por sentir que a sua voz não conta.

Manifestamente, Portugal não dispõe de grandes trunfos neste confronto com forças incomparavelmente mais poderosas. Significará isto que não há nada a fazer?

Sustento que a alternativa é entre a capitulação e a resistência. A teoria e a prática da capitulação é ilustrada na perfeição pelo comportamento do governo português nos últimos dois anos. A total identidade de pontos de vista entre Vítor Gaspar e a troika assegura que a receita definida em conjunto pela UE, pelo BCE e pelo FMI é aqui aplicada na sua versão mais extrema. “Ir além da troika” significa, na prática, que as condições impostas a Portugal são mais graves do que as aplicadas à Grécia, à Irlanda, à Espanha, à Itália ou a Chipre. Não pode haver negociação pela simples razão de que o ministro das finanças português partilha por inteiro as concepções da troika.

Poderia ser diferente? Note-se, primeiro, que, com excepção de Portugal, nenhum – repito: nenhum – dos países sob assistência fez tudo aquilo que a troika lhe mandou fazer. A Irlanda, por exemplo, frequentemente apresentada como um caso exemplar, não só não procedeu à privatização do seu sector eléctrico, como nem sequer separou a produção da distribuição – medidas explicitamente exigidas no respectivo memorando de entendimento.

Depois, os governos desses países não se coíbem de criticar publicamente a concepção dos programas implantados pela troika e de exigir melhores condições. Inversamente, Gaspar critica em voz alta como irrealistas as iniciativas da Irlanda que poderiam também beneficiar-nos a nós.

Finalmente, tanto a Espanha como a Itália se uniram internamente para impedir a declaração oficial de um resgate, camuflando-o sob vestes que, sendo em parte formais, não deixam de ser menos humilhantes e atentatórias dos direitos dos seus povos.

Em resumo, apesar das condições de debilidade prevalecentes, é possível fazer-se muito mais e melhor – desde que se queira.

Por outro lado, Portugal tem algumas cartas que pode e deve jogar. Sendo membro do Conselho de Segurança da ONU, o seu voto tem relevância para a UE; porém, no caso da admissão da Palestina na UNESCO, o país submeteu-se prontamente à vontade dos alemães sem obter nada em troco. Algo semelhante se passa na NATO: apesar de traído pelos seus aliados, Portugal continua a despender recursos escassos com a sua presença militar no Afeganistão e na Bósnia, quando poderia legitimamente retirar-se invocando as dificuldades financeiras criadas pela teimosia da troika. Chama-se a isto fazer política internacional, algo que Paulo Portas deve achar muito cansativo.

Apesar de a situação permanecer desfavorável, é indiscutível que tendeu a melhorar no último ano, principalmente porque a política de austeridade favorecida pela Alemanha e pelo Partido Popular Europeu se encontra cada vez mais descredibilizada, dado que não só a saída da crise foi adiada, como a UE voltou a entrar em recessão a partir de meados de 2012.

Cada vez mais vozes autorizadas – incluindo as de Olivier Blanchard e Paul de Grawe – criticam a punição sem sentido a que Portugal está a ser submetido e demonstram que, se não ocorrerem modificações de fundo na atitude da UE, a estagnação e o desemprego não têm fim à vista. Além disso, aumentando os riscos de catástrofe em grandes economias europeias e de contágio a cada vez mais países, incluindo alguns do centro, até Christine Lagarde, Durão Barroso e Mario Draghi procuram distanciar-se de Angela Merkel.

Por outras palavras, a causa da troika perde adeptos na mesma medida em que a nossa ganha apoios. Pode-se legitimamente esperar que o tempo jogue a nosso favor.

Entretanto, a estratégia adequada à nossa presente circunstância continua a ser a defensiva estratégica, ou seja: recuar quando o inimigo avança; conspirar quando se detém; moer-lhe o juízo quando procura descansar; desacreditá-lo quando comete erros ridículos; persegui-lo quando se mostra desorientado; exigir a renegociação quando se torna evidente para todos que não sabe o que anda a fazer. Um dia, com muita persistência, chegará finalmente a hora de passar à ofensiva estratégica.

Tudo isto exige, porém, como condição prévia, um povo unido em torno de uma ideia do que tem direito a exigir, a começar pelo respeito pela sua vontade livremente expressa através do voto.

Fim da segunda lição sobre como fazer face à troika.
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