O nosso João nasceu em 8 de Agosto de 1950, no Porto, cidade que sempre fez parte da sua identidade.
No dia em que nasceu, o seu pai, o Engenheiro Francisco Almeida e Castro, Presidente da CP, homem pelo qual sempre nutriu a mais profunda admiração e respeito, estava nos Estados Unidos, num comboio a caminho de Chicago, preso durante dias numa tempestade de neve, viagem essa que resultou na introdução em Portugal da primeira locomotiva diesel.
Era ainda criança quando a família se mudou para Lisboa, cidade que amou profundamente, e onde cresceu e viveu quase toda a sua vida.
O Zinho, como a família sempre o chamou, corria e brincava na zona da Av. Roma e frequentou o Liceu Camões onde foi um aluno exemplar.
Enquanto jovem revelou ter um assinalável jeito para o desenho e um sentido estético apurado que facilmente poderia tê-lo levado a ter se tornado num grande artista plástico, facto facilmente comprovável pelos seus inúmeros desenhos e pequenas pinturas que há poucos anos reencontrei, arrumados numa velha caixa.
Educado em piano clássico por uma querida professora que mais tarde veio ser também minha e da minha irmã, a música sempre teve uma importância enorme para ele. Na nossa casa a música inundava constantemente o espaço, paixão visível pela forma como coleccionava LP’s, como se fossem a banda sonora da nossa felicidade.
Foi já na Faculdade de Economia que conheceu a senhora minha mãe, mulher carinhosa e de forte carácter, que desde o primeiro momento amou de forma sempre leal e honesta. Juntos partilharam as alegrias e dificuldades da vida, próprias de um jovem casal.
Enquanto estudantes, envolveram-se activamente na luta política contra o regime fascista, da qual não faltam histórias absolutamente fantásticas algumas que ele próprio nos contou e outras que ainda vou descobrindo nos relatos de alguns dos seus bons amigos.
Várias vezes teve a grandeza de agir de forma contra-intuitiva, em nome da liberdade de pensamento que sempre defendeu com unhas e dentes.
3 anos após a revolução, teve o seu primeiro filho, eu, e passados 3 anos teve uma filha, a menina dos seus olhos, a minha irmã Inês.
Connosco sempre tratou de forma carinhosa, sempre um bom pai, sempre nos deu todas as oportunidades.
O seu percurso profissional levou-o ao Marketing e à Publicidade, passando pela Direcção de Marketing de grandes empresas internacionais como a Ogilvy e a Wunderman e culminando na criação de uma Agência de sucesso, a Interact e mais recentemente na Ology, onde tive a enorme sorte de trabalhar a seu lado.
Guardo com muito carinho e saudade estes últimos 3 anos que passámos juntos, diariamente, e em que tanto me ensinou. Feliz circunstância essa em que, no auge da crise, perdi o meu emprego em Londres, o que me trouxe de volta a Portugal, de volta ao meu Pai e à senhora minha Mãe. Feliz circunstância essa que me permitiu este período em que reaprendi a estar com eles, a valorizá-los mais e a encontrá-los, em mim.
Possuidor de uma cultura absolutamente enciclopédica, que toda a vida alimentou consumido livros, música e cinema a uma velocidade estonteante, o João tornou-se conhecido na sua vida profissional pela verticalidade de princípios, pelo imenso respeito pelos outros, pelo seu altruísmo militante e pelo compromisso absoluto de continuamente se superar enquanto homem.
Era um homem pacifico, mas nunca conformado, sempre exigente com a vida e com os outros na mesma proporção em que era exigente consigo próprio.
De entre as suas excepcionais qualidades sempre me impressionou a sua capacidade de sintetizar assuntos complicadíssimos, de resolver a complexidade sem qualquer esforço aparente. Como um artista que resolve tudo com um só gesto.
Sempre cuidado na sua presença, sempre ponderado nas suas palavras, o João era um verdadeiro alquimista no uso da palavra.
Apreciava o discurso da mesma forma que sabia apreciar o silêncio.
Sabia ouvir os outros, era tolerante, e aceitava a diferença como ninguém.
Não se impunha, entendia e respeitava o espaço de cada um.
Era um grande conversador, um verdadeiro contador de histórias.
Vamos ter muitas saudades de o ouvir e de o ler.
Da sua voz e da alegria que disponibilizava em tudo o que fazia.
Era um homem que amava ensinar e que se envolvia como um pai no percurso dos muitos alunos que tiveram a sorte de o ter como professor. Sei agora como essa forma de se relacionar com os alunos era apreciada e por isso reciproca.
O João era um homem que nunca se demitiu das suas responsabilidades.
Há uns dias, pedi-lhe que delegasse em mim os compromissos profissionais que o apoquentavam. E ele disse: “ Não filho, em Julho, quando eu estiver melhor, eu próprio tratarei dos assuntos pendentes e de ver os trabalhos dos meus alunos.”
Na fase final da sua doença, é assinalável o enorme prazer que retirava das visitas dos seus amigos. As conversas com os amigos pareciam um remédio milagroso, e não fora o cansaço físico dir-se ia que estava encontrada a cura que o traria de volta.
Faltam-me as palavras para descrever a forma incrível como se manteve lúcido até aos últimos dias em que a vida o traiu. Impressionou-nos a forma como nunca se queixou da sua má sorte. Como manteve sempre a sua elevação e o seu acutilante sentido de humor.
No meu aniversário, no passado dia 5 de Junho, ele estava, fraco, deitado numa cama de hospital, e eu aproximei-me dele e disse-lhe:
“Parabéns querido pai, faz hoje 36 anos que me tiveste. Lindo serviço!”
Ao que ele me respondeu na sua doce e já algo debilitada voz:
“Sabes André, foi o que se pôde arranjar.”
O nosso João nunca desistiu de viver. Caiu de pé como todos os grandes homens.
Defendeu as muralhas da cidade como ninguém, lutando como um herói, pronto a dar tudo pela sua família, pelos seus amigos e por tudo aquilo em que acreditava.
Nunca falou da morte talvez por não acreditar nela.
Nunca mostrou uma pinga de medo.
E isso é para mim a verdadeira imortalidade.
Da enorme tristeza de o ver partir, sobra-nos o alivio que sentimos de saber do fim do seu sofrimento e resta-nos a eterna saudade.
É hoje nossa obrigação manter a sua memória viva aprendendo com ele a viver a vida até ao último momento, sempre com a máxima dignidade e amor pelo próximo.
Esta é a carta que nunca te escrevi.
Até já querido amigo,
André Castro
2 comentários:
Gostei imenso de ler a sua carta.
Parabéns André. O seu comovente texto é o maior testemunho dos principios, valores e enorme sensibilidade que o seu pai concerteza lhe deixou. Os grandes homens deixam fortes marcas e essa marca vive também em si.
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