31.7.03

Para onde foi toda a gente? Um estrangeiro que desembarque ao fim de semana em Lisboa não pode deixar de interrogar-se, ao contemplar as praças e ruas vazias, onde estarão os indígenas.

Estão, como os insiders bem sabem, nos centros comerciais que se espalham um pouco por toda a área metropolitana.

A realidade essencial da cidade é a circulação. Como, a dada altura, a circulação ficou emperrada por uma urbanização que insiste em conservar as velhas azinhagas e preencher os estreitos espaços vazios entre elas com densa construção em altura, alguém decidiu começar a lançar por toda a parte viadutos e a escavar túneis que permitem aos automóveis ignorar a complexidade da malha citadina passando por cima ou por baixo dela.

O meu exemplo preferido é a impropriamente chamada Praça de Sete Rios. A praça propriamente dita desapareceu nas últimas décadas por baixo de uma emaranhado de vias rápidas, cujo desenho ganharia facilmente o prémio Nobel da estupidez, se acaso ele existisse. Cá em baixo, ao nível do solo, só ficaram parques de estacionamento e mendigos que dormem debaixo da ponte. Lá em cima, nos apartamentos de luxo que rodeiam a praça, os residentes beneficiam de uma deliciosa vista sobre uma das espantosas encruzilhadas rodoviárias do mundo ocidental.

Onde estão os poetas do meu país, que não cantam estas maravilhas?

Então, hoje, a gente tem de percorrer longas distâncias, não só para ir para o trabalho, mas também para almoçar, para ir ao cinema, para fazer compras, para passear, em suma. Isto, é claro, desde que tenha carro, caso contrário encontrar-se-á completamente excluido da cidade. Conheço inclusivamente sítios onde, para percorrer uma escassa centena de metros, seja de carro, seja a pé, as barreiras arquitectónicas nos obrigam a andar um quilómetro para chegar ao destino.

Não podemos encontrar-nos uns com os outros nas praças, porque elas quase desapareceram, de modo que só restam o centro comercial e a estação de serviço. Todos os serviços tendem então a concentrar-se aí, pela simples razão de ser lá que estão os consumidores. Depois, como os terrenos no centro da cidade são caros, os centros comerciais deslocam-se para as periferias, levando as pessoas atrás de si, de modo que, por virtude das auto-estradas, a cidade converte-se numa federação de aldeias.

Não se diga que isto é inevitável. Tanto não é que, ao menos sob esta forma extrema, este modelo urbano é raríssimo na Europa. Para procurar uma coisa de facto semelhante a esta nova Lisboa saloia do princípio do século, temos que olhar bem para lá do oceano, para Los Angeles. Quem terá tido uma ideia tão estranha?

29.7.03

A estranha superstição das reformas. Ao contrário do que muita gente julga, a fúria reformista é uma característica típica dos países subdesenvolvidos, onde todos os anos alguém descobre a pólvora e promete a regeneração nacional. É por isso que não há reformas estruturais na Suíça ou nos EUA, mas sim na Argentina, na Turquia ou no Bangladesh.

Quando não se tem a mínima ideia do que se deve fazer em concreto, foge-se ao assunto anunciando uma reforma estrutural. Curiosamente, as grandes reformas estruturais – reforma agrária, reforma da administração pública, reforma tributária, reforma da educação, reforma da saúde, reforma da justiça, etc. - são continuamente invocadas durante décadas a fio sem que nada aconteça.

As reformas estruturais falham, está claro, porque mexem com muitos interesses. Quando se proclama com grandes fanfarras que vão ser postas em marcha, o que se consegue é alertar todos os seus opositores para a necessidade de se unirem contra ela. Nenhum caso ilustra este perigo melhor do que a coligação de lóbis da saúde que, em tempos, se formou contra Leonor Beleza.

Uma reforma estrutural é uma revolução, e falha exactamente pelas mesmas razões: voluntarismo a mais e ideias sólidas a menos. O único resultado prático é muita agitação e poucas transformações reais. Entradas de leão, saídas de sendeiro.

As verdadeiras reformas não se fazem de uma assentada: vão-se fazendo, persistentemente, no dia a dia, sem nunca perder de vista o propósito ambicioso que está na sua origem. É isso, aliás, o que a palavra reformismo quer dizer.

A única vez em que se sentiu uma evolução real da máquina fiscal portuguesa foi quando Miguel Cadilhe se encontrava à frente do Ministério das Finanças, apesar de, ao contrário de Leonor Beleza, ele não ter anunciado antecipadamente um combate épico contra as forças do mal.

A crença ingénua no poder mágico das leis-quadro, leis de bases, protocolos e quejandos é uma superstição de que padecem países de mentalidade jurídica estreita como o nosso.

Em Portugal fazem-se reformas a mais, e não a menos. A Constituição, por exemplo, está sempre em obras, e não há maneira de lhes vermos o fim. Mal acaba uma revisão constitucional, anuncia-se logo a próxima. Encontramo-nos em estado de revisão constitucional permanente, de forma que, daí para baixo, é todo o edifício jurídico que se encontra em contínua convulsão, com os resultados conhecidos.

Deitar abaixo e fazer de novo pode ser um modo de vida interessante, mas não é certamente eficaz.
Que se está a passar? Engraçado como, num país de indignação fácil, ninguém comenta o discurso de Alberto João Jardim do último fim de semana. Curioso, também, que o secretário geral do seu partido não seja confrontado com essas mesmas declarações por um desses jornalistas diligentes que, aparentemente, adoram atrapalhar os políticos.

E esta indiferença ocorre precisamente no momento em que parece estar em curso um processo de madeirização do PSD, bem visível, pelo menos, no comportamento do seu grupo parlamentar na Assembleia da República.

28.7.03

Maciço ou massivo? Desculpem-me o pedantismo, mas estou farto de ouvir dizer e de ver escrever «armas de destruição maciça», inclusivamente a professores de literatura como o Eduardo Lourenço. Como parece que vai ser mais fácil descobrir as ditas do que corrigir a gramática, não me contive e decidi-me a escrever esta nota.

Maciço significa compacto e é o contrário de oco. Massivo diz-se de algo que envolve muita gente, uma massa de pessoas.

Curiosamente, a palavra «massivo» não vem nem no Torrinha nem no Lello Escolar, e o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora atreve-se a afirmar que «maciço» e «massivo» são equivalentes.

Até agora, apenas o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa se esforçou por desfazer estas confusões, cuja origem não consigo entender.

Haverá alguma esperança de pôr termo a este espectáculo de ignorância gramatical massiva?

25.7.03

Hobsbawm sobre a América. Leiam no blogue do Ivan Nunes o magnífico texto do Hobsbawm sobre a América.

24.7.03

Tomar a sério? O artigo hoje publicado por Pacheco Pereira no Público admite duas interpretações absolutamente opostas, tanto no plano político como no plano ético.

A primeira leitura, literal e pouco inteligente, consiste em tomar à letra o que está escrito. PP pensaria de facto que Ferro tem a estrita obrigação de precisar com o maior detalhe as suas acusações sobre a tentativa de «decapitação do PS».

Este ponto de vista é difícil de aceitar. Corresponde a afirmar que uma vítima de perseguição caluniosa tem a obrigação de afrontar de peito aberto os poderes fácticos que secretamente o atacam. Numa palavra, tem de expor-se ainda mais e de facilitar-lhes os seus ataques.

Ora, quando alguém é vítima de ataques cobardes de gente que não ousa dizer o seu nome, frequentemente sabe mais, muito mais, do que está em condições de provar. Whodunnit? O próprio, se não for completamente estúpido, é capaz de, mediante o tradicional método de conjecturar quem tem simultaneamente a motivação, a ocasião e a arma do crime, identificar com razoável precisão a origem da calúnia.

Logo, tomado à letra, o texto de PP assemelha-se muito a uma provocação de inspiração policial destinada a atrair a vítima à armadilha. Como nada do que PP tem dito e feito permite supor que seja capaz de tal baixeza, esta interpretação deve ser posta de lado.

Resta então compreender o texto de PP como uma forma ardilosa de insinuar ele próprio aquilo que Ferro, pela razões atrás aduzidas, não está em condições de afirmar. Possivelmente, PP terá entendido com quem o seu partido anda metido e, muito legitimamente, não quer ser confundido nem com essa gente nem com os seus métodos.

Mas, é claro, isto é apenas uma interpretação...
O que é uma Wunderkammer? No século XVII, as pessoas foram tomadas de uma estranha mania de coleccionar objectos raros, exóticos ou simplesmente curiosos que colocavam num quarto (Wunderkammer) especialmente arranjado para o efeito. O ponto de partida parece ter sido a recolha de objectos trazidos de países exóticos, tais como dentes de mamute, borboletas ou armas primitivas, mas também livros, objectos de culto ou peças de vestuário.

O fascínio pelo desconhecido, tanto na esfera da natureza como na da humanidade, tão típico da época, foi, sem dúvida, uma das motivações centrais do movimento.

Estas colecções privadas deram origem, quando os seus proprietários tinham meios para isso, a autênticos museus de arte, de ciência e tecnologia ou de objectos quotidianos, muitos dos quais chegaram até aos nossos dias.

A recolha e sistematização de conhecimentos e saberes, uma decorrência quase natural dos «gabinetes de curiosidades», conduziu, por sua vez, ao renascimento do espírito enciclopédico e ao aparecimento dos jornais científicos e culturais que punham em contacto todos os grande espíritos europeus.

Leibniz, uma das maiores figuras da época e uma pessoa de uma curiosidade absolutamente inesgotável, concebeu o projecto de uma enciclopédia universal que, bem vistas as coisas, antecipou em trezentos anos a world wide web. À falta de computadores e internet, correspondeu-se intensamente por carta com centenas de cientistas, matemáticos, políticos, engenheiros, historiadores, juristas, filósofos, etc.

Os seus blogues produziram, entre outras coisas, a máquina de calcular, o cálculo diferencial e a lógica moderna.

23.7.03

A verdade sobre os «neo-conservadores». É altura de começarmos a perceber o que está a passar-se no mundo.

Com o 11 de Setembro, o povo americano ficou em estado de choque, uma reacção compreensível em qualquer circunstância, mas ainda mais num país que, desde a independência, nunca fora atacado no seu próprio território. À luz do que se sabia então (e do que se sabe hoje) o ataque contra o Afeganistão foi inteiramente justificado.

A partir de então, porém, o mundo foi surpreendido com a retórica agressiva do presidente Bush e de parte da sua entourage. «Eixo do mal», «quem não está por nós está contra nós», «guerra global contra o terrorismo», «estados pária» - lembram-se?

Sabe-se hoje que o ataque ao Iraque foi proposto por Rumsfeld, Cheney e Wolfowitz logo no dia a seguir ao 11 de Setembro. Essa pequena mas influente clique, habitualmente denominada de «neo-conservadora», aproveitou-se do estado de espírito da opinião pública e da hesitação das outras facções políticas, tanto republicanas como conservadoras e, efectivamente, tomou as rédeas do poder.

Ora o caso é que esses neo-conservadores não têm nada de conservador. O conservadorismo assenta em pontos de vista muito respeitáveis, seja qual for a nossa simpatia pessoal por eles. Os conservadores sublinham que as instituições sociais que estão na base da civilização custam muito a edificar e pouco a destruir, pelo que deveríamos pensar muitas vezes antes de nos pormos a fazer experiências de engenharia social. Assim, mesmo quando reconhecem a existência de injustiças, os conservadores apelam à moderação dos instintos reformadores com o argumento de que pode ser pior a emenda que o soneto. E invocam em defesa do seu argumento os múltiplos exemplos de activismo político-social que mais não fizeram do que provocar o caos e o retrocesso civilizacional.

Isto não tem a nada a ver com as ideias dos tais neo-conservadores, cujo programa consiste numa radical transformação da ordem social vigente, tanto internacional, como nacional. Os neo-conservadores são, na verdade, tanto pela sua doutrina como pela sua prática revolucionários de extrema-direita. Se chocar a comparação com Hitler, pensem antes em Carl Schmitt ou Martin Heidegger.

Eles estão insatisfeitos, profundamente insatisfeitos, com o ordenamento político mundial, alegando que ele não protege adequadamente as democracias contra o terrorismo internacional. As Nações Unidas, em vez de serem um agente capaz de liderar essa luta, só servem para entorpecer a iniciativa do mundo livre. A partir daqui, o argumento começou progressivamente a embrulhar-se, na medida em que o mundo livre é na realidade identificado com os Estados Unidos e o interesse da humanidade com o ponto de vista particular dos Estados Unidos sobre o assunto. Sob a sua forma mais actual e depurada, a doutrina resume-se a uma ideia muito simples: a política externa americana não deve ser condicionada por quaisquer outros interesses ou opiniões, nem sequer os dos seus aliados. Nessa medida, os Estados Unidos não se submetem ao veredicto de nenhuma instância internacional, seja ela a ONU ou o Tribunal Penal Internacional.

Um verdadeiro conservador pode reconhecer que o direito internacional é algo muito frágil, dado não ser respaldado por nenhum poder de facto capaz de impô-lo pela força. Todavia, em vez de se regozijar com esse facto, esforça-se por preservar os equilíbrios existentes e por consolidar as instituições existentes. Não assim os neo-conservadores, que se propoem alegremente arruinar e demolir a escassa ordem internacional existente.

Os neo-conservadores insinuam mais ou menos abertamente que a emergência do terrorismo internacional, tal como se manifestou no ataque às torres gémeas, abalou fundamentalmente os alicerces da sociedade ocidental em geral, e da americana em paricular. Para usar uma terminologia conhecida, eles inferem daí que não é possível, nas condições, presentes, o capitalismo num só país, pelo que é necessário exportar a democracia e impor uma transformação do poder à escala mundial pela via revolucionária. Esta direita é, numa palavra, revolucionária e internacionalista.

Não se deve acreditar, porém, que este movimento esteja disposto a confinar-se à esfera internacional. Nos Estados Unidos, sempre com o pretexto da luta contra o terrorismo, os direitos e garantias dos cidadãos foram, na teoria e na prática, seriamente condicionados. O caso mais visível é, naturalmente, o dos prisioneiros da Al-Qaeda internados em Guantanamo há mais de um ano sem assistência jurídica ou humanitária.

Não perca as cenas dos próximos capítulos.

Estado de catástrofe semiótica. Diz-se que, em 1968, quando os russos invadiram a Checoslováquia, os checos retiraram a sinalização das estradas para impedir que os carros de assalto inimigos conseguissem encontrar o seu caminho.

Se algum inimigo tentasse invadir Portugal (coisa que, caso único na Europa que a todos nos envergonha, ninguém tenta fazer há quase 200 anos) a nossa melhor defesa seria deixar a sinalização tal como está e esperar que ele se perdesse no emaranhado de ruas e ruelas que fazem o encanto deste nosso jardim.

Tanto o intrincado urbanismo das nossas cidades como o traçado sinuoso das nossas estradas e, às vezes, dos próprios caminhos de ferro, testemunham o inegável poder dos pequenos, médios e grandes intereses particulares. Rasgar uma rua a direito, plantar um jardim onde se planeara plantar um jardim, são tarefas hercúleas que, em certos casos, mobilizam e esgotam a opinião pública durante anos.

Muito antes de Einstein, já os portugueses sabiam que o espaço é curvo. Entre nós, o caminho mais curto entre dois pontos é aquele que, entre mil circunvoluções, torneia o quintal de cada um, mesmo que ele seja clandestino (ou, principalmente, se ele for clandestino).

A sinalização das nossas cidades revela também esta paixão nacional pela excepção, forma eufemística de designar a reverência dos poderes públicos perante o egoísmo mais mesquinho. Aqui, é proibido estacionar, excepto viaturas oficiais, médicos ou deficientes. Ali, é proibido virar à esquerda, excepto viaturas da GNR ou veículos das obras. Mais adiante, não se pode virar à direita, excepto transportes públicos ou veículos ligeiros.

Com toda esta trapalhada de ordens e contra-ordens, não admira que, de vez em quando, um automobilista mais confuso apareça a circular fora da mão na auto-estrada.

22.7.03

É mesmo? «Devemos confiar na justiça!», gritam de todos os lados os tartufos de serviço.

Sim, claro, até um certo ponto, tal como devemos confiar no treinador do nosso clube até prova em contrário.

Ou tratar-se-á de um artigo de fé? E tornar-me-ei eu num pária da sociedade se deixar de confiar nela?

A verdade é que nós assistimos publicamente às mais despuradas manifestações de egoismo corporativo dos agentes dessa mesma justiça em defesa do indefensável, e depois pede-se-nos que confiemos... nessa gente? Portugal, país do egoismo sem vergonha, poderia ser a legenda desta situação.

Não haverá aqui um ligeiro erro de perspectiva? Não deveria antes competir à justiça dar-nos razões para confiarmos nela?
Mediocridade, o teu nome é rigor orçamental.

18.7.03

Suspeito logo que alguém tenta justificar a mediocridade quando ouço dizer que o óptimo é inimigo do bom.

O óptimo é inimigo do bera. Assim é que está certo.

17.7.03

Homens de pouca fé. Como pode um economista católico sustentar que não há almoços grátis? Será possível que nunca tenha ouvido falar da multiplicação dos pães? Nem das bodas de Canaã?

Já não há fé?

E sou eu que tenho que lembrar isto?

15.7.03

Histeria. Muitos outros países sofrem, acreditem, de problemas bem mais sérios do que nós, sem por isso viverem neste estado de histeria permanente. Porque o que verdadeiramente nos distingue não é nem a perversidade intrínseca dos cidadãos nem a podridão das instituições, mas uma evidente incapacidade para encarar os problemas de frente e responder-lhes de forma organizada.

Basta assistir aos chamados debates na televisão - por exemplo, sobre o alargamento da Europa a Leste - para vermos como os nossos supostos especialistas se consomem durante horas em lamentos, queixas, remoques, sem que alguém pareça capaz de sugerir uma simples ideia sobre o que deve ser feito, quando é claro e manifesto que não nos devemos preocupar mais com a Roménia do que a Espanha se preocupa connosco. Pensar sentado é, seguramente, muito diferente de pensar de pé.

Para radicalizar as diferenças compare-se esta situação com o que se passou nos EUA após o escândalo da Enron. Aí, sim, tratava-se de um assunto sério, tanto pelas suas repercussões imediatas sobre as vidas de tanta gente, como pelas consequências a longo prazo sobre a credibilidade do capitalismo americano. Evidentemente, estavam em causa não só atropelos à lei como condutas imorais de gestores e altos responsáveis de orgãos reguladores. Repare-se, porém, como se perdeu relativamente pouco tempo com «indignações»: quem devia ser preso foi preso, a justiça lançou-se a investigar e a opinião pública dedicou as suas energias a debater o que deve ser feito para prevenir futuras ocorrências similares.

Os nacionalistas acreditam, ou fingem acreditar, que a pátria é uma entidade de direito divino desde que, na batalha de Ourique, um Afonso Henriques desesperado encomendou o país a Nossa Senhora. Sem querer questionar essa estimável hipótese, eu julgo mais produtivo conjecturar que as nações são comunidades que subsistem enquanto se revelam razoavelmente capazes de resolver os problemas internos e externos com que se confrontam.

Acontece que, nesta fase da sua história, Portugal parece notoriamente impotente para se comportar como um homenzinho, ou seja, para parar de chorar, por-se de pé e fazer qualquer coisa. Alguns dirão que sempre foi assim – que Portugal é mesmo assim – mas mesmo esses reconhecerão que às vezes as coisas pioram, e que esta é capaz de ser uma dessas vezes.

14.7.03

Polícia política. O recente caso da Cruz Vermelha é apenas mais um episódio da tentativa da actual maioria para criminalizar a vida política.

Até há algum tempo, os recém-chegados ao poder limitavam-se a substituir os altos funcionários da administração, os gestores públicos e outros dirigentes de organizações tuteladas pelo Governo por gente da sua confiança.

Como esta prática se tornou mal vista, alguém dotado de grande imaginação lembrou-se de mandar instaurar previamente inquéritos, auditorias e sindicâncias para detectar eventuais ilegalidades susceptíveis de legitimar as projectadas nomeações.

Na esmagadora maioria dos casos os inquéritos redundam em nada; nalguns poucos detectam-se irregularidades processuais, coisa muito fácil numa administração tão complicativa e formalista como a nossa; uma vez por outra, lá se encontram práticas claramente ilegítimas.

Todavia, mesmo que nunca se apure nada de relevante, o que interessa é que, entretanto, se criou na opinião pública a percepção de que por detrás de tanto fumo haverá, por certo, algum fogo. E atinge-se o principal objectivo: sugerir que os adversários políticos não passam, na verdade, de criminosos de delito comum.
Exercício de imaginação. Imaginem por um momento que a Espanha nos tinha ganho a organização do Euro-2004. Para o ano que vem, com esse torneio aqui ao lado e os Jogos Olímpicos na Grécia, os nossos rivais económicos mais directos na União Europeia estariam sob as luzes da ribalta e nós às escuras.

Com a nossa tendência para a depressão e o auto-martírio, seria caso para suicídio colectivo!

11.7.03

Grandes Mistérios (continuação). Eis uma hipótese de solução para o Mistério de ontem. O ciclismo sempre foi - e continua no essencial a ser - um desporto rural. A grande maioria das competições velocipédicas encontra-se associada a festividades e comemorações locais ou regionais, que culminam todos os anos numa Volta ao país que materializa simbolicamente a unidade nacional num circuito pelas suas estradas. Em muitas localidades que as voltas atravessam, a passagem dos ciclistas é o acontecimento do ano.

Os grandes ciclistas de todos os tempos, desde Robic, que, consolado pelos repórteres, chorava perante as câmaras de televisão como um bébé quando não conseguia ganhar, até Joaquim Agostinho, o camponês de Brejenjas, são iniludivelmente homens do campo. Se não erro, hoje continuam a sê-lo.

Apesar de participar do movimento geral da globalização mediática, o ciclismo continua a ser relativamente mais popular nos campos do que nas cidades. Deve ser por isso que entre os patrocinadores se destacam, por exemplo, fabricantes de pesticidas ou de rações para animais. No ciclismo contemporâneo, os campos continuam a cercar as cidades.

As próprias virtudes do ciclismo – a persistência, a capacidade de sofrimento, a resignação, o serviço (ao líder da equipa), a lealdade, a coragem – remetem para um mundo ancestral e genuíno que sobrevive através deste desporto.

Acontece que a crescente população negra europeia é esmagadoramente urbana, não rural. Como tal, mobiliza-se em torno de desportos como o futebol, o basquete ou o atletismo, os quais não podem ser praticados sem equipamentos que só existem em aglomerados populacionais de alguma dimensão. O mundo do ciclismo não exerce sobre ela o mesmo fascínio, porque não tem raízes nesses campos que os ciclistas todos os anos cruzam a alta velocidade.

10.7.03

Grandes Mistérios do Nosso Século: porque é que não há negros no ciclismo?

9.7.03

Talvez seja verdade que, para captar o investimento estrangeiro, é indispensável oferecer-lhe benefícios fiscais. Mas é preciso estarmos conscientes de que isso aniquila qualquer argumento de justiça fiscal. Se algumas empresas se valem da sua capacidade negocial para evitar pagar impostos, porque não haverão os outros contribuintes de fazer o mesmo?

Sustenta-se que o investimento estrangeiro cria postos de trabalho. Mas alguém duvida de que muitas empresas e muitos postos de trabalho de empresas nacionais só subsistem precisamente porque não pagam impostos? Porque é que a criação de postos de trabalho por via da evasão fiscal é legítima nuns casos e noutros não?

4.7.03

A propósito do comentário de Pacheco Pereira sobre as tristes figuras de Berlusconi no Parlamento Europeu. Quando pessoas muito inteligentes inventam argumentos muito arrevezados para justificar coisas muito estúpidas, é caso para começarmos a ficar muito preocupados.

1.7.03

Indignação (2). O curso da opinião pública segue actualmente em Portugal um ciclo altamente previsível, tão previsível que se afigura quase uma instância ideal do eterno retorno.

Primeiro, ocorre algo efectiva ou presumivelmente escandaloso, tal como a queda duma ponte, uma dívida fiscal do Benfica, o alegado envolvimento de um ministro nas trapalhadas da Moderna, a demissão de uma sub-directora da Judiciária, o projecto de um casino no Parque Mayer, a prisão de oficiais da Brigada de Trânsito ou a descoberta de um caso de pedofilia na Casa Pia – o assunto, no fundo, pouco interessa.

Em seguida, os colunistas de serviço, como um só homem (mas com algumas mulheres à mistura), proclamam a sua indignação nos tons mais empolados, decretam com impressionante unanimidade que o mundo está podre, que já não há valores e que o país bateu no fundo - e pedem uma ou, de preferência, várias cabeças. A opinião pública, informada do caso pelos reality-news das oito e iluminada pelos especialistas de assuntos não especializados e técnicos de ideias gerais - invariavelmente juristas de profissão - que dão pelo nome de comentadores residentes, concordam que o mundo está podre, que já não há valores e que o país bateu no fundo - e que é indispensável cortar uma ou, de preferência, várias cabeças.

Eis que está o povo ao rubro e pronto a amotinar-se quando, previsivelmente, a vaga começa a inverter-se. Os comentadores – muitas vezes os mesmos que haviam atiçado o fogo – declaram chegado o momento de nos indignarmos contra a indignação: condenam o populismo e os julgamentos populares na televisão e apelam ao respeito pelo Estado de Direito - uma coisa que é invocada periodicamente nos momentos cruciais em que, precisamente, estamos seguros de que ele não existe.

Sossegadas as almas, pacificados os espíritos, estamos então prontos para acolher com entusiasmo a próxima Grande Indignação – e nisto vamos vivendo.