1.7.03

Indignação (2). O curso da opinião pública segue actualmente em Portugal um ciclo altamente previsível, tão previsível que se afigura quase uma instância ideal do eterno retorno.

Primeiro, ocorre algo efectiva ou presumivelmente escandaloso, tal como a queda duma ponte, uma dívida fiscal do Benfica, o alegado envolvimento de um ministro nas trapalhadas da Moderna, a demissão de uma sub-directora da Judiciária, o projecto de um casino no Parque Mayer, a prisão de oficiais da Brigada de Trânsito ou a descoberta de um caso de pedofilia na Casa Pia – o assunto, no fundo, pouco interessa.

Em seguida, os colunistas de serviço, como um só homem (mas com algumas mulheres à mistura), proclamam a sua indignação nos tons mais empolados, decretam com impressionante unanimidade que o mundo está podre, que já não há valores e que o país bateu no fundo - e pedem uma ou, de preferência, várias cabeças. A opinião pública, informada do caso pelos reality-news das oito e iluminada pelos especialistas de assuntos não especializados e técnicos de ideias gerais - invariavelmente juristas de profissão - que dão pelo nome de comentadores residentes, concordam que o mundo está podre, que já não há valores e que o país bateu no fundo - e que é indispensável cortar uma ou, de preferência, várias cabeças.

Eis que está o povo ao rubro e pronto a amotinar-se quando, previsivelmente, a vaga começa a inverter-se. Os comentadores – muitas vezes os mesmos que haviam atiçado o fogo – declaram chegado o momento de nos indignarmos contra a indignação: condenam o populismo e os julgamentos populares na televisão e apelam ao respeito pelo Estado de Direito - uma coisa que é invocada periodicamente nos momentos cruciais em que, precisamente, estamos seguros de que ele não existe.

Sossegadas as almas, pacificados os espíritos, estamos então prontos para acolher com entusiasmo a próxima Grande Indignação – e nisto vamos vivendo.

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