24.2.04



Anthony Gormley: Domain Field, 2003.

Antes pouco e bom do que muito e mau

Gabava-se Lobo Xavier há dias na «Quadratura do círculo» de que a direita, ao menos, tem muitos candidatos presidenciais possíveis, ao passo que a esquerda não tem nenhum.

O comentário revela um deslocado excesso de optimismo, quase a resvalar para a inconsciência. Porque a verdade é que a direita não tem, de momento, nenhum candidato para ganhar.

Quanto a Santana Lopes, acredito que estamos conversados. Tirando ele próprio, e talvez também Durão Barroso, nunca ninguém verdadeiramente acreditou que tivesse fôlego para lá chegar. Não vale a pena, pois, gastar mais cera com tão ruim defunto.

De um ponto de vista substancial, isto é, do ponto de vista das qualificações para o cargo, Cavaco seria de longe o candidato mais sólido. Mas creio que há duas razões pelas quais não pode ganhar.

A primeira (admito que muito discutível) é que Cavaco é hoje um resquício de uma época muito longínqua, da qual, para o bem e para o mal, ninguém se quer lembrar. Trata-se de uma figura obsoleta que se enterra mais um pouco de cada vez que aparece e abre a boca. Daqui deve seguir directamente para os manuais de história.

A segunda, mais substancial, é que, segundo todas as probabilidades, Cavaco teria que defrontar Guterres. Ora acontece que tudo o que Guterres fez mal, Cavaco fez pior.

Guterres pirou-se quando as coisas correram mal, Cavaco também. Guterres deixou um déficite elevado, Cavaco legou-nos um maior. Guterres tolerou que à sua volta proliferasse toda a sorte de negociatas, Cavaco idem. Por conseguinte, não há argumentário que lhe valha. Os seus conselheiros, se os tem e se prestam para alguma coisa, deverão aconselhá-lo a abster-se, a bem da Nação em geral, de cada um de nós em particular, e dele próprio em especial.

Resta a hipótese de, recusando-se Cavaco a avançar, Marcello ver finalmente chegada a sua hora. Mas conseguem mesmo imaginar um confronto entre Guterres e um número de circo? Ó meus amigos!

Não sou muito dado a previsões políticas, mas desta vez acho que vou arriscar: salvo circunstâncias imprevisíveis, o nome do próximo Presidente da República é António Guterres.

Quanto a José Miguel Júdice, um bom candidato potencial que a direita decidiu desconsiderar, terá de ficar para a próxima.



Júlio Pomar: Fernando Pessoa.

O que trai Pomar é o excesso de talento. Para ser verdadeiramente grande teria que lutar contra si mesmo.

O handicap dos homens baixos

A possibilidade de Vitorino vir a ser Presidente da Comissão Europeia deve ser avaliada à luz daquela notável descoberta de certos investigadores segundo a qual existe uma correlação positiva entre a altura de um sujeito e o rendimento que consegue auferir.

À partida, pode-se dizer que tantos os deuses como a cìência conspiram contra a possibilidade de o nosso homem em Bruxelas vir a alcançar o cargo máximo na hierarquia da União Europeia.

No entanto, também podemos olhar para a questão duma outra perspectiva mais optimista. Se um homem baixo -- mais exactamente, um homem baixíssimo -- consegue atingir, contra todas as probabilidades, cargos de altíssima responsabilidade, é razoável presumir-se que se tratará de alguém de facto excepcional, capaz até de superar barreiras absolutas para outros menos capazes.

Por conseguinte, uma vez superado um certo patamar de ascensão social, um sujeito que não tem na estatura o seu ponto forte pode começar a beneficiar de um preconceito positivo, vendo assim multiplicadas as suas ulteriores chances de sucesso na carreia.

Assim se confirma mais uma vez que, nas ciências humanas, quando uma conjectura se revela verdadeira, é bem possível que a inversa também o seja, pelo menos em circunstâncias bem determinadas.

O drama das bolas paradas

Realmente, é terrível deixar-se entrar na baliza uma bola que era suposta estar parada.

O problema deste país...

O problema deste país é haver tanta gente convencida de que sabe qual é o problema deste país.

21.2.04

Como usar a cabeça

Um post notável, a propósito das descabidas comparações que todos os dias somos obrigados a ouvir entre Portugal e a Irlanda.

É tão raro ver-se alguém a pensar...


Helmut Dorner: Schlzschrk, 2002.

20.2.04



Cy Twombly: Sem título, 1952.

Lenga-lenga

Meus senhores, eu sou o Pacheco, que bate no Santana, que ralha ao Marcello, que fustiga o Lopes, que ladra ao Cavaco, que divide o partido, que arruina o país, que diverge da Europa, que se afasta da América, que elege o Bush, que invade o Iraque, que esconde as armas, que fogem de barco, que leva o Bin Laden, que vai, e que vem, e que vira, e que volta, e anda tudo à reviravolta.

18.2.04

Bem haja

Na sua guerra sem princípios contra Santana Lopes, Marcello confirma de novo que a baixa política é o meio onde se sente mais à vontade. É no extraordinariamente pequeno que ele consegue ser verdadeiramente grande.

Mas prova-se também que Deus, na sua infinita Misericórdia, até aos mesquinhos concede a Graça de fazerem o Bem, ao menos uma vez na vida.

A quem de direito

Grande gaita. Grande gaita, mesmo.

Terá um tipo o direito de desaparecer assim, sem mais nem menos? Já não há respeito por ninguém? Já não há valores? E o Governo não faz nada?

16.2.04

Chegou a hora, Magalhães vai-te embora!

O que as intervenções semanais do José Magalhães na Quadratura do Círculo sugerem é que no PS não há espaço para um pensamento político independente. Quanto a um pensamento político inteligente, já nem digo nada...

Afastar este homem das luzes da ribalta é um designo patriótico. Não será possível lançar-se um abaixo-assinado com esse objectivo? E quantas assinaturas serão precisas para nos vermos livres dele?

Foi assim que a Alemanha perdeu a guerra

Surpreende-me a importância que o O País Relativo resolveu atribuir à entrevista do desnorteado candidato do PP às eleições presidenciais.

A gente não pode, por razões de higiene pessoal, rebaixar-se muito a discutir certos assuntos ou certas pessoas, não é?

Rapariga com brinco



Não chega a ser um filme extraordinário, mas, sobretudo para quem ama Vermeer, vale bem a pena vê-lo. E, depois, não há dúvida que a luminosidade especial conseguida pelo Director de Fotografia é em grande medida responsável pelo seu encanto.

14.2.04

Vida social



Este é o casamento do rico banqueiro italiano Michele Arnolfini, estabelecido em Brugges (cidade à época integrada no ducado da Borgonha, uma das grandes potências europeias do século XV), com uma moça atraente mas de fracas posses. O facto de o noivo estender à noiva a sua mão esquerda, em vez da direita, indica que se trata de um casamento morganástico. Caso ficasse viúva, a esposa não herdaria os bens do falecido, embora tivesse direito a uma compensação.

Não, a rapariga não está grávida: na época usavam-se estas vestes que comprimiam o peito e dilatavam o ventre. O matrimónio celebrava-se dentro de casa, não na igreja, e não era necessário um padre para abençoá-lo. Só depois do concílio de Trento se alterarm esses costumes.

As noivas também não trajavam de branco. O luxo de mandar fazer fatiotas especialmente para usar uma só vez -- vendo bem as coisas, uma ideia completamente demente, mesmo para gente de posses, e uma forma de ostentação que a Igreja deveria activamente condenar -- apenas surgiu muito mais tarde. Quanto à ideia de pôr as noivas a trajar de branco, está bom de ver que teve inspiração romântica. Não entrou nos hábitos antes da segunda metade do século XIX.

A cerimónia, realizada em 1434, tem lugar no quarto de dormir, visto que nem os ricos burgueses tinham uma sala de estar: era ali mesmo, portanto, que recebiam as visitas.

O quadro está repleto de símbolos de riqueza: o vestuário luxuoso dos noivos, a grande cama de dossel, as janelas envidraçadas, o enorme candelabro, o assento de madeira coberto de almofadas, o espelho de vidro convexo na parede do fundo, as laranjas sobre o baú e o parapeito da janela. Hoje em dia, só as peles que debruam a capa do homem caberiam nessa categoria.

Mas o maior símbolo de status é o próprio quadro que representa o evento, porque contratar um pintor como Jan van Eyck, usualmente ao serviço do próprio Duque da Borgonha, Filipe o Bom, custava uma nota preta e não era coisa para qualquer um.
Nos dias de hoje, chama-se a Caras e assegura-se a publicidade adequada de um matrimónio com aspirações a acontecimento social. É claro que o impacto não é tão poderoso, é claro que ninguém vai falar dos retratos daqui a cinco séculos, mas esse é o preço de a fama estar, embora em doses moderadas e por tempo escasso, ao alcance de qualquer um.

A coisa mais importante na pintura é a assinatura do autor, tal como o mais importante de certas marcas de roupa é a possibilidade de ostentar de forma bem visível o seu logotipo. Profundo conhecedor dos gostos e preferências deste segmento do mercado, Jan van Eyck chapou o seu nome mesmo no meio da obra. Assim:




13.2.04

Boa noite, quer dizer, bom dia, quer dizer, boa noite..



Edvard Munch: O grito, 1893.

Vai tudo raso



Há outras peças que eu prefiro, mas talvez nenhuma conserve, como a 9ª Sinfonia, esta capacidade de continuar, ao fim de tantos anos, a sacudir-me a cada nova audição.

É o mais enérgico e electrizante testamento que alguém nos deixou, feito de uma estranha combinação de alegria, bravura e confiança ilimitada no futuro, em que a intensidade sonora, levando tudo à sua frente, se assume como um valor estético em si mesmo.

Se...

Se toda a gente fosse despedida ao menos uma vez na vida, o mundo seria provavelmente muito melhor.

12.2.04

Crítica da razão distraída



Tenho tendência para desconfiar de um filósofo que morreu virgem e por quem as pessoas acertavam os relógios quando passava na rua.

Além disso, Kant é de facto um filósofo difícil: Wordsworth ria-se na cara De Quincey quando ele se gabava de compreendê-lo.

Seja por ser demasiado puritano ou demasiado inteligente para mim, a verdade é que as minhas leituras de Kant têm sido bastante esparsas. Para falar verdade, leio-o como quem folheia revistas. Enfim, uma coisa vergonhosa...

Mas o segundo centenário da morte do filósofo de Konigsberg provocou-me um lancinante sentimento de culpa. Como posso eu ter gerido tão mal a minha relação com este homem que representa, ele sim, o horizonte inultrapassável da nossa época?

Prometo que vou emendar-me. A começar já hoje.


Hans Hartung.

11.2.04

Credo

A direita acredita piamente em duas coisas: que a natureza humana não muda -- e que muda continuamente para pior.

Ao princípio não era o verbo

Torturar sentimentos confusos até obrigá-los a falar -- é isso a escrita, uma das formas mais cruéis de violência já inventadas.

As nossas primárias

A auto-estima do país está agora suspensa da possibilidade de uma compatriota se tornar primeira-dama dos EUA.

Em Portugal, pelo menos, George Bush já perdeu.

10.2.04

Árvore das Patacas SA

Vital Moreira chama a atenção no Público de hoje para o escândalo que é o actual regime de licenciamento da abertura de farmácias.

Mas, para mim, o mais grave é que o núcleo central do capitalismo português está todo ele plasmado sobre o modelo das farmácias, ou seja, sobre a limitação da concorrência e a exploração de rendas de situação.

Nuns casos, porque o acesso à actividade é rigorosamente controlado. Noutros, porque ocorrem monopólios naturais não devidamente fiscalizados ou dominam cartéis oligopolísticos mais ou menos assumidos.

Nos últimos anos, em particular, em grande parte por acção directa do PS e, muito em particular, do ministro Pina Moura, o Estado tem intervido directamente para favorecer a concentração em sectores vitais da economia, com consequências nefastas para os consumidores, para os sectores económicos menos concentrados e para a eficiência da economia em geral.

O caso da energia é paradigmático. Logo que começou a haver um bocadinho de concorrência (entre a electricidade e o gás natural, por exemplo), Pina Moura criou uma holding englobando todo o sector. O pretexto era a criação de uma empresa portuguesa de dimensão internacional; o resultado, a eliminação da concorrência em detrimento dos consumidores e das empresas que consomem energia.

Temos, assim, uma economia em que é o Estado que decide quem tem direito a ser rico e quem está condenado a mendigar a sobrevivência. É claro que, sobre este solo, dificilmente medrarão empresas modernas, inovadoras e saudáveis.

Pede-se duas coisas: primeiro, que se ponha a funcionar estruturas de regulação eficazes; segundo, que não se avance com outras privatizações, como a da água, enquanto este problema não estiver resolvido.

O elevado grau de concentração em áreas vitais da economia, conduzida sempre a coberto do argumento da protecção dos centros de decisão nacionais, é a explicação fundamental da fraca performance da economia portuhuesa nos anos recentes. E, enquanto as causas essenciais persistirem, da sua medíocre performance nos anos vindouros.

A abolição do anacrónico regime de atribuição de licenças para a abertura de farmácias seria um passo decisivo para se começar a alterar este absurdo estado de coisas.

9.2.04



Arshille Gorky: Água da fábrica florida, 1944.

Gérard Castello-Lopes



É apenas uma visão das coisas, evidentemente, dado que a fotografia, ao mesmo tempo objectiva e parcial, tem este poder de nos dar a parte pelo todo. Mas acontece que ela coincide muito com a que guardo na minha memória.

No Portugal dos anos 50 e 60 de Gérard Castello-Lopes está tudo parado à espera de não se sabe o quê e a olhar para não se sabe onde. Os únicos e inequívocos sinais de vida provêem de miúdos pobres de ar traquinas que jogam à bola como se nada mais no mundo fizesse sentido.

As imagens do interior do país fazem-me lembrar as reportagens que hoje nos chegam de paragens longínquas subitamente perturbadas na sua placidez secular por uma qualquer intervenção de tropas norte-americanas. Ficou-me na retina aquele sinaleiro supérfluo de Évora parado numa pretensa encruzilhada de ruelas, aguardando o trânsito que não existe.

A própria cidade de Lisboa revela-se profundamente marcada pela ruralidade, traço característico ainda mais acentuado pelo cruel contraste com as fotos da Paris da mesma época.

Uma das fotos mostra-nos burros a passearem em Alcântara, mas também eu recordo carros de bois a voltarem das hortas ao fim do dia na Avenida Estados Unidos da América de meados dos anos 60.

Talvez injustamente, os trabalhos de Castello-Lopes posteriores a 1988 não me interessaram tanto como os da sua primeira fase. Mas será culpa nossa se ele conseguiu evocar de forma tão genial e singular o espírito de uma época tão próxima e, no entanto, já tão distante?

8.2.04

Cuidado com as más companhias

Vasco Rato congratulou-se no «Expresso da Meia-Noite» de 6ª feira com o facto de ter sido recentemente revogada nos EUA uma lei aprovada em 1975 que proibia os serviços secretos americanos de se envolverem no assassinato político de líderes estrangeiros.

Significa isto que Vasco Rato aprova actos terroristas -- desde que sejam cometidos pelos seus amigos políticos. Eis uma tocante confissão que a maioria dos seus correligionários não tem a franqueza ou a falta de inteligência de fazer.

6.2.04



Robert Motherwell: Elegia à República Espanhola 34, 1953-54.

Indecente

A Janet Jackson teve toda a razão em pedir desculpa.

Ou acham que aquilo é peito que se apresente?

Mentira ou...

Não foi uma mentira. Foi, como diria o Edmond Burke, uma tentativa para economizar na verdade.

Mistérios



Porque é que nenhum livro do W. G. Sebald está traduzido em português?




Porque é que nenhum livro do Pelevine está traduzido em português?




Porque é que nenhuma das aventuras do detective italiano Aurelio Zen inventadas por Michael Dibdin está traduzida em portugês?


Porque é que todos os livros do Saramago estão traduzidos em português?

5.2.04



Menez: Sem título, 1991.

É muito difícil encontrar obras de pintores portugueses na net. Talvez essa fosse uma coisa que o Ministério da Cultura pudesse resolver. Mas não tenho muitas esperanças: é demasiado fácil e barato.

Mea culpa?



Há dias, acusei o PS de não se preparar devidamente para discutir a estratégia de longo prazo para a política orçamental.

Terei sido injusto? Ao ler a lista de compras da Drª Manuela sou levado a crer que sim.

Dêem-se ao trabalho de decifrar o documento, e depois perguntem-se como é possível pretender-se governar o país com banalidades deste quilate.

Ou o Governo e a Ministra não gastaram cinco minutos a pensar no assunto, ou isto é mesmo o melhor que conseguem produzir.

P.S. -- Que excelente oportunidade o PS está a perder de fazer boa figura! Trabalhem, rapazes, trabalhem!

Isto não é um conto



Imaginem esta situação. A polícia localiza um conhecido facínora. Ele tenta escapar, é baleado e morre.

A polícia afirma que agiu em legítima defesa, porque o indivíduo estava armado e ameaçara disparar.

Faz-se um inquérito. Prova-se que ele não tinha nenhuma arma. A polícia é acusada de ter mentido.

Responde o comandante da polícia: «Mas digam lá se não estamos todos mais seguros com ele morto?»

Esta história não vos faz lembrar as justificações retroactivas da guerra preventiva contra a pretensa ameaça das armas iraquianas de destruição massiva?

Eu posso dizer que sou dos tais que se sentem enganados porque, na altura, hesitei bastante entre o apoio e a condenação à guerra.

Acho a guerra preventiva um mau princípio, mas não excluo que às vezes possa ser necessária. Não acreditava que o Saddam tivesse algo que ver com o Bin Laden e o 11 de Setembro, mas pensava que a possível existência de armas de destruição massiva não deveria ser ignorada. Além disso, pareceu-me que a posição ilógica da França, ao reforçar o sentimento de impunidade do Saddam, tornava a guerra inevitável.

Numa palavra: acordava anti-guerra e adormecia a pensar que talvez fosse o menor dos males.

Está hoje claro que tudo não passou de um enorme embuste, a tal ponto que os arrogantes de ontem argumentam agora humildemente que se enganaram para não terem que confessar que mentiram. A batata quente foi passada para os serviços secretos para baralhar a questão até que ninguém compreenda nada do que se passou.

(Este tema da intervenção dos serviços secretos seria interessante, mas fica para outro post.)

Agora quero referir-me, nem que seja brevemente, ao argumento segundo o qual o mundo estaria mais seguro com Saddam deposto e aprisionado.

Nem isso! O mundo está mais perigoso, porque o terrorismo tem hoje maior aceitação popular no Médio Oriente e noutras partes do mundo, porque os países ocidentais se dividiram, talvez irremediavelmente, porque os povos das democracias confiam menos nos seus líderes, porque a ONU sofreu um rude golpe, porque o frágil direito internacional foi espezinhado, porque a doutrina do mais forte conquistou adeptos, porque a liberdade de expressão foi fortemente condicionada nalguns países, porque passou-se a achar normal a detenção por tempo ilimitado sem culpa forma, porque se tornou menos clara a fronteira entre a verdade e a mentira.

Finalmente: quando um dia for de facto indispensável usar a força por uma boa causa, a maioria vai recusar o seu apoio.

No comments

Toda a gente deveria ler isto. Mais: este assunto deveria, num país civilizado, ser a notícia de abertura dos telejornais.

4.2.04




Larionov: Galito -- estudo raionista.

Os bois e os seus nomes

Levanta-se de novo por estes dias o coro contra a promiscuidade entre a política e o futebol.

Parece-me isto a mim um eufemismo incompreensível. O partido que está enfiado até ao pescoço no futebol é o PSD, não é mais nenhum.

É isso mesmo. Os outros partidos têm um ou outro militante envolvido, mas são meros amadores. Nenhum consegue, nem de perto nem de longe, rivalizar com esta linha de ataque: Gilberto Madáil, Valentim Loureiro, Santana Lopes, Fernando Seara, Lourenço Pinto, Pôncio Monteiro...

Querem mais? Eu nunca me rebaixei a comprar um jornal desportivo, de modo que tenho que me resignar a listar os que vejo na televisão e que sei de ciência certa que foram ou são ministros, presidentes de câmara ou deputados do PSD.

Aliás, isto é perfeitamente normal. Nunca é demais sublinhar que o PSD não é um partido «normal», querendo eu com isso significar que não é um partido que se rebaixe a ter uma ideologia ou princípios políticos reconhecíveis.

O PSD, herdeiro directo de outras forças políticas que, com variáveis designações, marcaram a vida política portuguesa dos últimos dois séculos é, na verdade, o partido dos poderes fácticos.

Se tem uma ideologia, é a ideologia do poder. Verdadeiramente, nada mais os une senão essa profunda e quase comovente convicção de que nasceram para mandar. Para mandar no país, para mandar no futebol, para mandar nos bancos, para mandar nos bombeiros, para mandar nas ordens profissionais, para mandar na polícia, e por aí fora.

A sua vocação é ser a União Nacional dos poderosos, daqueles que assumem e transmitem o poder de pais para filhos. Pensem um bocadinho e vejam lá se não é assim.

3.2.04

«Se o seu filho não quer estudar, é ele que está certo»



(Continuação da entrevista a Karl Marx)

Entrevistador -- Está outra vez a fugir ao assunto. Seja directo, por favor: prove-me que o que hoje se passa no mundo tem alguma coisa a ver com as suas propostas políticas.

Marx -- Eu nunca fiz muitas propostas concretas, tal como nunca fiz muitas previsões. Achava e continuo a achar que isso é uma perda de tempo. O que lhe digo é que, agora, pode-se viajar por toda a Europa sem ter a polícia sempre à perna. Vim a Portugal sem passaporte. No meu tempo, precisava de um passaporte para me deslocar dentro da própria Alemanha. Não acha que isto comprova o triunfo do ideal internacionalista?

Entrevistador -- Se, como pretende, o poder está agora nas mãos dos trabalhadores, porque é, então, cada vez menor o interesse das pessoas pela política?

Marx -- Não há razão para preocupações. Repare: o indiferentismo é o estádio supremo de desenvolvimento do socialismo. Saint-Simon sustentou que, no socialismo, o governo das coisas sobrepõe-se progressivamente ao governo dos homens. É a isso que, hoje, se chama tecnocracia. Eu apoiei essa tese com tanta insistência que muitas pessoas estão convencidas que ela é minha. Se as pessoas já não estão divididas por conflitos de valores políticos essenciais, que se há-de fazer? É um progresso, e também mais uma prova do termo da luta de classes e do fim da história. Pessoalmente, aprovo este estado de coisas.

Entrevistador -- E o desemprego e a desigualdade salarial?

Marx -- O economista Paul Krugman explicou-me que, à medida que os computadores forem substituindo as profissões técnicas, cada vez será mais valorizado o trabalho dos cozinheiros, dos jardineiros ou dos canalizadores. Se o seu filho não quer estudar, não se rale: provavelmente, é ele que está certo.

Entrevistador -- E o trabalho infantil, e a poluição, e a SIDA, e a clonagem?

Marx -- Calma, calma, uma pergunta de cada vez.

(Continua...)


El-Lissitzky: Proun 93.

Guerra e paz entre quatro linhas

Evidentemente, concordo com tudo o que de substancial este post afirma, mas presumir que o futebol é um espectáculo de «paz e amizade» faz-me perceber porque é que o Pacheco Pereira é, de facto, totalmente imune aos encantos deste ritual desportivo.

O segredo do enorme sucesso do futebol no século XX reside precisamente em ele ser uma espécie de guerra domesticada, um equilíbrio precário entre a barbárie e a civilização que, no entanto (ou por isso mesmo), a qualquer momento pode dar para o torto.

O futebol é uma forma de violência ritualizada, usualmente eficaz na sublimação de paixões primárias. Mas, quando o escape não funciona...


Prémio João Carreira Bom

Não morro de amores pela ficção portuguesa contemporânea. O Saramago e o Lobo Antunes desinteressam-me e, daí para baixo, é sempre a piorar.

Talvez esteja a ser injusto. Espero bem que sim: se calhar não li quem devia ter lido, e, quando o fizer, mudarei de opinião.

Não desprezo os escritores portugueses, entenda-se, só me parece que os melhores se dedicam hoje primordialmente à crónica e não à ficção. Estou a pensar em gente como o Jorge Silva Melo e o João Bénard da Costa, dois dos que me enchem as medidas e me fazem ficar sempre a chorar por mais.

É também por isso que fico feliz por ter sido criado o Prémio da Crónica João Carreira Bom.

Ganhou este ano o Prado Coelho, e não ganhou mal, embora eu, como se infere do que atrás afirmei, tivesse preferido outro. Já houve tempo em que às vezes me irritava com o que o EPC escrevia, mas hoje estou muito mais tolerante e presto mais atenção às qualidades do que aos defeitos.

O meu outro motivo de alguma felicidade (poderei chamar-lhe assim?) é ver justamente recordado o João Carreira Bom, uma pessoa notável que não recebeu nunca o reconhecimento que merecia e o mais paciente amigo que alguma vez tive.

2.2.04



El Lissitzky, Prounen-raum, 1923.

Marx confessa: «sempre fui a favor da globalização»



(Continuação da entrevista a Karl Marx)

Entrevistador (já a suar) -- Temo bem que os nossos leitores tenham dificuldade em acompanhar um raciocínio tão abstracto. Vamos passar a um tema mais acessível. O que pensa da globalização? Não admite que se trata de uma derrota do socialismo?

Marx -- Ó meu caro amigo, com franqueza! Pois se fui eu, tanto quanto sei, a primeira pessoa a prever e a defender a globalização!

Entrevistador -- O senhor foi a primeira pessoa...

Marx -- Sem dúvida. Sou o mais possível a favor, como tive ocasião de explicar no meu Discurso sobre o Livre Câmbio, pronunciado em 1848 perante a Liga dos Comunistas.

Entrevistador -- Mas por certo não ignora que, hoje, os comunistas são contra...

Marx -- Também no meu tempo eram! Nem queira saber como reagiram quando defendi o livre câmbio e a liberdade de circulação do capital como forma de acelerar o desenvolvimento capitalista e de precipitar o advento do socialismo. Um autêntico escândalo! Há pessoas muito míopes...

Entrevistador (desesperado)-- Vejo que está outra vez a tentar fugir às minhas perguntas. Afinal, estamos ou não no socialismo? Responda-me só: sim ou não?

Marx -- Sim.

Entrevistador -- Mas como é possível dizer uma coisa dessas e pretender ser tomado a sério? O senhor desconhece o que dizem o Dr. Espada, o Dr. Portas, o Dr. Marques Mendes?

Marx -- Uma coisa que me agrada em Portugal é a importância que se dá aos doutores. Faz-me lembrar a Alemanha do meu tempo.

(continua)

A facturinha vai a caminho

Marcello prestou ontem um grande serviço a Durão Barroso, ao fazer em postas a ministra Celeste Cardona.

A seu tempo será cobrado.


Tapiès: Três olhos vermelhos, 1992.

1.2.04



El Lissitzky: Vitória sobre os brancos com a cunha vermelha, 1919.

Segundo Karl Marx, «as grandes empresas americanas são controladas pelos trabalhadores»



(Continuação da entrevista a Karl Marx)

Entrevistador -- Os trabalhadores americanos controlam as empresas? Como assim?

Marx -- O capital das grandes empresas cotadas na bolsa é controlado pelos fundos de pensões nos quais os trabalhadores aplicam as suas poupanças. Por conseguinte, uma parte substancial da economia está nas mãos dos trabalhadores. Já há quase três décadas que é assim.

Entrevistador -- Não me está a querer dizer que já não há capitalistas nos EUA! Bill Gates, por exemplo, um dos homens mais poderosos do mundo!

Marx -- Depende do que se entenda por um capitalista. Segundo a minha teoria, o capital não é uma coisa, é uma relação social assente num elo de dependência. Ora, precisamente, no caso da Microsoft que citou, estou informado de que entre os seus empregados contam-se dezenas de milionários. E como se transformaram esses ditos assalariados em milionários?

Entrevistador -- Não vejo onde quer chegar.

Marx -- Quando os capitalistas têm que pedir por favor aos trabalhadores para trabalharem, as relações de produção são profundamente subvertidas. E isso sucede porque, hoje em dia, os meios de produção essenciais não são mais as máquinas ou as ferramentas. São a capacidade intelectual, o engenho, o know-how. Ora esses instrumentos pertencem ao trabalhador, são inseparáveis da sua pessoa.

Entrevistador -- Curioso, de facto...

Marx -- Desta forma, operou-se a apropriação colectiva dos meios de produção. O patrão já não manda. Quando muito, lidera -- ou pensa que lidera. Os assalariados não são mais assalariados, são impostores, são capitalistas encapotados.

Expliquei tudo isso com a razoável clareza que a minha linguagem razoavelmente obscura permite nos Grundrisse, uns rascunhos de ficção política publicados depois da minha morte.

Entrevistador -- Mas como se processa concretamente essa apropriação colectiva dos meios de produção?

Marx -- Através da escola, é claro! Nos países mais avançados, os filhos dos engenheiros e os filhos dos operários vão às mesmas escolas, onde todos adquirem as mesmas ferramentas intelectuais que lhes permitem, mais tarde, controlar o processo de produção. Em muitos desses países, nem sequer se paga nada pela educação - ou melhor, é a sociedade que a paga. A uniformização social é visível até no modo como os jovens se vestem e se divertem. Ao vê-los saír das escolas, todos de tee-shirt, jeans, sapatilhas e boné, julgo estar a assistir a um desfile de guardas vermelhos.

(continua...)


El Lissitzky: Poema-anel: «Amo».

Marx: «feliz por ver ditadura do proletariado implantada»



1ª Parte da entrevista a Karl Marx

Entrevistador -- Cento e cinquenta anos após a primeira edição do Manifesto do Partido Comunista, gostaria de conhecer, dr. Marx, a sua impressão geral sobre o mundo que veio encontrar.

Marx -- A minha impressão não podia ser melhor. Em primeiro lugar, estou feliz por verificar que a ditadura do proletariado se encontra tão solidamente implantada.

Entrevistador -- A ditadura do proletariado?

Marx -- Claro. Ao contrário do que se passava no século XIX, o sufrágio universal é hoje uma instituição indiscutível em qualquer país civilizado. Ora, com o sufrágio universal, os trabalhadores estão sempre em maioria no eleitorado. Daí o facto de conseguirem sempre impor a sua vontade. É a ditadura democrática dos trabalhadores.

Entrevistador -- Mas o senhor chama ditadura à vontade da maioria?

Marx -- Acha estranho? Pois olhe que, ainda há poucos anos, o dr. Mário Soares expôs uma ideia semelhante, quando afirmou que o governo do Professor Cavaco estava a impor uma ditadura da maioria.

Entrevistador -- De todo o modo, a opinião dominante hoje em dia é que o senhor se enganou redondamente nas suas previsões sobre a inevitável derrocada do capitalismo e subsequente triunfo do socialismo.

Marx -- São tolos, não entendem o mundo em que vivem. A verdade é que, olhe-se para onde se olhar, o que vemos é o progresso do socialismo triunfante. Recentemente, estive nos EUA, e pude constatar que, lá, os trabalhadores já controlam a economia.

(Continua...)