29.9.06

Em defesa da Directora da Ópera de Berlim



Tal como a primeira obrigação dos médicos é não piorar o estado de saúde dos doentes, a dos comentadores é não tornar as coisas mais confusas do que elas já são.

Recapitulando, Kirsten Harms, a Directora da Ópera de Berlim (em cima, na foto), foi avisada pelo Gabinete Federal de Investigação Criminal que, se a representação programada de Idomeneo se concretizasse, haveria um "risco incalculável de segurança".

Que faria o leitor se estivesse no lugar dela?

Em primeiro lugar, perguntaria à polícia se se encontrava em condições de eliminar o perigo pela raiz, ou pelo menos de controlá-lo. Pelos vistos, a polícia não pôde dar essa garantia.

Restava então a Kirsten Harms uma alternativa: ou mantinha a programação como se nada fosse, correndo o risco de ser responsabilizada pela eventual catástrofe; ou avisava o público da situação criada pelo alerta policial.

Uma terceira possibilidade consistiria em revistar todos os espectadores à entrada e encher o teatro de polícia durante o período em que a ópera se mantivesse em cena.

Ainda assim, a menos que as medidas excepcionais de segurança se mantivessem indefinidamente, não poderia prevenir a ocorrência de um ataque no futuro.

Como se vê, está aqui em causa um conflito de direitos. O público tem o direito de assistir aos espectáculos que entender, mas também tem o direito de lhes sobreviver. Qual deles deveria ter precedência - tal foi a questão com que Kirsten foi confrontada.

Há menos de dois meses, a polícia do Reino Unido soube que se preparavam atentados em larga escala contra aviões que deveriam levantar voo do país. Também aqui o direito à segurança se contrapôs a um outro, a liberdade de circulação - algo tão natural que já nem lhe damos muita importância, embora na China, por exemplo, ele não exista.

As duas situações diferem, entre coisas, nisto: ao passo que a polícia britânica fundamentou o alerta lançado, prendendo muita gente e apresentando a tribunal um certo número de suspeitos, a alemã foi incapaz de fazê-lo.

Não podemos, portanto, deixar de perguntar em que se baseou para afirmar que existia o perigo de um ataque. E, na ausência de uma explicação, não podemos deixar de notar que foi de facto a polícia quem pôs em causa a liberdade de expressão ao fazer o que fez do modo que o fez.

Ademais, é perturbador observar que muitas das pessoas que na actualidade mais se indignam com os ataques às liberdades de expressão não têm grande currículo para apresentar nessa matéria. Note-se, por exemplo, que as tiradas mais inflamadas a propósito deste caso vieram do líder da União Social-Cristã bávara (CSU), uma espécie de PSD Madeira lá do sítio, para quem a decisão da companhia de ópera revela "o medo extremo da violência" e que a qualificou como ato de "pura cobardia".

Juízo, juízo...

28.9.06

Comentadores, procuram-se



Há apenas um par de anos, alguns inteligentes domésticos gabavam a "competitividade fiscal" da Europa de Leste e incitavam-nos a baixarmos também os impostos para conseguirmos atrair mais investimento estrangeiro.

Mas eis que a crise política na Hungria revelou que o déficite das contas públicas daquele país em proporção do produto atingiu a extraordinária cifra de 10%.

Em resultado, a moeda sofreu uma drástica desvalorização e os investidores estrangeiros fogem apressadamente do país.

Já ouviram alguém comentar isto?

Os contentinhos



Aqui há uns anos, no final de um Portugal-Holanda disputado em Paris que acabou empatado, declaravam-se os jogadores portugueses muito contentinhos porque "tinham feito um bom resultado contra uma grande equipa".

Eis senão quando vem de lá o Sérgio Conceição com umas trombas deste tamanho, e, à pergunta sobre o que o incomodava, responde: "Estou chateado por não termos ganho".

Eu sei bem que o Jesualdo Ferreira é o menos responsável pelo despautério que é a actual equipa do FCPorto. Mas, se ele se declara feliz por ter jogado com "muita segurança" em casa contra o CSK e por ter deixado "boa imagem" em Londres contra o Arsenal, os adeptos têm o direito de se interrogarem se a equipa conseguirá marcar um só golo que seja na sua participação deste ano na Liga dos Campeões.

Valha a verdade, tendo em conta o abismo que hoje separa o Arsenal do FCPorto, perder só por duas bolas de diferença foi de facto um resultado lisonjeiro. Mas acontece que Jesualdo não é um comentador desportivo - é o treinador. Ele não pode transmitir aos seus jogadores a ideia de que é normal um desempenho tão sorumbático que nem sequer se deram ao trabalho de fazer faltas sobre os seus adversários.

Manifestamente, este FCPorto não se chateia por não ter ganho. Pelo contrário, fica contentinho se perder por poucos.

Era só o que faltava...



Um amigo que trabalha numa grande consultora multinacional costuma dizer-me que só fala mal do Estado quem não conhece as empresas privadas portuguesas.

Mesmo assim, não estou a disposto a subscrever o ponto de vista expresso no editorial do DN de ontem por Helena Garrido a propósito do novo ranking de competividade segundo o qual o que está mal em Portugal é o sector privado.

Será mesmo inevitável passarmos rapidamente de um extremo para o outro com esta facilidade? Será mesmo necessário encontrarmos um bode expiatório para os nossos males, que um dia será o Estado e no seguinte a classe empresarial?

Vivemos todos no mesmo país, partilhamos a mesma cultura, frequentamos a mesma escola, lemos os mesmos jornais e assistimos aos mesmos programas de televisão. Acaso seria de esperar, nestas condições, que uma parte da sociedade funcionasse muito bem e outra muito mal?

Quem conhece razoavelmente as instituições portuguesas dos mais diversos tipos, como eu conheço, sabe que, como seria de esperar, os principais defeitos são mais ou menos os mesmos em toda a parte, embora mediados por diversas estruturas de poder e diferentes sistemas de responsabilização colectiva e individual. Há organizações muito boas e organzações muito más, tanto no sector público como no privado.

Se insistirmos nesta absurda tendência de uma parte da nossa sociedade se congratular com os fracassos da outra, mereceremos sem dúvida ser universalmente considerados uns pobres patetas. Era só o que faltava que o coração se risse, como se não fosse nada com ele, das doenças de que padecem os pulmões.

27.9.06

Como tornar a velhice mais insegura

Este não é blogger, mas em contrapartida ganhou o Prémio Nobel da Economia em 2001. Eis o que Joseph Stiglitz, um tipo que não é bom de assoar, há algum tempo escreveu sobre os planos de privatização da Segurança Social.

A falsa promessa das pensões privadas

Leiam lá mais isto, do economista e blogger norte-americano Brad de Long.

26.9.06

O que é a "falência" da Segurança Social?



Volta não volta, ouvimos dizer que está iminente a falência da Segurança Social. Logicamente, as pessoas deduzem daí que, quando se reformarem, não vão receber as pensões a que julgam ter direito.

Que verdade há nisto? E o que é, ao certo, a falência da Segurança Social?

Como sabemos, há décadas que as contas do Estado são deficitárias, o que quer dizer que as despesas públicas são superiores aos impostos recolhidos. Curiosamente, isso não se passa nem nunca se passou com aquela parte do orçamento do Estado que gere a Segurança Social. É isso mesmo: vá-se lá saber porquê, essa parte do Estado tem sido administrada com mais rigor do que o Estado no seu conjunto.

Assim, as contribuições que as empresas e os trabalhadores descontam sempre chegaram e sobraram para pagar as reformas e as restantes despesas cobertas pela Segurança Social, e o remanescente foi depositado num fundo de capitalização que deverá dar uma ajuda na eminência de dias mais difíceis.

(Aqui convém fazer uma pausa para esclarecer que só não foi assim nos governos de Cavaco Silva, que não só resolveram ir tirar dinheiro dessa reserva da Segurança Social para fazer face a outras despesas do Estado como nunca o repuseram. Na prática, para além de porem em causa o equilíbrio futuro do sistema, foi como se aplicassem às escondidas um imposto regressivo sobre os descontos dos trabalhadores para as suas reformas. Esperto que num alho, esse Dr. Cavaco Silva, que agora, lá em Belém, se preocupa tanto com este assunto!)

Por esta altura deve estar claro que aquilo a que abusivamente se chama “falência” da Segurança Social é apenas a perspectiva de poder vir a acontecer nessa parte do Estado aquilo que há longos anos acontece no conjunto do Estado, ou seja, apresentar despesas superiores às suas receitas. Ou seja, a Segurança Social pode vir a "falir" no mesmo sentido em que hoje estão "falidos" a Saúde, a Educação, a Justiça, os Transportes, as Obras Públicas, o Exército, a Polícia, e por aí fora.

Se - repito: se - algum dia isso vier a acontecer, tudo o que o Estado terá a fazer será poupar noutras coisas, tais como submarinos, estádios de futebol ou transferências para a Região Autónoma da Madeira, para repor o equilíbrio abalado da Segurança Social.

Não estou a dizer que é desejável ou sequer necessário que o sistema da Segurança Social venha a ser deficitário.

Pretendo apenas demonstrar que a alegada "falência" (ou, pior ainda, a "bancarrota") da Segurança Social não passa de um papão usado para justificar a pretensa necessidade de desmantelar o sistema de solidariedade social que hoje vigora na generalidade dos países civilizados.

Suponho ter provado que a simples utilização da expressão "falência da Segurança Social" é sinónimo de uma atitude de desonestidade intelectual que deve ser denunciada.

25.9.06

Os bem-aventurados



Se já é um bocadinho estranho um fórum de debate apresentar publicamente conclusões e recomendações ao governo vinculativas de todas as pessoas que nele participaram, ainda o é mais que elas já estejam prontas e distribuidas à imprensa antes de as discussões terem sequer começado.

Tanto deveria bastar para nos convencer de que o Compromisso Portugal não é um mero movimento de opinião de cidadãos preocupados com o futuro da pátria, mas um grupo de pressão politicamente motivado e dirigido com uma tal mão de ferro que nenhum dos quatro representantes que se deslocaram à SIC Notícias se desviou um milímetro da cassete oficial do partido.

O Compromisso Portugal propõe uma série de receitas infalíveis para reorganizar o Estado e pôr a economia a funcionar. Esquecem-se de que, recorrendo o Estado português regularmente aos mesmos consultores que apoiam as empresas privadas, já conhece de cor a lenga-lenga do outsourcing, da criação de valor para os stakeholders e da orientação para os resultados.

O que torna simultaneamente difícil e aliciante a política é que ela lida sobretudo com valores e interesses, sendo por vezes destrinçar entre uns e outros. Bem-aventurados os que acreditam que a política é uma mera técnica de gestão das coisas, porque deles é o reino da doce ilusão.

A política do medo



Há dias, uma amiga surpreendeu-me ao comunicar-me que decidira reformar-se antecipadamente com 60 anos de idade, aceitando para isso um considerável corte na sua pensão. Mais chocado ainda fiquei quando ela se justificou deste modo: "Temi acabar por não receber nada se esperasse pelos 65 anos..."

A minha amiga é uma pessoa inteligente e bem informada, que desempenhou funções de gestão durante a maior parte da sua vida profissional. Ainda assim, não consegue entender as discussões que ouve sobre a alegada "falência da segurança social". Vai daí, tomou uma decisão errada e irreversível de que irá arrepender-se o resto da vida. Tratando-se de uma das maiores especialistas que o país tem na sua área profissional, perde ela e perdemos nós todos.

Ora, se isto acontece com uma pessoa cujo nível cultural se situa muito acima da média, que efeitos não terá este clima de medo irracional que se criou em torno do tema das pensões de reforma sobre a generalidade da população?

É chegado o momento de pôr os pontos nos is. O facto inquestionável é este: o envelhecimento da população exige que se reforme o sistema da segurança social, dado que haverá menos gente activa para pagar as pensões dos que se retirarem do mercado de trabalho. Por conseguinte, temos que estar preparados para gerir o sistema com alguma flexibilidade, principalmente no que respeita à idade normal de reforma.

Tudo o que vai para além disto não passa de pura especulação. Quanto mais dilatamos no tempo as projecções de evolução futura do sistema, mais incertas elas se tornam, dado o número de variáveis envolvidas e a forma não-linear como interagem umas com as outras. Por exemplo, o modo como crescerá (ou não) a produtividade dos futuros trabalhadores activos faz toda a diferença para a sustentabilidade do sistema.

Uma coisa sabemos, porém: a criação de um ambiente de pânico leva as pessoas a tomarem decisões erradas no que respeita à sua oferta de trabalho, ao seu nível de consumo, à sua poupança e ao seu investimento, como aconteceu à minha amiga. E isso só contribui para agravar os nossos problemas económicos.

Ainda há quatro anos, o PP candidatava-se às eleições prometendo aumentos de reformas para o regime não-contributivo e a contagem do tempo do serviço militar para efeito da reforma.

Esses e outros disparates acabaram de vez e deram-se os primeiros passos para reformar o sistema no sentido correcto. Eis senão quando o PSD sai à liça argumentando que as medidas do governo Sócrates são meros paliativos que só resolvem as coisas no curto prazo e propondo que o sistema da segurança social passe a incluir uma parte de capitalização.

Antes de mais, é interessante notar que, para o PSD, "curto prazo" significa, no caso presente, meio século, o que torna as suas propostas manifestamente urgentes e oportunas.

Mas o mais interessante é a defesa que o PSD faz da sua proposta. Segundo os sociais-democratas, a introdução de uma componente de capitalização elimina o risco de os trabalhadores que hoje se encontram no início da sua carreira contributiva virem a receberno futuro pensões muito desvalorizadas em relação às suas legítimas expectativas.

Este argumento não tem ponta por onde se lhe pegue. Vejamos porquê:

1. Tanto no regime redistributivo como no contributivo, os reformados recebem uma parcela do valor produzido pelos activos seus contemporâneos, não do valor produzido no passado. Logo, se a estrutura etária da população envelhecer, o problema é idêntico em ambos os sistemas.

2. Se os trabalhadores descontarem para fundos de pensões privados e esses fundos falirem ou forem mal geridos, eles podem ficar sem qualquer reforma digna desse nome. É claro que, nessas condições, o Estado será chamado a suprir as pensões em falta, desequilibrando as contas da segurança social. Isto já aconteceu nos EUA, e teme-se que volte a acontecer em breve no Reino Unido.

3. Financiar a transição para um regime de semi-capitalização emitindo dívida pública significa tornar imediatamente deficitário o sistema da segurança social no único intuito de favorecer as empresas gestoras de fundos de investimento.

4. O financiamento dessa dívida pública através de impostos torna ainda mais injusto o já extremamente injusto regime fiscal português.

Pergunta-se porque é que nos havemos de preocupar com a possibilidade de os fundos de pensões poderem no futuro vir a ser geridos por privados, se as empresas privadas prestam excelentes serviços ao Estado em tantas áreas e podem vir a prestá-los em muitas outras.

A resposta é que, em todas essas situações, o Estado não se arruina, os risco não se agravam e a injustiça social não aumenta pela circunstância de a produção desses bens e serviços ser privada. Não seria esse o caso se a proposta de reforma da segurança social do PSD fosse avante.

23.9.06

Elogio da generosidade

"On doit être fort obligé à un homme tel que lui, quand il veut bien, pour l'utilité publique, faire quelque chose qui ne soit pas de génie."

Fontenelle: Éloge de Monsieur Leibniz.

Louvor do trabalho infantil



É surpreendente descobrir um futebolista que aparenta ter genuíno prazer em jogar à bola.

22.9.06

Luisão, Miguelito, Manú e Micoli

O Benfica tem um problema onomástico. Parecendo que não, apresentar em campo uma linha de jogadores cujos nomes fazem recordar uma companhia de circo não pode deixar de intranquilizar a equipa e de reduzir os seus níveis de confiança.

Só isso pode explicar a tragédia que esta noite se consumou na Mata Real.

A mistificação do terrorismo apocalíptico



Compreende-se a comoção causada por uma mortandade que vitima de um só golpe quase 3 mil pessoas. É por isso mesmo, aliás, que os terroristas preferem a espectacularidade de acções desse tipo a assassinatos pontuais de cidadãos em vielas obscuras, longe dos olhares da multidão.

Sucede, porém, que uma das contrapartidas de uma tal estratégia é que não é possível fazer coisas dessas todos as semanas, nem todos os anos, nem mesmo todos os cinco anos. Ora, se 3 mil mortos num só dia impressionam, já começam a chocar menos se os dividirmos pelos 1.825 dias que desde então decorreram.

Outro critério de comparação consiste em cotejar as 3 mil vítimas do WTC com as 40 mil que anualmente perdem a vida nos EUA em consequência de acidentes de viação. Esta comparação reforça a ideia de que, por muito criminoso que o terrorismo seja, faz poucas vítimas em termos relativos, especialmente se nos lembrarmos que 40 mil mortos por ano se traduzem em 200 mil ao cabo de cinco anos.

Esta comparação parece à primeira vista absurda, dado que num caso as mortes foram deliberadamente provocadas, e no outro não. Todavia, em termos práticos, ela faz todo o sentido. Tal como o terrorismo, a sinistralidade rodoviária não admite uma solução definitiva. Pode-se prevenir, pode-se reprimir, pode-se minorar o seu impacto, mas, em última análise, não se pode eliminar.

Repito: apesar de toda a sua espectacularidade, as consequências humanas do terrorismo são relativamente pequenas, pouco mais do que um arranhão que afecta as sociedades contemporâneas. É apenas mais um risco com o qual temos que viver, bem vistas as coisas muito menor do que, por exemplo, os da SIDA ou do aquecimento global.

Por que deveremos então dedicar uma parte desproporcionada das nossas atenções, dos nossos esforços e dos nossos recursos a combater um risco ligeiramente superior ao de apanharmos com um vaso de flores na cabeça quando passeamos pela rua? A importância hoje concedida ao terrorismo afigura-se irracional dada a baixíssima probabilidade de sermos por ele afectados. Essa irracionalidade manifesta-se com toda a clareza, por exemplo, quando se verifica que o receio do terrorismo é mais acentuado nas aldeolas do Midwest do que em Nova Iorque ou em LA.

Esta desproporção é tão evidente que, desde o princípio, foi agitado um fantasma adicional para fazer parecer infinitamente mais grave a ameaça terrorista. Refiro-me ao terrorismo apocalíptico, algo de que, entre nós, já só Pacheco Pereira fala.

O problema, dizem-nos, é que o terrorismo contemporâneo pode recorrer a armas nucleares, químicas ou biológicas. Se estão bem lembrados - mas é claro que não estão... - foi este suposto elo entre o terrorismo da Al-Qaeda e as ditas armas de destruição massiva que forneceu o pretexto para o ataque ao Iraque.

Mas, afinal, o que nós vemos é que os terroristas continuam a preferir a tecnologia do século dezanove, quando não simples facas, como aconteceu no ataque aos aviões em 11 de Setembro. A coisa mais próxima do terrorismo apocalíptico até hoje foi a utilização do gás sarin no metro de Tóquio, que nunca teve réplicas. Quanto à ameaça de os terroristas se passearem por aí com bombas atómicas nos bolsos, parece que não passa de mera fantasia.

Poderemos então descartar definitivamente essa possibilidade? O problema - e aqui se revela a natureza da chantagem ideológica a que nos encontramos submetidos - é que, obviamente, ninguém está em condições de garantir que uma coisa dessas não pode em absoluto suceder um dia. É possível que aconteça, embora não muito provável.

Assim sendo, que importância real deveremos atribuir ao perigo do terrorismo apocalíptico? Racionalmente, não muito, dado que se trata de um grande risco com uma probabilidade extremamente pequena, semelhante a tantos outros de que nem sequer se fala.

É completamente irracional, por conseguinte, encarar a luta contra o terrorismo como a prioridade absoluta do mundo de hoje em detrimento de tudo o resto. Os problemas centrais do nosso planeta continuam a ser a pobreza, a doença, a privação da liberdade, os atentados à dignidade humana e a destruição do ambiente, para mencionar apenas os mais evidentes. São eles, pois, que devem ser urgentemente recolocados no centro da nossa agenda.

21.9.06



Hieronymus Bosch: As Tentações de Santo Antão (detalhe).

18.9.06

Caça às bruxas



Comenta Filipe Escobar de Lima na secção desportiva do Público de hoje:
"Para apimentar a polémica nada melhor que ouvir as palavras pífias e apócrifas do "pivôt" do Paços de Ferreira. Ronny, ao velho estilo marxista, tenta repisar a verdade, repetindo a mentira até à exaustão para conseguir torná-la finalmente verdadeira."
Obviamente, se o moço não sabe o que significa "pífio" ou "apócrifo", também não se poderia esperar que soubesse o que "marxista" quer dizer.

Mas o que eu gostaria de relevar é que no Público, pelos vistos, agora também para escrever sobre futebol é preciso passar primeiro por um processo de desinfestação ideológica. Até o pobre ponta-de-lança do Paços de Ferreira já foi apanhado nesta caça às bruxas...

O bl-g--x-st- errou

O leitor deste blogue Frederico Pinheiro de Melo fez-me notar que o tríptico de Bosch de que tenho reproduzido alguns detalhes nos últimos dias não se intitula "A Tentação de Santo António", mas sim "As Tentações de Santo Antão."

Agradeço a correcção, que entretanto incorporei nos posts anteriores.

14.9.06

Eu vi, eu li

Voltando à vaca fria, a grande diferença entre Pacheco e Soares é que Pacheco pensa sentado, ao passo que Soares pensa de pé. Por isso, Soares diz: "Eu sei, eu estive lá". Ao que Pacheco riposta: "Eu li, as coisas são assim." É típico dos pensadores peripatéticos errarem muito nos detalhes, mas acertarem no essencial. Inversamente, os talmudistas sabem a lição toda, mas não entendem o que se passa à sua volta: a natureza favoreceu-lhes o entendimento, mas privou-os do discernimento.


Hieronymus Bosch: As Tentações de Santo Antão (detalhe).

Danos colaterais



A duvidosa bênção dos recursos petrolíferos, certas peculiaridades da religião islâmica, cicatrizes infectadas do período colonial, a nostalgia de um passado glorioso (em parte fantasiado) uma acentuada tendência para a auto-vitimização – todas essas e outras causas contribuíram para dificultar a transição das sociedades islâmicas para a modernidade. O conflito israelo-árabe desempenha em tudo isto, não haja dúvidas, um mero papel catalizador.

Apesar de tudo, a Turquia e a Indonésia, precisamente dois dos maiores países muçulmanos, encontram-se bem avançados na via daquilo a que, à falta de melhor palavra, designaremos por ocidentalização. Por outro lado, Marrocos, Síria, Egipto e Jordânia, entre outros, são hoje países onde predomina largamente o laicismo. Acresce que, como o revelam as sondagens de opinião, o Islão moderado é maioritário em quase todos os países. Mas também houve retrocessos traumatizantes, dos quais o mais flagrante foi o do Irão há duas décadas atrás.

Uma parte do Islão não só resiste a este movimento, como intensifica e radicaliza a sua resistência à medida que se sente mais isolado. É nesse terreno que se move a Al-Qaeda. Tal como os outros movimentos de fanáticos islâmicos, a Al-Qaeda tem como principal inimiga a crescente laicização das sociedades muçulmanas. Ao contrário delas, porém, concebeu um plano de acção à escala mundial que privilegia as acções espectaculares contra os países ocidentais como meio de demonstrar que é possível vencer.

Assim, os atentados que promove revelam antes de mais a existência de um conflito extremado no seio do próprio Islão. Quando faz explodir aviões ou comboios, o propósito principal da Al-Qaeda é recrutar adeptos para a sua causa ao mesmo tempo que põe em xeque os laicos e os moderados. Não admira que a Al-Qaeda não tenha nenhuma exigência a formular aos países ocidentais, pois o seu programa é a restauração do poder do califado no interior do Islão.

Por muito muito que isso repugne à nossa orgulhosa consciência ocidental, a Al-Qaeda está-se nas tintas para o nosso estilo de vida. As vítimas do 11 de Setembro não passaram, na verdade, de danos colaterais na luta sem quartel que divide interiormente os países muçulmanos e que hoje tem no Iraque a sua manifestação mais evidente.

13.9.06

O debate das pensões

"Na verdade, as consequências do envelhecimento da população e os regimes de pensões estão certamente entre os temas mais estudados internacionalmente desde há alguns anos. As principais conclusões desses estudos são a de que a capacidade de governação e o crescimento económico são os factores mais importantes para a solução - ou não - do problema e de que o debate entre os sistemas de repartição e de capitalização é secundário."

Teodora Cardoso: O debate das pensões, Jornal de Negócios, 12.9.06.

12.9.06

Em guerra contra o deserto



Quando uma praga de aeronaves se abate sobre a cidade dos homens, o povo busca uma explicação e implora conselho.

A América está quase ininterruptamente em guerra desde que se tornou independente. É essa a sua crença natural, a sua mezinha preferida. Como, ainda por cima, há quase duzentos anos não era atacada no seu território, a empresa bélica pareceu inteiramente justificada.

Poucas horas passadas, o inimigo tinha já um nome mágico - Al-Qaeda - e uma guerra mais promissora do que as guerras contra o tabaco ou contra a droga estava declarada. O caminho da salvação fora traçado e tudo o que se seguisse dispensava qualquer outra vindicação.

Mas a guerra contra o terrorismo - ou, pior ainda, contra o terror - é apenas uma ficção conveniente, que, por natureza, não pode ser travada nem vencida. Faz lembrar a história contada por Heródoto daquele povo que, vendo as culturas e os animais tragados por uma tempestade de areia, resolveu partir em guerra contra o deserto - e nunca mais voltou.

Não foi erro, foi mentira



Não, meus amigos. Não se trata de nebulosas insinuações insusceptíveis de serem provadas. Trata-se de factos.

No seu livro de há dois anos, Richard Clarke, Conselheiro Nacional de Segurança de quatro presidentes, denunciou o total desinteresse de Bush, Cheney, Rumsfeld, Rice e Wolfwitz pela Al-Qaeda, tanto antes como depois do 11 de Setembro. Os factos relatados não só não foram desmentidos, como se viram posteriormente confirmados por outros testemunhos.

Estas coisas são sabidas em toda a parte, menos talvez por cá, que temos a maior concentração de neocons por centímetro quadrado de opinião publicada.

Ora bem, antes que se ponham a gritar como virgens apalpadas, eu adianto a minha interpretação. Para Bush e companhia, a Al-Qaeda nunca passou de um pretexto para outras cavalarias. Precisamente por isso, a grande questão da política externa de hoje é a desmontagem dessa agenda oculta que procura levar o mundo por caminhos ínvios.

Repito: a invasão do Iraque não foi um erro, foi um acto calculado suportado numa mentira premeditada que colocou a América e o mundo sob chantagem.

É preciso continuar a bater neste ceguinho, porque ele é manhoso e, se poupado, não perderá a oportunidade de contra-atacar.

Mais caridade cristã

Os amigos de Soares deveriam dissuadi-lo de aceitar participar em debates como o de ontem à noite.

Ele continua a pensar bem, mas já não se exprime com a mesma felicidade, o que se torna mais evidente à medida que se acumula o desgaste físico e emocional que um programa daqueles impõe aos seus participantes.

Caridade cristã

Assistindo a alguns breves minutos do Prós e Contras de ontem, dei por mim a lamentar que uma pessoa da qualidade intelectual do Pacheco Pereira se tenha deixado, por teimosia e orgulho, encurralar a propósito da política externa americana num beco sem saída onde cada vez mais tem por únicos companheiros os amigos políticos de Paulo Portas, esses mesmos cujas ideias perniciosas ele foi o primeiro a denunciar quando o seu PSD, então no governo, deles se aproximou.

Enfim, temos todos a obrigação de fazer qualquer coisa para ajudar Pacheco Pereira a sair com elegância desta situação tão embaraçosa para ele quanto para nós.

As imagens e as coisas



Quem por acaso deparasse com aquelas imagens na televisão fora de contexto e sem escutar o comentário, poderia tomá-las pelo trailer de um novo filme a estrear em breve ou por um spot publicitário de mau gosto, porque tendemos a encaixar as nossas percepções no quadro que parece ser-lhes mais apropriado.

O belo horrível não comporta em si mesmo qualquer novidade: há séculos que entrou nos nossos hábitos de sofisticados consumidores de cultura. Mas atirar realmente aviões contra arranha-céus parece ideia de uma perversa alma de artista demente. Daí a irresistível tentação de mirar uma e outra vez aquelas imagens, de as olharmos incansavelmente como se a cada olhar descobríssemos algo que ainda não víramos, como se dessa viciada contemplação esperássemos a emergência de algum oculto significado que teima em escapar-nos.

O efeito hipnótico dessas imagens oculta mais do que revela. Algumas pessoas declaram-se ofendidas por uma banda desenhada, ao ilustrar o momento do impacto, recorrer a onomatopeias como "Blam!" ou "R-r-rumble!" para sugerir o estrondo do impacto. Uma coisa vos garanto: ninguém que lá não tenha estado consegue imaginar a fúria destruidora daquele som, os ferros a guincharem, os vidros a projectarem-se, o fogo a irromper sem aviso. Para os que não morreram imediatamente, esse foi o primeiro indício cruel de que a sua hora chegara.

Acredito que tanto o heroísmo militar como a indiferença perante os efeitos da guerra se alimentam em grande parte da falta de imaginação. A morte é concebida na figuração a que nos habituaram os velhos westerns: um tipo apanha um tiro, grita "ai, ai", e cai morto. Se tudo fosse assim tão fácil, tão limpo, tão... sem dor...

É preciso voltar às descrições da Ilíada para nos recordarmos que a guerra é um pedaço de ferro a penetrar num pedaço de carne, olhos vazados, miolos esparramados, fígados perfurados, vértebras esmigalhadas. Tudo isso, e muito mais, sucedeu nesse dia, numa escala dificilmente concebível, a gente simples que, como todos os dias, se preparava para começar uma jornada de honesto trabalho.

Depois, houve os outros, a imensa maioria, que, não tendo perecido de imediato, sofreu na pele a tortura durante horas - senão dias para os que ficaram sepultados sob os escombros. Lembremos os que ficaram presos nos elevadores, os que, emparedados nos seus escritórios, assistiram impotentes ao avanço das chamas, os que, incapazes de resistir por mais tempo ao sofrimento, encontraram breves segundos de alívio saltando pelas janelas para a morte certa, os que morreram queimados pelo fogo, intoxicados pelo fumo, asfixiados pela poeira.

Ninguém poderia descrever a imensa concentração de dor que ocorreu naquele dia e naquele lugar, nem que para isso gastasse toda a sua vida.

Boa noite, e bons sonhos.

11.9.06



Hieronymus Bosch: As Tentações de Santo Antão (detalhe).

10.9.06

Manhattan Project

Clara Ferreira Alves, no Expresso de sábado:
Mas, se o 11 de Setembro representa para nós neste século XXI a marca da barbárie, como deixar de lado «Fat Man» e «Little Boy»? Como esquecer a ruína caída do céu de que falou Truman, nos mesmos termos em que Bin Laden e Al-Zawahiri falam da catástrofe por vir que se abaterá sobre a cabeça da América se não se converter, se não aceitar as «condições» deles? Não se trata de equiparar ou fazer equivaler a morte e a destruição, trata-se apenas de entender de uma vez por todas que contamos melhor os nossos mortos do que os mortos dos outros, e que, de facto, foi a América o único país, até hoje, a utilizar armas nucleares em tempo de guerra. Importa também reflectir sobre isto quando falamos do Irão e da megalomania de Ahmadinejad. O problema dos dois pesos e das duas medidas invadiu e tomou conta do discurso mediático e contaminou o discurso mediático aprendido com o Ocidente.

O clube dos suicidas



Tal como Boseman não ficou conhecido pelas suas fintas estonteantes, o Gil Vicente também não entrará para a história do futebol pelos troféus conquistados.

Mas conseguirá eventualmente, à custa de fazer-se explodir, tornar-se mundialmente famoso (em mais uma reedição da lenda de David e Golias) como o pequeno clube de província que conseguiu humilhar a poderosa FIFA.

O Gil Vicente imita, assim, a táctica dos bombistas suicidas, com a vantagem de que, em vez de deixar atrás de si um rasto de morte e destruição, obrigará o futebol a respeitar as regras do Estado de Direito.

E que ganharão os de Barcelos com este gesto? Fundamentalmente, nada. Como se depreende das declarações inflamadas dos seus dirigentes e adeptos - também elas sintomaticamente similares às gravações em video deixadas pelos bombistas suicidas - satisfá-los o sentimento de que assim terão lavado a honra ofendida do clube. No paraíso a que aspiram, os anjos entoarão eternos louvores à glória destes homens que não recuaram perante nada para afirmarem a sua omertà.

9.9.06

O que fazem os dirigentes desportivos?

Em que ocupam o seu tempo os dirigentes desportivos? Quem tenha estado atento aos meandros do "Caso Mateus" e do "Apito Dourado" sabe que os pobres têm uma agenda extremamente sobrecarregada.

Ora vejam. Eles assistem aos treinos, dão dois dedos de conversa com os treinadores, almoçam, assinam cheques, recebem agentes de jogadores, telefonam aos árbitros, petiscam, dão entrevistas aos jornais desportivos, fecham contratos ao telemóvel, jantam, participam em debates televisivos, encontram-se nos bares para assinar as actas das reuniões, discutem transferências e participam nas reuniões da UEFA. No meio destes afazeres, quando o tempo o permite, combinam encontros com umas gajas.

Ora sucede que os dirigentes dos clubes, das federações e da Liga são, na sua esmagadora maioria, empresários, juizes, deputados, comerciantes, advogados e autarcas, que trouxeram para o futebol o mesmo estilo de trabalho (chamemos-lhe assim) que praticam nas suas actividades profissionais originárias.

Eles são, ao que tudo indica, adeptos do management by walking around, do networking, de estruturas organizacionais leves e horizontais. Encorajam a informalidade e a iniciativa individual, prezam a gestão por objectivos e a responsabilização pelos resultados. No plano dos princípios, não se deixam prender por dogmas ou ideias feitas. Colocam acima de tudo a lealdade ao grupo. Privilegiam as redes efémeras e ágeis. Acreditam que a execução deve ter primazia sobre a estratégia. Movimentam-se num mundo sem fronteiras, no qual o dinheiro e as mercadorias circulam a alta velocidade.

Numa palavra, são pessoas modernas e desempoeiradas, perfeitamente sintonizadas com os mais actualizados paradigmas da gestão - e nós estamos fritos por vivermos num país comandado por gente assim.


Ed Ruscha: If.

Casos



Não casos irrelevantes. O que há é maneiras irrelevantes de tratar certos casos.

8.9.06

"Já Mateus não sou..."

"Mateus? Oui, c'est moi..."

"It is I, Mateus"

Nukes



O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, assinado em 1968 e prorrogado em 1993, foi sem dúvida uma boa ideia. Infelizmente:

1. Os EUA não cumpriram a sua parte do acordo, instalando bombas atómicas em vários países da NATO.

2. O Estado de Israel, que possui armas atómicas há uns bons 20 anos, jamais foi instado pelos seus aliados a assiná-lo.

3. A Coreia do Norte, que o subscrevera, mudou depois de ideias e possui hoje bombas atómicas.

4. A Índia e o Paquistão sempre recusaram o acordo. Ambos possuem armas nucleares. Na sua última visita à Índia, Bush não só prometeu assistência à Índia no seu programa de desenvolvimento nuclear como aceitou que ela produza mais bombas atómicas. Ninguém pressiona o Paquistão para que se desarme.

De modo que, no presente momento, a situação é mais ou menos esta: se um país for aliado dos EUA, pode ter bombas atómicas; se não for, não pode.

Convém lembrar que, nos termos do tratado: "Nothing in this Treaty shall be interpreted as affecting the inalienable right of all the Parties to the Treaty to develop research, production and use of nuclear energy for peaceful purposes without discrimination and in conformity with articles I and II of this Treaty." Logo, nem o Irão nem qualquer outro país pode ser impedido de desenvolver programas nucleares pacíficos.

Argumenta-se, porém, que um país rico em petróleo como o Irão não precisa de energia nuclear para nada. Este argumento vale tanto como afirmar-se que um país vinícola não deve organizar campanhas contra o alcoolismo. Se o Irão acredita que o preço do petróleo vai continuar a aumentar, será mais inteligente exportá-lo que consumi-lo.

Acresce que não foi até ao momento encontrado pelos inspectores internacionais qualquer indício de que o Irão possua um programa para o desenvolvimento de armamento nuclear. Se o Irão decidisse agora enveredar por esse caminho, necessitaria de um período de seis a dez anos para ter as primeiras bombas atómicas.

Disto isto, a questão seguinte é esta: poderemos confiar que o Irão não vai dotar-se nos próximos anos de armamento nuclear? A meu ver, não podemos. Em primeiro lugar, por causa da genericamente inflamada retórica belicista que Teerão diariamente alardeia. Em segundo lugar, e principalmente, pelas explícitas ameaças dirigidas contra o Estado de Israel.

Que fazer, então? Comentadores de gatilho ligeiro recomendam sanções pesadas como mero prolegómeno a um ataque militar contra as instalações nucleares iranianas. Quais os méritos dessa alternativa? Em primeiro lugar, tendo em conta que o governo iraniano está prevenido contra essa eventualidade, não é seguro que ela produza o resultado desejado. Em contrapartida, é seguro que, aparentando dar razão aos que afirmam ser a bomba atómica indispensável à segurança do país, ela tornará a vida mais difícil para as forças reformistas do país.

Como a pura e simples invasão do Irão não se afigura viável, resta, para já, a via das sanções, embora não se deva esperar demasiado da sua eficácia.

Imaginemos, então, que se concretiza o pior cenário, e que, apesar de todos os esforços em contrário da comunidade internacional, o Irão cria de facto um arsenal nuclear. Felizmente, a Guerra Fria ensinou-nos como lidar com essa situação. Um sistema de ameaças credíveis conducente à Destruição Mútua Assegurada deu provas de constituir uma estratégia dissuassora eficaz. Funcionou com a União Soviética, nada faz supor que não funcione com o Irão.

Em última origem, o factor crucial será a evolução interna do Irão. Sabemos que a invasão do Iraque aumentou a popularidade do sector radical e esvaziou para já as esperanças dos reformistas. Mas o Irão é uma sociedade muito mais complexa e desenvolvida do que o Iraque, dotada de uma classe média poderosa e de uma elite cultural sofisticada e influente. Tem melhores condições para evoluir para um Estado de Direito, primeiro, e para uma sociedade democrática, depois, do que qualquer outro país da região à excepção do Líbano.

Em vez de pensarmos em impor a democracia a quem não está para aí virado, deveríamos antes cuidar de ajudar, se possível com discrição, todas as forças susceptíveis de favorecerem a abertura do país. Sem esquecer, como bem sabem os médicos, que a forma mais elementar de fazer bem consiste em começar por não fazer mal.

7.9.06



John Baldessari.

Sobre um comentário de Amartya Sen



O individualismo extremo resultante da dissolução dos laços ancestrais suscitou o aparecimento de tribos contemporâneas de cariz urbano, instável e transitório, de que os bloggers são um notável exemplo.

Esses grupos sociais de tipo novo são sem dúvida portadores de apreciáveis virtualidades. Todavia, nos grupos humanos recém emergidos das sociedades tradicionais, as tribos pré-modernas, assentes na afinidade do sangue ou da religião, ainda parecem ser a forma mais natural de combater a solidão e de dar resposta às necessidades de pertença.

Assim, ao lado de numerosos grupos abertos a novas experiências e modos de vida, surgiram e enquistaram-se outros que, partilhando embora o nosso quotidiano, vivem existências paralelas cujo traço mais marcante é o receio da contaminação ideológico-cultural.

Num artigo publicado em 22 de Agosto no Financial Times, e na sequência de outras recentes tomadas de posição (nomeadamente no New Republic e no Guardian), Amartya Sen pôs o dedo na ferida quando notou que, quando se fala de multiculturalismo, tem-se muitas vezes em vista uma absurda partição da sociedade em sub-sectores que, tanto quanto o permite a vida nas sociedades contemporâneas, não só se ignoram mutuamente como tiram daí motivo de orgulho e fundamento de identidade. A essa distorção chama ele, muito adequadamente, “monoculturalismo plural”.

Ora, o multiculturalismo dos guetos culturais é não só perigoso nas suas consequências como indesejável enquanto ideal: sem valores partilhados, não pode haver sociedades humanas estáveis; sem intercâmbio cultural, triunfa a estreiteza de vistas que ameaça a liberdade e nos condena ao definhamento espiritual.

1.9.06



John Baldessari: Horizontal Man, 1984.

In memoriam

Naturalmente, é possível recordar algumas coisas boas a propósito d'O Independente: a escrita desempoeirada, o grafismo ágil, o Miguel Esteves Cardoso...

Mas não se deve esquecer que coube também a O Independente a duvidosa distinção de ter introduzido em Portugal a política suja, bem expressa no sistemático recurso à desinformação e à calúnia, principalmente dirigidas contra Cavaco Silva, para abrir caminho à mesquinha ambição política de Portas, o pequeno lorde.

Foi por isso que, depois de ter chegado a assustar O Expresso, de há uma década para cá entrou numa fase de decadência irreversível. Cá se fazem, cá se pagam.

Não tarda nada, cai um avião



John Baldessari: "I love clichés. They're truths that have endured but have lost their value and their meaning. Reinventing clichés with energy is pretty good if you can do it. It's a great artist's task to take a cliché and reinvest it with meaning".