22.9.06
A mistificação do terrorismo apocalíptico
Compreende-se a comoção causada por uma mortandade que vitima de um só golpe quase 3 mil pessoas. É por isso mesmo, aliás, que os terroristas preferem a espectacularidade de acções desse tipo a assassinatos pontuais de cidadãos em vielas obscuras, longe dos olhares da multidão.
Sucede, porém, que uma das contrapartidas de uma tal estratégia é que não é possível fazer coisas dessas todos as semanas, nem todos os anos, nem mesmo todos os cinco anos. Ora, se 3 mil mortos num só dia impressionam, já começam a chocar menos se os dividirmos pelos 1.825 dias que desde então decorreram.
Outro critério de comparação consiste em cotejar as 3 mil vítimas do WTC com as 40 mil que anualmente perdem a vida nos EUA em consequência de acidentes de viação. Esta comparação reforça a ideia de que, por muito criminoso que o terrorismo seja, faz poucas vítimas em termos relativos, especialmente se nos lembrarmos que 40 mil mortos por ano se traduzem em 200 mil ao cabo de cinco anos.
Esta comparação parece à primeira vista absurda, dado que num caso as mortes foram deliberadamente provocadas, e no outro não. Todavia, em termos práticos, ela faz todo o sentido. Tal como o terrorismo, a sinistralidade rodoviária não admite uma solução definitiva. Pode-se prevenir, pode-se reprimir, pode-se minorar o seu impacto, mas, em última análise, não se pode eliminar.
Repito: apesar de toda a sua espectacularidade, as consequências humanas do terrorismo são relativamente pequenas, pouco mais do que um arranhão que afecta as sociedades contemporâneas. É apenas mais um risco com o qual temos que viver, bem vistas as coisas muito menor do que, por exemplo, os da SIDA ou do aquecimento global.
Por que deveremos então dedicar uma parte desproporcionada das nossas atenções, dos nossos esforços e dos nossos recursos a combater um risco ligeiramente superior ao de apanharmos com um vaso de flores na cabeça quando passeamos pela rua? A importância hoje concedida ao terrorismo afigura-se irracional dada a baixíssima probabilidade de sermos por ele afectados. Essa irracionalidade manifesta-se com toda a clareza, por exemplo, quando se verifica que o receio do terrorismo é mais acentuado nas aldeolas do Midwest do que em Nova Iorque ou em LA.
Esta desproporção é tão evidente que, desde o princípio, foi agitado um fantasma adicional para fazer parecer infinitamente mais grave a ameaça terrorista. Refiro-me ao terrorismo apocalíptico, algo de que, entre nós, já só Pacheco Pereira fala.
O problema, dizem-nos, é que o terrorismo contemporâneo pode recorrer a armas nucleares, químicas ou biológicas. Se estão bem lembrados - mas é claro que não estão... - foi este suposto elo entre o terrorismo da Al-Qaeda e as ditas armas de destruição massiva que forneceu o pretexto para o ataque ao Iraque.
Mas, afinal, o que nós vemos é que os terroristas continuam a preferir a tecnologia do século dezanove, quando não simples facas, como aconteceu no ataque aos aviões em 11 de Setembro. A coisa mais próxima do terrorismo apocalíptico até hoje foi a utilização do gás sarin no metro de Tóquio, que nunca teve réplicas. Quanto à ameaça de os terroristas se passearem por aí com bombas atómicas nos bolsos, parece que não passa de mera fantasia.
Poderemos então descartar definitivamente essa possibilidade? O problema - e aqui se revela a natureza da chantagem ideológica a que nos encontramos submetidos - é que, obviamente, ninguém está em condições de garantir que uma coisa dessas não pode em absoluto suceder um dia. É possível que aconteça, embora não muito provável.
Assim sendo, que importância real deveremos atribuir ao perigo do terrorismo apocalíptico? Racionalmente, não muito, dado que se trata de um grande risco com uma probabilidade extremamente pequena, semelhante a tantos outros de que nem sequer se fala.
É completamente irracional, por conseguinte, encarar a luta contra o terrorismo como a prioridade absoluta do mundo de hoje em detrimento de tudo o resto. Os problemas centrais do nosso planeta continuam a ser a pobreza, a doença, a privação da liberdade, os atentados à dignidade humana e a destruição do ambiente, para mencionar apenas os mais evidentes. São eles, pois, que devem ser urgentemente recolocados no centro da nossa agenda.
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