30.10.03

A descoberta

É sempre reconfortante descobrir alguém que, de facto, percebe de futebol.

Tem Vincent toda a razão, a maior figura de sempre do futebol português chama-se Mário Coluna. E quem o diz é um portista.

O Benfica foi campeão europeu (em 61) sem Eusébio. Mas nunca ganhou nada sem Coluna.

É fácil perceber-se a qualidade do Eusébio através de breves lances de futebol. Mas quem nunca viu o Coluna fazer jogos inteiros tem dificuldade em entender a sua importância porque o que distingue os maiores jogadores é a sua presença em campo, uma qualidade com o seu quê de imaterial, não redutível a esta ou àquela intervenção pontual.

Mas isto está a tornar-se numa discussão altamente técnica, e temos que ter cuidado para os nossos leitores não fugirem para a TVI...

O teste

Pinto da Costa anunciou há semanas que o Presidente da Câmara da cidade do Porto não seria convidado para a inauguração do novo Estádio do Dragão.

Compreendo as razões do FCPorto, mas interrogo-me: Que atitude tomará a Direcção do PSD? E, sobretudo, que atitude tomará o primeiro-ministro?

Bem sei que Durão Barroso está naturalmente ansioso por enfrentar a segunda vaia gigantesca no espaço de poucas semanas e habilitar-se desse modo a entrar para o Guinness. Mas, mesmo assim, custa-me a entender como poderá prestar-se a colaborar na humilhação pública do seu colega de partido Rui Rio.

Os jornais de hoje noticiam que Mota Amaral, Presidente da Assembleia e segunda figura na hierarquia do Estado, também não será convidado por há meses ter levantado dúvidas sobre a deslocação de inúmeros deputados à final de Sevilha invocando «trabalho politico».

Pinto da Costa está nitidamente a esticar a corda, dado que, ao vetar Mota Amaral, começa agora a colocar um problema de solidariedade institucional ao próprio Presidente de República.

Como reagirão as principais figuras políticas nacionais a este imbróglio? Aproveitarão a ocasião para demonstrar um nadinha de carácter? Ou deixar-se-ão enterrar mais um bocadinho?

Decididamente, a inauguração do estádio do FCPorto ameaça tornar-se no acontecimento político do mês.

O olhar frágil



Para que conste: no meu ranking pessoal o Klee vem muito à frente do Picasso. Não é para ser original, mas é mesmo assim.

Klee professou uma religião dos pequenos encontros, da miniatura, da atenção excessiva ao excessivamente desapercebido. Buscou o estilo por detrás do informal, o artifícial por detrás do natural. Procurou tornar visível para além do visível.

Projectou desenhar música e conseguiu-o. Esboçou contrapontos visuais explorando ritmos cromáticos e mudanças de temas gráficos.

Conjecturou que por detrás dos estados espirituais há equações. Propôs que o olho pensasse e que a fantasia racionalizasse.

Coleccionou no seu frágil jardim de formas toda a espécie de símbolos visuais, troféus capturados em incursões pelo desenho infantil, pela escrita, pela zoologia, pela botânica, pela astronomia, pela física.

A pintura de Klee projecta a seriedade de que só uma criança é capaz.

27.10.03

O pecado da indiferença

Com o Bastonário da Ordem dos Advogados a dizer tudo o que pode e deve ser dito, nada mais há sobre a substância do assunto que um pobre circunstante como eu possa ou deva acrescentar.

Resta-me apenas aplaudir e notar que é em alturas como esta que se revela o real carácter das figuras públicas. Infelizmente, há alguns que se desculpam com o facto de não sabermos tudo para não tomarem posição.

No mundo há relativamente poucas pessoas muito boas ou muito más, de modo que quem de facto pode lixá-lo são os indiferentes.

25.10.03

O meu candidato

Admitindo que o país precisa de um governo (coisa de que eu, às vezes, chego a duvidar), então o meu candidato ao lugar de primeiro-ministro é sem dúvida, este.

Não só estudou a fundo os dossiers, como os traz na ponta da língua. Nenhum assunto é demasiado complexo para ele. É tão forte na concepção como na argumentação. Não receia lóbis. Tem soluções prontas a usar para tudo e mais umas botas. As próprias respostas às previsíveis objecções da oposição já foram preparadas em pormenor.

Ainda por cima, tem espírito de humor. Querem mais?

Inspira-te e pira-te

O Stendhal costumava ler o Código Civil para se inspirar antes de começar a escrever. O Proust preferia os horários dos comboios, que lhe sugeriram aliás algumas páginas mágicas no segundo volume da Recherche. Eu cá, mais modestamente, quando quero maçar-me, vou ao Aviz.

24.10.03

Chuck Close

Allen Rupersberg (5)

Allen Ruppersberg (4)

Allen Ruppersberg (3)

Allen Ruppersberg (2)

Allen Rupersberg



Encontro na revista Book Forum (Fall 2003) um artigo sobre Allen Rupersberg, um artista que até agora me tinha passado despercebido. Faço uma pesquisa no Googgle e rapidamente encontro vários trabalhos seus que, através de um simples cut and paste, incorporo na minha galeria pessoal e coloco à disposição dos visitantes deste blogue.

É isto a maravilha da web. E é por isso que chamo a este blogue uma wunderkammer, segundo o modelo dos gabinetes de curiosidades, ou museus privados, do século XVII.

A cultura serve-se fria

Não acham estranha esta obsessão de recomendar livros aos telespectadores que têm os comentadores do PSD? Alguém imagina o Miguel Sousa Tavares ou o Sócrates, por exemplo, a fazer isso?

A direita passa-se dos carretos com qualquer sugestão de que é culpada de um déficite de preparação cultural, razão pela qual não perde uma ocasião de exibir os seus escassos troféus. A verdade, porém, é que para aquelas bandas não se lê muito.

Mas como é possível dizer-se isso de um partido recheado de professores universitários, gestores de topo e juristas? Funcionam um bocado no modelo do Cavaco que, se bem se recordam, «não tinha tempo» para ler nada fora do estreito âmbito dos manuais de Finanças Públicas (e até desconfio que mesmo a Microeconomia já era para ele um tema um tanto esdrúxulo).

Felizmente que há gente (Marcello e Pacheco) que lê por eles e depois informa o povo do que está a dar. Cada um dos comentadores adopta, porém, um formato distinto.

Marcello passa a correr pelas capas e pelas lombadas, quando muito dá uma espreitadela às badanas. É o modelo Círculo de Leitores da compra de três metros de livros para decorar a estante. Fica sempre bem numa casa de família.

Já Pacheco é o Reader´s Digest do PSD. Ele lê aquelas tremendas chumbadas do Túcidides, do Orwell ou do Kafka e depois serve as conclusões já devidamente mastigadas e digeridas, prontas a usar no debate ideológico.

Topam?

23.10.03

Nova fórmula de êxito

Leio no Correio da Manhã de hoje que a discussão assanhada entre Manuel Moura Guedes e Miguel Sousa Tavares em pleno telejornal da TVI levou a um crescimento em flecha da audiência do canal.

A ser verdade, é de temer que a TVI comece a organizar cenas de pugilato opondo entrevistados a entrevistadores. Se forem espertos, registam já a fórmula antes que a Endemol se lembre disso.

Só não percebo o que é que o Sousa Tavares está a fazer neste filme.

Pobre PP

Eu sei que todos temos momentos infelizes. Eu sei que é difícil manter-se algum rigor no raciocínio quando se é militante de um partido político. Eu sei que Pacheco Pareira tem usualmente, a este propósito, uma postura bem mais recomendável do que a da maioria dos políticos no activo.

Mas o seu artigo de hoje no Público agrava singularmente o seu caso. Errar é humano; persistir no erro, coisa do demónio.

De que é que vale um tipo andar toda a vida a pregar contra o populismo, contra o sensacionalismo dos media, contra os julgamentos na praça pública, contra a importância atribuida a alguns por cartas anónimas, contra a calúnia como arma política se, chegada ahora da verdade, perde a compostura e se comporta deste modo?

O que nós verdadeiramente valemos revela-se nas situações limite a que somos expostos. É tempo de Pacheco Pereira parar um bocadinho para pensar.

PS: Por estas e por outras, decidi prolongar por tempo indeterminado a pena de exclusão do link deste blogue com o Abrupto .

Do passado fazendo tábua rasa



Malevitch resolveu em 1913, ao pintar este quadrado negro sobre fundo branco, recomeçar de novo a história da pintura. Por essa altura, nas vésperas de uma grande carnificina de repercussões mundiais, muitos outros fizeram o mesmo na literatura (Proust, Joyce) ou na música (Schoenberg, Stravinsky), para recordar apenas alguns exemplos triviais.

Continuo a achar isto comovente e, olhando para trás, não posso deixar de pensar que, no essencial, essa ousadia perdeu-se. E que falta nos faz ela agora!

Viagens na Minha Terra

Eu sei que a minha lista de links é muito pequena, mas é só porque optei por listar apenas os blogues que visito com grande frequência.

À cabeça das minhas preferências estão A Praia e o Barnabé, porque tenho uma grande afinidade de pensamento com muito do que lá se escreve e porque, apesar disso, aprendo bastante com eles.

Logo a seguir vem o Dicionário do Diabo: apesar de a minha orientação política ser muito diferente, eu aprecio sobretudo gente com espessura intelectual e ética, e encontro isso no Pedro Mexia. Por essa mesma razão, eu gostava do Abrupto, mas confesso que o seu autor me desapontou muito seriamente nos últimos tempos; por isso o risquei, até nova ordem, das minhas preferências.

O Cristóvão de Moura foi o primeiro blogue a dar-me troco. O seu autor tem um talento natural para estimular a polémica, qualidade que muito prezo neste país de gente sonsa. Agora está calado há um mês e meio, e confesso que sinto a falta.

Outro blogue onde encontro muita matéria para reflexão, em quantidade e qualidade, é o País Relativo. Daí o link.

Finalmente, A Oeste é um blogue que me interessou à primeira vista, já há uns meses. Mantive-o sob observação durante uns tempos, e agora criei um link permanente. Não tem nada a ver com os outros: não trata de política, lida principalmente com assuntos intemporais, o autor escreve (bem) sobre temas culturais do seu interesse, sempre num tom muito pessoal, que eu acho cativante.

É claro que há muitos outros blogues de que eu gosto, mas desses irei falando sempre que se proporcionar.

Violação ou talvez não

Talvez seja altura de esclarecer que, ao contrário do que diariamente se diz nos nossos media, não é verdade que a Alemanha, a França ou Portugal tenham violado o Pacto de Estabilidade e Crescimento (curioso como normalmente esta última palavra é esquecida...).

Fui recentemente informado de que o que o texto do Pacto diz é que o déficite orçamental não deve ultrapassar 3% do PIB «excepto se ocorrerem circunstâncias excepcionais». Ora, ao contrário do governo português, os governos alemão e francês argumentam, com toda a lógica, que a actual recessão deve ser considerada uma circunstância excepcional.

O governo português prefere calar-se pela excelente razão de que a sua natureza é ser feroz com os fracos e manso perante os poderosos. Além disso, se desaparecesse o papão do déficite, deixaria praticamente de ter assunto de conversa.

Desinformação e xenofobia

Recebi de uma leitora, Nina Basílio, o seguinte email que a seguir transcrevo com a sua autorização. Este depoimento parece-me ser especialmente relevante por apontar exemplos concretos de como uma informação de péssima qualidade é utilizada para alimenta preconceitos estúpidos entre o público telespectador.

Chamo a atenção para a atitude xenófoba que persistentemente se insinua por detrás de toda a ignorância patenteada pelas «notícias» referidas. Nunca me cansarei de repetir que a nossa televisão é uma área de catástrofe a exigir uma atenção séria.

Caro João Castro:

A propósito de sua indignação com os telejornais portugueses e seus comentaristas, não é nada de espantar, visto que os seguintes factos são rotina:

Se os erros jornalísticos são comuns em qualquer parte do mundo, o que dizer do caso português, em que as notícias falsas constantemente divulgadas (mais do que o razoável) pelos canais de televisão NUNCA merecem a obrigatória (em
qualquer país civilizado) errata? Pior ainda, em uma espécie de histeria colectiva, comenta-se o jornalismo praticado no país, como se existisse jornalismo em Portugal (veja o blog Guerra e Pas) - na verdade, existe, mas
somente porque os artigos de opinião são considerados um género jornalístico. Pois em Portugal, em geral, não se tem ideia de como se produz uma notícia, antes julga-se que basta seguir o exemplo da coscuvilheira da aldeia: passa-se adiante o que se ouviu dizer, ou o que foi "soprado" aos
jornalistas por interesses óbvios, sem que haja a preocupação de apurar a VERACIDADE da informação. A esse respeito, tenho uma longuísssima lista de exemplos. No entanto, fico-me pelos exemplos de notícias falsas veiculadas por canais de televisão, um deles dito “jornalístico”, que nunca mereceram o obrigatório “erramos, pedimos desculpas”.

1. Sic Notícias, 5 de outubro de 2003: o boletim informativo das 10h00 dá destaque ao desaparecimento de uma avioneta, no Brasil, "que transportava o presidente do partido do presidente Lula da Silva" (percebe-se finalmente
porque a Sic e a Sic Notícias, nas últimas eleições presidenciais brasileiras, referiam-se a Lula como o "candidato populista do partido trabalhista brasileiro" - não era uma questão interpretativa, mas mero erro factual, e se nós percebíamos "partido trabalhista brasileiro" desse modo, em minúsculas, o locutor lia-o em maiúsculas). A verdade é que o dirigente desaparecido, José Martinez, era membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), populista e de direita, que nada tem a ver com o Partido dos
Trabalhadores (PT) do presidente Lula da Silva. O espantoso é que a Sic Notícias continuou a veicular a notícia com destaque, a abrir, com a voz alarmada do pivot, os seus boletins de hora em hora, até ao noticiário das 14h00, quando decidi ligar à redacção para evitar que mais brasileiros telefonassem ao Brasil para obter notícias adicionais sobre a morte da conhecidísssima figura, e gastassem assim inutilmente seu dinheiro. No noticiário seguinte, a falsa informação sumiu sem deixar rastos...

2. Dia 12/10/2003, 14h25: na Sic Notícias, os conflitos na Bolívia transformam-se em uma "guerra do petróleo" (sic). Enquanto são mostradas imagens de bombas de gasolina (???!!!), a voz off do locutor esclarece que o país está em guerra civil porque populares e oposição discordam da decisão governamental de "exportar petróleo" (sic, sic, sic) para os EUA via Chile. Estaria tudo muito bem, não fosse o facto de a Bolívia não possuir petróleo algum (quiseram os bolivianos...) Mais uma vez, a realidade conspira contra a Sic, que reaje fazendo simplesmente "sumir" a notícia, após novo telefonema de minha parte.

3. No dia 27/06/2003, o Jornal Nacional da TVI, em reportagem sobre o desemprego no Rio de Janeiro, afirmou, com a devida voz alarmada do repórter-correspondente, no estilo "jornalismo aos gritos" da TVI, que "a inflação no país está descontrolada". Ora, naquele mês, o Brasil entrava no segundo mês consecutivo de deflação -- além do que, a inflação no país está controlada desde 1994! Telefonei à TVI e fui atendida com escárnio (tal como
foi desdenhoso o atendimento da Sic Notícias, acrescente-se), e nem sinal de errata, como é óbvio.

4. Na primeira semana de Julho, a visita do presidente Lula da Silva foi o mote para mais uma festa da histeria colectiva do jornalismo português: segundo o telejornal da noite da SIC, “Portugal é o 3º maior investidor estrangeiro no Brasil”; no mesmo dia, de acordo com a TVI, “é o 2º”. Quem mais se aproximou da verdade foi o jornal Público, no dia seguinte, que colocou Portugal em 6º lugar (a confusão de alhos com bugalhos é evidente - IDE etc. -, mas nem isso justifica a dança dos números).

5. Na primeira semana de Outubro, o Jornal da Noite da Sic veiculou a "notícia" de uma passeata realizada no Rio de Janeiro e organizada por actores da Rede Globo, contra o porte de armas por civis. No entanto, na notícia da Sic, a passeata transformou-se em uma “inédita” manifestação da
sociedade civil brasileira contra a violência urbana. Citando as palavras da pivot do telejornal: "é curioso que uma sociedade violenta como a brasileira necessite de uma telenovela para acordar para os problemas da criminalidade
urbana". Assim, no mundo da fantasia dos telejornais portugueses, a sociedade civil mais organizada do mundo (o juízo é da inspectora de direitos humanos da ONU, Asma Jaranhir, que esteve no início de outubro no Brasil a investigar grupos de extermínio), só se manifesta após a realidade ser mostrada em uma novela da Globo. Somente os repórteres da Sic não sabem que já houve centenas (SIM, JÁ CHEGAMOS ÀS CENTENAS) de manifestações da sociedade civil brasileira contra a violência no Rio de Janeiro e em todo o país, e há dezenas de ONGs dedicadas ao tema, a mais famosa das quais a Viva Rio, composta por moradores da Zona Sul carioca, a qual, aliás, ao lado de muitas outras ONGs cariocas, manifestara-se recentemente (na imprensa, em manifestações de rua) contra a exploração da criminalidade carioca em telenovelas da Globo. A passeata dos actores da Globo foi uma reacção à Viva Rio.

6. Hoje, 20/10/2003, às 10h45, a Sic Notícias que transmite uma discussão, no âmbito do programa Opinião Pública, sobre a legalização de imigrantes brasileiros. Questionando a justiça do tratado bilateral que deu origem à legalização, o jornalista da Sic afirma que, se o Brasil é o país que mais tem imigrantes em Portugal, o contrário não é verdadeiro, pois Portugal não é o país que mais tem imigrantes no Brasil, afirmação que é corroborada por
um alto funcionário do SEF presente no progrma. Ora, PORTUGAL É SIM, DE LONGE, O PAÍS QUE MAIS IMIGRANTES TEM NO BRASIL: 1 MILHÃO (ISSO MESMO, 1 MILHÃO DE IMIGRANTES, E NÃO LUSO-DESCENDENTES), MUITOS DELES ILEGAIS, PRINCIPALMENTE NO NORDESTE BRASILEIRO. Aliás, minutos antes, o mesmo jornalista afirmara não haver portugueses ilegais no Brasil, outro disparate com que também concordou prontamente o funcionário do SEF. Telefonei à Sic,
o mesmo escárnio, enviei e-mail, não foi veiculado, e o programa terminou, claro está, sem nenhuma rectificação à falsa informação apresentada.

Os demais e extensos capítulos do anedótico jornalismo que se faz em Portugal (incluindo os jornais e revistas) serão por mim divulgados brevemente, em blog próprio se houver paciência para tal, ou em outros blogs. Fazer uma queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social também passou-me pela cabeça, mas como já tive a minha dose de escárnio e risinhos, é possível que não o faça.

Cumprimentos, parabéns pelo seu blog

Nina Basílio


20.10.03

Retaliação

Em sinal de protesto contra as declarações do Pacheco Pereira ontem na SIC, decidi cortar relações com o Abrupto eliminando-o dos meus links.

Esta medida é temporária e poderá ser suspensa por um gesto simpático vindo daquelas bandas.

(Atenção, PP: isto é suposto ser uma piada!)

Blame the victim. Talvez seja ingenuidade minha, mas confesso que fiquei chocado com a intervenção de ontem do Pacheco Pereira no seu mano a mano dominical com o Professor Marcello. Equilíbrio, moderação, bom senso? Isso é bom para os outros!

O essencial sobre isto foi escrito pelo Ivan.
Não percebo. Luís Delgado e António José Teixeira concordaram ontem na SIC Noticias em dois pontos:

1. Ferro Rodrigues está a ser vítima de uma campanha ignóbil.

2. Ferro Rodrigues deve demitir-se porque não tem condições políticas para continuar à frente do PS

Ouço, e não e acredito. Qualquer pessoa, independentemente da sua orientação política deve pedir (ou exigir) a Ferro Rodrigues que não ceda à chantagem, porque essa é, e neste momento, a única forma de travar o passo à guerra suja que mina o nosso sistema político.

19.10.03



O método de produção de uma pintura de Jackson Pollock era frenético, caótico, agressivo, produto de milhares de pequenos acidentes de resultado final imprevisível. Ele não tratava a tela com meiguice, deitava-a sobre o chão e despejava sobre ela tinta de forma razoavelmente arbitrária, numa relação física de confronto corporal e espiritual com ela.

O resultado final, porém, transmite uma certa serenidade, sobretudo quando contemplado à distância, como se acima dos intrincados labirintos parcelares e sobrepostos traçados sobre a tela pairasse algo de mais poderoso, como se o sublime emergisse misteriosamente do sofrimento.

Uma metáfora talvez adequada para os tempos que correm. Mas para a compreender é preciso treinar o olhar.

18.10.03

Não acredito em conspirações; mas que as há, há. A minha vontade de me pronunciar sobre o tema da pedofilia é menos que nula, porque eu interesso-me por política, não por politiquice.

Mas há alturas em que o silêncio só pode significar cobardia, e este é um deles. Como, ainda por cima, não tenho nem nunca tive qualquer relação com o PS, nem conheço o Paulo Pedroso de lado nenhum, talvez sejam mesmo pessoas como eu que devem falar.

Assistimos no final desta semana a mais uma divulgação cirúrgica de segredos de justiça, ao mesmo tempo que era divulgado com grande fanfarra pelo DN o texto de mais um acórdão da Relação de Lisboa. Quanto a este último, recomendo a toda a gente que o leia, chamando especialmente a atenção para a linguagem raivosa de comício da extrema-direita em que está escrito, a lembrar o partido do Manuel Monteiro no seu pior. Já que criticaram tanto o estilo da Ana Gomes, roam agora este osso: cá fico à espera de ouvir as opiniões dos nossos sábios de serviço.

Francamente, não creio que sejam precisos grandes comentários, porque os factos em si são altamente reveladores. É cada vez mais evidente que há uma guerra declarada de uma parte do aparelho judicial contra o PS, e a ninguém é legítimo continuar a ignorá-lo. Como eu previ, o apelo de Barroso à despolitização da justiça era só fumaça.

Quanto ao resto, continuamos a aguardar os resultados dos inquéritos à fuga de segredos de justiça ordenados à meses pelo Procurador-Geral da República. Se não sabem como fazer para identificar os responsáveis pela difusão de informações classificadas, recomendo ao senhor Procurador a leitura de The Company: A novel of the CIA, porque lá explica-se como é que é. O livro é barato (deve caber no orçamento) e, além do mais, entretem.

PS-É cada vez mais evidente o papel do DN na divulgação de informações sobre este processo nos momentos mais propícios para a acusação. Recomendo também a leitura atenta dos editoriais do Director-Adjunto António Ribeiro Ferreira, porque normalmente prenunciam o que vem a seguir.

17.10.03



A arte de Morandi parece passar completamente ao lado do nosso tempo. Mas a verdade é que ele inventou uma outra forma de ser contemporâneo.

16.10.03

Não se paga, não se paga! Imaginemos que um sujeito tem um carro com um motor de baixo rendimento e diz assim: «Vou meter-lhe menos gasolina para ver se ele anda melhor». Ou, pior ainda: «Vou antes meter-lhe gasóleo, para ver se ele aprende». Surpresa das surpresas: no primeiro caso, o carro anda menos quilómetros do que antes. No segundo, fica logo parado no meio da estrada.

O que este exemplo pretende sugerir é que o aumento da eficiência do sistema educativo não se resolve dando menos dinheiro para a educação. Por isso, quando António Barreto diz que não se deve dar mais dinheiro para a educação porque não vale a pena subsidiar a inércia e a preguiça, está a proferir uma tolice disfarçada de sabedoria. Em boa lógica, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Enquanto a eficiência do sistema não melhorar (e não se vê como há-de melhorar só porque sim) atribuir-lhe menos dinheiro só pode conduzir a uma degradação da qualidade do ensino. Se houvesse um plano para melhorar a qualidade do ensino, as coisas seriam diferentes, mas eu não vejo que este governo tenha qualquer plano.

Mas ainda há outro problema: se houvesse um plano, ele custaria certamente dinheiro. É uma chatice, mas é verdade: se uma empresa (ou uma instituição) tem baixos níveis de qualidade e de produtividade, terá forçosamente que investir em instalações, em equipamentos, em formação, e por aí fora.

O que está em causa não é não investir, mas investir bem, ou investir melhor. Os que argumentam que nos últimos anos já se investiu muito em educação não percebem que, tendo em conta o atraso do país nesta matéria, teremos que investir muito mais que os outros durante muitos anos se quisermos apanhá-los. Lembrem-se sempre de que só agora atingimos as taxas de alfabetização que os países escandinavos alcançaram no final do século dezanove. Já há cem anos a nossa impagável classe dirigente achava que não valia a pena gastar mais com a educação. Mudam-se os tempos, mas a estúpida cegueira permanece.

Esta palavra de ordem («não se paga, não se paga») altamente popular entre os políticos de direita, em que Barreto gostosamente se inclui para ser popular nos meios que frequenta, é só uma forma demagógica de acariciar o egoismo espontâneo das massas ignaras que acreditam que o mundo ficaria melhor se ninguém pagasse impostos.

A propósito de prostituição. Arnaut, o meu ministro favorito, teve agora esta fantástica ideia de mandar cancelar a publicidade na Time ao Euro 2004 em sinal de desagrado por causa de uma reportagem que mencionava o crescimento da prostituição em Bragança.

Passadas algumas horas, a decisão já era suspender e não cancelar as inserções, provavelmente porque os ministros portugueses não têm o poder de alterar por despacho as leis americanas que regulam os contratos entre os anunciantes e os media.

Decorridas menos de 24 horas sobre a declaração inicial de Arnaut, somos informados de que afinal o que se cancelou foi a suspensão, porque o director da Time escreveu uma carta a pedir desculpas ao Governo português.

Não é por nada, mas acho que devíamos exigir ver a carta, já que não pudémos examinar as provas de que o Iraque tinha armas de destruição massiva.

Em si mesma, a atitude do ministro reflecte uma inqualificável saloice. Mas, pior ainda, revela que, na ideia dele, o facto de o Governo colocar publicidade numa revista dá-lhe o direito de controlar o seu conteúdo.

Notícias favoráveis em troca de anúncios? Quem diria!


15.10.03




Marketing politico. Nicolas Rolin, representado nesta pintura de Van Eyck numa atitude de veneração à Virgem, dedicou quase sessenta anos (dos oitenta e um que teve de vida) ao serviço dos Duques da Borgonha. Durante os primeiros vinte foi seu conselheiro legal, sendo em seguida promovido a chanceler, uma espécie de superministro que acumulava as funções de ministro das finanças, ministro da administração interna e ministro dos negócios estrangeiros.

O seu senhor Filipe o Bom, Duque da Borgonha e Grão-Duque de Occident, embora nominalmente vassalo de Carlos VII, Rei de França, era de facto muito mais rico e poderoso do que ele.

Rolin, oriundo de uma família modesta de Autun, conseguiu usar o seu poder para acumular uma considerável fortuna. Era considerado um homem enérgico, autoritário e implacável. Os seus inimigos denunciavam os seus métodos políticos e criticavam-no por se ter aproveitado dos cargos que ocupava para enriquecer.

Como muitos outros novos ricos, Rolin compreendeu que o prestígio da arte pode ajudar a nobilitar uma carreira recheada de espisódios pouco dignificantes. Contratou então o grande pintor Van Eyck para executar esta homenagem à Virgem.

É no entanto evidente que a homenagem à Virgem é também uma homenagem ao próprio Rolin. Apesar da atitude de recolhimento adoptada pelo chanceler, o facto de ele se exibir no mesmo plano que a Mãe de Deus não deixa de exprimir uma certa ousadia. Na pintura medieval era normal a dimensão das personagens representadas depender da sua importância. Aqui, porém, insinua-se de uma relação de alguma igualdade entre as duas figuras representadas, envergando as suas melhores vestes, num ambiente muito palaciano e pouco divino.

Esta pintura encerra uma variedade de significados para os contemporâneos que eram chamados a contemplá-la. Uma parte desses significados são marcadamente políticos. Em primeiro lugar, trata-se de uma manifestação óbvia de poder, desde logo porque não era qualquer um que podia dar-se ao luxo de contratar um dos melhores pintores da época, mas também pelo facto de o quadro figurar a Virgem admitindo no seu convívio o chanceler. Em segundo lugar, há uma sugestão de intimidade que visa insinuar uma comunhão de propósitos: Rolin está ao serviço de Deus através da sua Mãe, de quem recebe directamente inspiração e ordens. Pretende-se assim legitimar a actuação política do ministro do Duque.

Esta obra de arte é também, por conseguinte, uma peça de marketing político com mais de seis séculos de existência, uma constatação talvez chocante para uma época como a nossa que às vezes parece julgar ter inventado tudo o que hoje existe.

Naturalmente, hoje em dia nenhum político teria o descaramento de procurar comprometer directamente Nossa Senhora com o programa do seu partido, porque isso cairia muito mal no eleitorado. O que prova que, afinal, sempre há algum progresso na história da humanidade.

14.10.03

PP na TV. Chego a casa, encontro a porta arrombada, tudo virado de pernas para o ar, gavetas arrancadas das cómodas, armários escancarados, roupa espalhada pelo chão. Levaram-me o cofre. Desapareceram as jóias de família.

Grito: «Foi roubado!»

Explicou Pacheco Pereira no domingo passado na SIC que eu não posso fazer isso, a menos que diga claramente quem me roubou e como conseguiu entrar na minha casa.

Em Pacheco Pereira, só o estilo é racional. A argumentação ela própria não vale frequentemente um caracol.

13.10.03

Tapiès é o meu Proust das artes plásticas. Ensina-me a ver.



Proust e Giorgione. Na Recherche, o narrador anda a certa altura obcecado com a perspectiva de conhecer a criada de Madame Putbus, que lhe garantiram ser tal e qual a Vénus de Giorgione. Contemplem aqui em baixo a tela do mestre italiano e compreenderão imediatamente a perturbação do rapaz.


12.10.03

O usurpador. Portugal acerta actualmente os seus relógios pelo Tempo Médio de Greenwich (TMG), correspondente ao fuso 24 (ou 0), mas o Governo está a estudar a possibilidade de voltarmos ao regime que vingou até 1996. A mudança consistiria em adiantarmos os relógios uma hora para nos orientarmos pelo tempo da Europa Central (CET), correspondente ao fuso 1.

Para se perceber a enormidade da medida, é preciso saber-se que o território de Portugal Continental se situa no fuso 23, não no 24: o meridiano de Greenwich passa por Valência, uma cidade localizada no outro extremo da Península Ibérica. Por conseguinte, mesmo no regime actual, a hora em Lisboa já está adiantada em relação à hora solar 40 minutos no Inverno e 1 hora e 40 minutos no Verão, com as inevitáveis consequências nefastas para o organismo humano. Se a hora mudar, Lisboa passará a estar adiantada em relação à hora solar 1 hora e 40 minutos no Inverno e 2 horas e quarenta minutos no Verão!

Argumenta-se que a adopção da hora da Europa Central é favorável à nossa integração europeia, mas é difícil aceitar essa lógica. O Reino Unido, que teria mais razões para adoptar a hora central europeia do que nós não o faz, nem se preocupa sequer com isso. Não é por haver uma diferença de três horas entre Los Angeles e Nova Iorque que a integração económica é menor nos EUA. Finalmente, uma maior aproximação à hora europeia tem como consequência inevitável afastar-nos, por exemplo, dos EUA e do Brasil.

Além disso, que vantagens decorreriam exactamente da uniformização? Será a completa sobreposição dos horários de trabalho uma vantagem importante na era dos telemóveis e dos emails? E não será mais vantajoso ser mais cedo em Portugal para quem tem de tomar um avião de manhã para participar numa reunião de trabalho bem cedo em Londres ou Frankfurt?

Dêem-se as voltas que se derem, é difícil vislumbrar motivações racionais nesta teimosia.

Trata-se apenas, na verdade, de mais uma ridícula manifestação do revanchismo primário que orienta o Governo de Durão Barroso, o qual só se daria por satisfeito se conseguisse varrer do nosso viver colectivo toda e qualquer memória do governo do usurpador António Guterres.

11.10.03

O eterno retorno. Abertura da temporada da Orquestra Gulbenkian, entusiasticamente saudada pelos telemóveis a tocarem na sala.

10.10.03

Durão Barroso pede tréguas. O primeiro-ministro declarou-se hoje contra a politização da justiça. Estará a ser sincero?

A politização da justiça teve início com o afastamento de Maria José Morgado da Polícia Judiciária. Desde então, passaram-se durante um ano em Portugal coisas gravíssimas de que só vemos os sintomas, mas não as causas.

Talvez um dia venhamos a saber exactamente o que aconteceu mas, por enquanto, só podemos especular. Para já, sugiro que cada um se interrogue, como nos romances policiais, quem tem simultaneamente a oportunidade, a motivação e a arma do crime.

Acontece que agora, como não poderia deixar de suceder numa sociedade democrática, a ressaca está a chegar ao PSD e a assustar os seus dirigentes. Deverá o PS fazer-lhes a vontade e fumar o cachimbo da paz?

A oposição deve ter uma postura civilizada, mas não deve ser estúpida.

Cabe a Durão Barroso provar que deseja mesmo pôr termo à política suja que tem marcado os últimos tempos. Para demonstrar a sua boa-fé, não me ocorre melhor coisa do que afastar a Ministra da Justiça.

Até lá, olho por olho, dente por dente.
Ria-se, homem. O Pacheco Pereira, uma pessoa a vários tipos notável, tem dois grandes defeitos. O primeiro, que já quase toda a gente notou, é que é do PSD. O segundo, a meu ver muito mais grave, é que carece de espírito de humor. A reacção de hoje dele ao meu último post (sem todavia o mencionar) é a prova definitiva desse facto. Definitivamente, não percebeu.

8.10.03

Libertação de Paulo Pedroso. Parece o 25 de Abril: cai o Governo, começam a sair os presos políticos.

7.10.03

O Papa-espectáculo. O facto mais notável do consulado do Papa João Paulo II é a sua adesão aos princípios da sociedade do espectáculo.

Muitos católicos, ignoro se a maioria, mostram-se muito satisfeitos com a enorme visibilidade que a sua crença reconquistou por essa via no espaço mediático. Mas eu, que embora não seja crente, valorizo o sentimento religioso, não vejo razões para contentamento, nem creio tampouco que ele exista no Reino dos Céus.

Parece-me a mim (mas é possível que esteja antiquado), que a Igreja se empobrece ao reduzir-se a uma indústria de conteúdos, descendo ao nível de outras instituições que não me atrevo a nomear.

Porque a verdade é que, hoje por hoje, o Vaticano pouco mais faz do que organizar espectáculos vistosos com grande cobertura televisiva. A máquina de propaganda do Papa funciona em grande, e as deslocações do Papa são o pretexto preferido para gerar publicity. A encenação obedece a um esquema altamente previsível e estereotipado: o Papa, uma frágil figura perdida no meio da multidão, mostra-se aos crentes à distância, circulando no seu Papamóvel (uma designação que é um tratado) por entre alas de jovens organizados brandindo estandartes e envergando vestes coloridas. As cores (amarelo e branco) são as do Vaticano, não as de Cristo. O ambíguo slogan Totus tuus é omnipresente. Do Papa só se aproximam os poderosos deste mundo e os altos dignitários da Igreja.

Hoje, toda a gente tem vergonha de montar espectáculos inspirados no Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Excepto o Papa.

Hoje, toda a gente abomina o culto da personalidade. Excepto o Papa.

Ouvi Maria José Nogueira Pinto afirmar na televisão que «os jovens hoje estão todos à volta dele». Trata-se, sem dúvida, de uma ilusão de óptica resultante da inserção numa particular classe social. Como se constata nas reportagens, as Jotas do Papa são exércitos de betinhos que se mobilizam para agitar bandeiras e distribuir sacos de plástico e depois, dentro do mesmo espírito, vão dali para a caravana automóvel do CDS/PP. Tudo forma, nenhum conteúdo.

Aliás, se os jovens estivessem de facto «todos à volta dele», caberia perguntar porque é que tantos encontram mais sentido na droga do que na religião. O problema, precisamente, é que a Igreja, através do seu máximo representante, não tem mais nada para lhes propor senão agitação e propaganda.

Escutei hoje estas palavras da boca do Papa no telejornal da hora do almoço: «O rosário é um compêndio do Evangelho». Não sei, mas aqui há uns tempos atrás, isto seria considerado blasfémia. Como pode o Papa pretender que rezar o rosário substitui com vantagem a leitura da palavra revelada? O que isto significa é que, neste cristianismo segundo Karol Woytila, o ritual é tudo, e o sentimento religioso nada.

E chegamos aqui ao ponto central. Na minha maneira de ver, a Igreja de Roma converteu-se, no fundo, à frivolidade e ao vazio que aparenta criticar. A religiosidade foi substituida pela encenação. O Papa aderiu ao niilismo, ou seja, o vazio é a sua doutrina.

É claro que, apesar disso, há aqui um propósito reaccionário, que é o de restaurar a doutrina pré-Vaticano II. Mas, incapaz, de assumir abertamente o debate das questões que interessam aos cristãos, a estratégia de João Paulo II consistiu principalmente em evitá-lo desviando as atenções e fomentando o culto dos símbolos do poder, manobra que, ao longo dos séculos, já deu sobejas provas de eficácia. As orientações específicas relativas à fé regridem na precisa medida em que as controvérsias são silenciadas e, de preferência, esquecidas.

Tenho que reconhecer que, apesar disso, a Igreja portuguesa é hoje infinitamente mais inteligente, humana, caridosa, numa palavra, cristã, do que no tempo em que frequentei a catequese. Mas isso sucede porque de facto, senão de palavras, ela caminhou ao arrepio das orientações de João Paulo II. E isto leva-nos a outro ponto: na igreja de hoje, uma coisa é o que se diz, outra o que se faz. Ou seja, os costumes dos católicos praticantes evoluiram imenso, e não têm nada a ver com as proclamações escandalizadas do cardeal Rattzinger, pelo que a Igreja é, provavelmente, mais hipócrita hoje do que em qualquer outro período desde a Renascença.

Os católicos deveriam estar muito preocupados, porque todas as contradições que se encontram escondidas vão saltar à luz do dia quando este Papa desaparecer. A Igreja esteve parada nos últimos vinte e cinco anos, porque este Papa, cuja eleição foi um episódio da Guerra Fria, nunca deixou de viver nesse tempo. Com isso, perdeu vinte e cinco anos, uma eternidade nos dias que correm. Quando acordar, é muito provável que fique em frangalhos e que demore muito tempo a recompor-se.

Quem duvidar poderá verificar por si mesmo que, hoje mesmo, a autoridade do Papa já é uma pura ilusão. Longe de aumentar, ela diminuiu. Recordo, por exemplo, que quando o Papa criticou a guerra do Iraque, nenhum político católico ocidental se comoveu. Para todos os efeitos, foi como se ninguém tivesse falado.

Verdade ou mentira?
Ainda hoje, vou colocar um post sobre João Paulo II. Não saia daí.

6.10.03

Mau, Maria! Acabo de ouvir o ex-ministro Pedro Lynce dizer na televisão que acha que não cometeu nenhuma ilegalidade. Mas então quer fazer o favor de explicar-nos porque se demitiu? Porque alguém lho pediu? Para fazer o jeito a alguém? E para quê? Para evitar que os jornalistas continuem a morder nas canelas do governo?

Bem vistas as coisas, esta demissão não serve a pedagogia democrática, mas o seu contrário. Assim, vamos de mal a pior.
O PS e o poder económico. Henrique Neto produz hoje afirmações intrigantes no suplemento de Economia do Público, principalmente no que respeita ao modo como os governos do PS intervieram nas principais empresas do Estado em vias de privatização.

A primeira coisa que podemos concluir é que o PS, e principalmente o ministro Pina Moura, nomearam para os postos de maior responsabilidade pessoas que, como agora se torna claro, se situavam ideologicamente na área do PSD. A segunda é que, não tendo ideias políticas próprias nesta matéria (como aliás noutras), o PS limita-se a vogar ao sabor das pressões provenientes dos principais grupos económicos que ajudou a reconstituir até se atingir um grau de promiscuidade entre o poder político e o poder económico provavelmente superior ao que conhecemos antes de 1974.

O PS, talvez o partido português mais fechado à sociedade, tem uma influência quase nula no meio empresarial, mas julga que pode suprir essa falha nomeando para cargos de influência pessoas da confiança do grande capital. O resultado é que, uma vez concluidos pelo PS os fretes que lhe são encomendados, essas personalidades viram-lhe as costas e, como têm estratégias claras, prosseguem tranquilamente o seu caminho ao serviço do novo poder. Como bem nota Henrique Neto, é por isso que o PS não está hoje à vontade para criticar as opções que o novo governo tem tomado na área da Economia.

O grande problema que se põe não é, portanto, saber quando e como o PS regressará ao poder, mas o que fará com ele.

Demarcação. Apoio a opinião de Sarsfield Cabral no DN de hoje: é preciso demarcar claramente a ideia federalista desta manobra de reforço do directório dos grandes países que alguns procuram fazer passar sob a capa da constituição europeia.

O que há de mais positivo no federalismo é a tentativa de assegurar a fiscalização democrática dos órgãos de um poder continental actualmente exercido à revelia dos povos. Sem esse controlo, parece-me que a União Europeia cada vez se assemelhará menos a uma democracia liberal.

Ora a chamada constituição europeia não me parece dar quaisquer garantias de ser um passo no bom sentido.
Ópera dos malandros. Confesso que não compreendo, nem sei se quero compreender, este folhetim degradante em torno da Orquestra Metropolitana de Lisboa.

Mas lá que tudo isto é rasca até dizer chega, disso não tenho dúvidas. E se, como insinuou o maestro Graça Moura, for verdade que as origens deste ajuste de contas remontam ao episódio dos violinos de Chopin, então o caso é muito grave.
Fundos e ideiais. Nota Jorge Sampaio que a Europa não pode ser incensada quando há fundos comunitários e arrasada quando eles escasseiam.

Não posso concordar mais. Mas, se durante uma década e meia, os debates nos próprios jornais de referência da classe dirigente raramente foram um pouco além dos fundos, e muitas vezes se centraram na mera capacidade de gastar o dinheiro transferido para Portugal, sem sequer se discutir o modo como eram dispendidos, o que é que se espera que os portugueses pensem sobre o assunto?

De pouco valem os ideais, se não tiverem uma tradução prática de eficácia comprovável. Ora, é verdade que a União Europeia teve, em minha opinião muitos benefícios para Portugal que transcendem largamente os fundos comunitários, tanto no campo económico como nos campos cultural, social, político, etc. Mas, como nunca foram destacados e discutidos, é bem provável que uma boa parte da população não esteja suficientemente consciente deles e, por conseguinte, não os valorize.

Os povos, como as pessoas, aprendem com a experiência, não com sermões. É por isso que a construção europeia pode estar metida numa grande embrulhada.

Tony entre os doutores. Não paro de me surpreender como os mesmos comentadores conservadores que há apenas um ano consideravam Tony Blair o paradigma dos políticos vazios, meros produtos de marketing vogando ao sabor das sondagens, encontram agora nele as sólidas (mas miríficas, digo eu) qualidades morais de um político vitoriano, apenas porque decidiu apoiar Bush no lançamento da guerra do Iraque. Em resumo, o oportunista mestre de relações públicas deu lugar, por um passe de mágica, ao homem de convicções inabaláveis.

Quer-me a mim parecer que estas opiniões dizem menos sobre Blair, que provavelmente será mais ou menos quem sempre foi, do que sobre a superficialidade e infiabilidade de quem as produz.

5.10.03

Um destino. Sempre que observo a atitude agressiva de Paulo Portas, cego e surdo ao que se passa à sua volta, imune ao coro de críticas que se levanta cada vez que abre a boca, indiferente à hostilidade que o rodeia, inteiramente concentrado no seu ego, fechado no seu pequeno mundo de auto-proclamado génio, obstinado na sua crença de que tem uma missão transcendente a cumprir, confortado pela pequena clique de apoiantes que o segue sem pestanejar, inflexível até ao delírio no seu caminho sem retorno, sempre que o ouço negar o óbvio com a convicção de quem se nega a admitir o que todos já entendemos, vem-me à memória a sentença que uma vez Sounness pronunciou a propósito de Vale de Azevedo:

«This man is a dangerous man. He lies while looking at you in the eye

Como não ver que, independentemente de tudo o resto, o perfil psicológico é rigorosamente igual? Qualquer outro no seu lugar já teria cedido, mas ele não atira a toalha, segue em frente redobrando a agressividade em relação aos seus adversários. Coragem ou cegueira?

Pessoas assim não reagem aos acontecimentos como nós. O que se diz à volta delas não as toca, porque na verdade não o escutam, certos como estão de que se trata apenas de vozes mal intencionadas sopradas por uma conspiração de gente mal intencionada.

Por isso seguem impassíveis o seu caminho, sem suspeitarem o inevitável destino trágico que as espera.


4.10.03

A rotina das demissões. Mais uma vez, não posso deixar de concordar com Pacheco Pereira. Esta coisa de se pedir a demissão dos ministros por dá cá aquela palha (embora não seja esse, acho eu, o caso de Pedro Lynce) é, talvez, a herança mais negativa que o governo socialista deixou ao país. A título de exemplo dos seus malefícios, chamo a atenção para o facto de que, apesar de só ter havido dois governos nesse lapso de tempo, o país teve cinco ministros das obras publicas em cinco anos, um facto desastroso para uma área onde quase tudo o que se faz demora anos e anos a preparar.

Na origem desta prática excêntrica estiverem dois factores.

O primeiro, puramente pessoal, foi a fraca predisposição de Guterres para aguentar ministros caídos em desgraça. Era assim que a vítima, sentindo a faquinha cravada nas costas, preferia deixar-se cair e fazer-se de morta.

O segundo, mais sério, tem que ver com a confusão que reina entre nós entre culpa e responsabilidade, aliás típica de um país onde não se entende o que esta última quer dizer. O exemplo mais evidente desta incompreensão foi a demissão de Jorge Coelho na sequência da queda da ponde de Entre-Rios.

Porque raio haveria o ministro de se demitir? Evidentemente, ele era responsável, porque nada do que se passava no seu ministério poderia deixar de envolvê-lo. A responsabilidade não é alienável, sequer, pela delegação de competências neste ou naquele indivíduo. A responsabilidade não é delegável. Mas isso não implicaria automaticamente a necessidade de se demitir.

Imaginemos que o ministro tinha sido informado de que a situação da ponte era muito grave, e tinha ignorado o aviso. Ou que tinha dado instruções no sentido de reduzir as despesas de manutenção com as pontes, apesar de estar consciente de que isso poderia ter consequências catastróficas. Nesses casos, obviamente, a responsabilidade coincidiria com a culpa, e só lhe restaria o caminho da demissão.

Poderia também suceder que, na sequência do desastre, o ministro se mostrasse incapaz de retirar todas as consequências do sucedido. Que não abrisse imediatamente um inquérito, que criasse uma comissão incluindo os presumíveis responsáveis ou que procurasse obstaculizar o apuramento da verdade. Que procurasse proteger os responsáveis. Que não tomasse as medidas urgentes destinadas a reparar o que pudesse ser reparado. Se algo deste género sucedesse, à responsabilidade objectiva somar-se-ía uma culpa que só poderia ter como consequência a demissão.

Mas o critério crucial para decidir qual o tipo de responsabilidade que está em causa e que consequências ela deve ter é necessariamente o bem público. É positiva a demissão que fortalece o governo do país e do Estado, é negativa aquela que o prejudica.

Ora o que é que o país ganha quando é afastado um ministro cuja actuação, de facto, em nada contribuíu para os acontecimentos em apreço? Obviamente, nada.

Estou consciente de que esta é uma abordagem demasiado rápida de um problema tão sério. Mas acredito que as questões essenciais são de facto estas.
Ai que fui apanhado! Durão Barroso elogiou o «sentido de Estado» de Pedro Lynce ao demitir-se.

Não sou a favor de se perder demasiado tempo a bater neste ceguinho, até porque, em si mesmo, o episódio é apenas uma instância particular dos nossos mesquinhos hábitos quotidianos de resolver tudo com cunhas. Não estivessem em causas ministros, e ninguém lhe concederia sequer um segundo de atenção.

Mas, sendo a oportunidade de dar um exemplo a partir de cima o único aspecto meritório de tudo isto, é preciso sublinhar que o comentário do primeiro-ministro assume, neste contexto, um aspecto absolutamente contra-producente.

Pois não é verdade que «sentido de Estado» foi exactamente o que Lynce provou não ter ao usar os poderes ministeriais de que foi investido para desenrascar um amigo? Ou será que, no newspeak barrosista, «sentido de Estado» tem um significado diferente do corrente e correcto? Ou será que, no seu entender, o único erro de Lynce foi ter-se deixado apanhar?

3.10.03

Baixando o nível. Percebo perfeitamente o problema do Ivan com o Benfica.

Eu próprio dou por vezes comigo a pensar que, se o Benfica não existisse, Portugal seria um país melhor.

Mas é injusto. Sendo Portugal o que é, se o Benfica não existisse teria que ser inventado.
Insensatez? Que dois ministros, ao que tudo indica pessoas de bem, caiam na armadilha de cometer uma flagrante ilegalidade por uma questão, a bem dizer, tão mesquinha, eis o que se afigura revelador de uma completa insensatez.

Mas pode haver outra explicação, de algum modo sugerida pela candura com que Pedro Lynce inicialmente reagiu ao caso.

É que, dizem-me, tornou-se habitual nos últimos anos os ministros interpretarem ou corrigirem leis mediante um simples despacho. Será verdade?

Eis uma excelente oportunidade para trazer à luz do dia e banir definitivamente esse tipo de práticas, em si mesmas muito mais graves do que o caso concreto agora em discussão.

2.10.03

How to Solve It. Dizem que os alemães são um povo metafísico, mas eu nunca conheci nenhum alemão que se interessasse por filosofia.

Povo metafísico somos nós, os portugueses. Para nós, qualquer tarefa simples, tal como pregar um prego, dá origem um debate que vai rapidamente crescendo em complexidade até se tornar numa discussão sobre o sentido último do Universo, da vida e tudo o resto.

Os últimos exemplos são os incêndios e a crise do sistema judicial. Os temas já foram discutidos por toda a espécie de especialistas de trás para a frente e de todos os ângulos. Resultado: estamos mais longe do que nunca de uma solução desses problemas.

Curiosamente, este povo que pratica em tudo o empirismo radical de quem prefere aprender cometendo os mesmos erros uma e outra vez, é totalmente destituído de sentido prático. Há aqui uma esquizofrenia que nos faz funcionar igualmente mal em dois planos distintos de incompetência teórico-prática. Por um lado, o pensamento teórico recusa orientar-se para assuntos úteis e relevantes; por outro, a actividade prática recusa ser orientado por ideias e conceitos abstractos. Em consequência, recorremos à filosofia como táctica para fugir ao trabalho concreto e atiramo-nos com entusiasmo a empreendimentos tresloucados destituídos de qualquer senso.

Que melhor prova existe do divórcio total e acabado entre a escola e a sociedade?

Parece-me que o que faz aqui muita falta é que se ensinem métodos de resolução de problemas. Por mim, sugiro a todos os interessados o livrinho maravilhoso do matemático húngaro Pólya How to Solve It (há tradução portuguesa, Como Resolver Problemas, creio que editado pela Gradiva). Não é só para matemáticos, pois expõe os princípios de uma heurística geral útil em todos os domínios para nos ajudar a pensar sobre problemas mal estruturados.
Que fazer? As praxes boçais e humilhantes, a ordinarice que domina os protestos contra as propinas, o folclore saloio da capa e batina, a debilidade intelectual dos dirigentes de associações estudantis financiadas pelo Estado, a falta de carácter revelada por muitos órgãos de gestão universitária – tudo isso nos faz pensar que, longe de se constituirem em centros de irradiação de civilização, as nossas universidades tendem a reproduzir e ampliar de forma caricatural os piores defeitos da sociedade.

Nenhum discurso bem intencionado sobre a importância da educação para o futuro do país consegue resistir a esta poderosa coligação de ignorância, preconceito, egoismo, oportunismo e má-criação. Este é hoje o problema mais grave que temos que enfrentar - e não digam que a culpa é da televisão.

Conhecem a frase les grands esprits se rencontrent? Pois a verdade é que o mesmo se passa com os pequenos e mesquinhos. Decididamente, a estupidez tem um sentido gregário muito desenvolvido.

Que fazer, então? Para já, começar por envergonhá-los a todos publicamente, coisa que, actualmente, em geral não acontece.

1.10.03

CIA para principiantes. Ocupei uma parte das últimas seis semanas a ler The Company: A novel of the CIA, de Robert Littell, um gigantesco livro com quase 900 páginas.

Embora, ao contrário do que pretenderam certos críticos, o autor não se encontre, nem de perto nem de longe, ao nível de Le Carré, no conjunto dei o meu tempo por bem empregue.

O romance cobre todo o período da Guerra Fria, de 1950 a 1991, com um flash-back para 1948, quando a URSS passa a dispor da bomba atómica, e uma breve extensão até 1995. Os episódios principais estão construídos em torno de algumas das fases mais marcantes do conflito: a Guerra da Coreia, o esmagamento da revolta húngara de 1956, o episódio da Baía dos Porcos, a guerra do Afeganistão, a perestroika e o desmoronamento final da União Soviética. Em fundo, perpassam também episódios como o golpe de estado contra Mossadegue, a intervenção na Nicarágua, o cisma sino-soviético, o início e o fim da guerra do Vietname, o escândalo Watergate, a morte de João Paulo II, a revolução iraniana, o caso Irão-contras, a primeira guerra do Golfo e sempre, sempre, o conflito israelo-árabe. Bin Laden tem uma breve aparição em Peshawar.

Embora não se aprenda propriamente coisas novas sobre a história contemporânea, este relato romanceado, ao estilo das novelas de Gore Vidal, proporciona uma visão mais rica dos acontecimentos, principalmente porque Littell tem talento para construir ambientes que definem uma época. Além disso, o detalhe com que descreve o modo como as operações são conduzidas no terreno revela que se trata de alguém que estudou a fundo o seu assunto.

De ambos os lados da barricada, os agentes são apresentados como sujeitos idealistas que se batem acima de tudo por mundo livre ou por um mundo sem exploradores, conforme o caso, o que, embora lisonjeiro para os envolvidos, é provavelmente pouco objectivo. Esta benevolência genérica aplica-se inclusivamente aos agentes duplos e aos traidores.

Uma das particularidades mais interessantes do livro é a mistura de figuras reais que todos conhecemos com personagens fictícios. Os personagens fictícios são, em geral, pouco conseguidos A principal excepção é Harvey Torritti, por alcunha o Feiticeiro, que talvez possamos considerar o elemento chave de todo o enredo. O livro começa com ele a tentar organizar em Berlim a fuga para o ocidente de um oficial de topo do KGB e acaba com a sua morte em 1991, quarenta anos depois. Ao longo de todo esse tempo, o Feiticeiro comporta-se consistentemente como herói da guerra fria inteiramente dedicado à Companhia (nome por que a CIA é conhecida pelos próprios agentes) e imune a pressões ou interesses mesquinhos, mas também como um aventureiro excêntrico e um alcoólico sempiterno, qualidades que contribuem para o tornar especialmente simpático aos olhos dos leitores. O ponto mais alto da sua carreira tem lugar quando expulsa Robert Kennedy da sala de operações quando este se julga no direito de vasculhar informação classificada.

Em contrapartida, são magistrais os retratos de Kim Philby, o espião britânico ao serviço da União Soviética que durante anos a fio torpedeou todas as principais operações da CIA, e de James Jesus Angleton, o grande amigo e confidente de Philby que, depois do seu desmascaramento, passou a desconfiar de tudo e de todos, a ponto de, ainda em 1974, ainda persistir em considerar o cisma sino-soviético um embuste destinado a enganar os Estados Unidos.

São igualmente convincentes as representações de John Kennedy, Robert Kennedy e Ronald Reagan. John Kennedy move-se com elegância e à vontade entre milionários, diplomatas, playboys e gangsters, sempre acompanhado do petulante e conflituoso Bobby que não hesita em comportar-se por vezes como se estivesse investido de autoridade presidencial. Quanto a Ronald Reagan, é efectivamente o pobre tolo que sempre aparentou ser, apenas preocupado com trivialidades e relações públicas e tomando decisões de enorme responsabilidade, tais como fornecer artilharia pesada aos fundamentalistas afegãos que combatem os soviéticos, por capricho momentâneo ou desejo de agradar a alguém.

No conjunto, Littell parece pensar que o contributo efectivo da CIA para o desfecho da Guerra Fria foi marginal. Enredada em contínuas questiúnculas internas, propensa a acções aventureiras de duvidosa eficácia, frequentemente mal informada quanto ao que de facto se está a passar, dirigida por burocratas que apenas desejam cair nas boas graças dos políticos ou por excêntricos sem verdadeira noção das realidades, crescentemente condicionada na sua acção pela pressão da opinião pública americana, minada por agentes soviéticos infiltrados ao mais nível dos serviços de contra-espionagem, a CIA acaba muitas vezes por ser um estorvo para os propósitos da política externa norte-americana.

A moral da história é adequadamente posta na boca de Harvey Torritti: “We screwed up less than they did. That’s why we won.”