1.10.03

CIA para principiantes. Ocupei uma parte das últimas seis semanas a ler The Company: A novel of the CIA, de Robert Littell, um gigantesco livro com quase 900 páginas.

Embora, ao contrário do que pretenderam certos críticos, o autor não se encontre, nem de perto nem de longe, ao nível de Le Carré, no conjunto dei o meu tempo por bem empregue.

O romance cobre todo o período da Guerra Fria, de 1950 a 1991, com um flash-back para 1948, quando a URSS passa a dispor da bomba atómica, e uma breve extensão até 1995. Os episódios principais estão construídos em torno de algumas das fases mais marcantes do conflito: a Guerra da Coreia, o esmagamento da revolta húngara de 1956, o episódio da Baía dos Porcos, a guerra do Afeganistão, a perestroika e o desmoronamento final da União Soviética. Em fundo, perpassam também episódios como o golpe de estado contra Mossadegue, a intervenção na Nicarágua, o cisma sino-soviético, o início e o fim da guerra do Vietname, o escândalo Watergate, a morte de João Paulo II, a revolução iraniana, o caso Irão-contras, a primeira guerra do Golfo e sempre, sempre, o conflito israelo-árabe. Bin Laden tem uma breve aparição em Peshawar.

Embora não se aprenda propriamente coisas novas sobre a história contemporânea, este relato romanceado, ao estilo das novelas de Gore Vidal, proporciona uma visão mais rica dos acontecimentos, principalmente porque Littell tem talento para construir ambientes que definem uma época. Além disso, o detalhe com que descreve o modo como as operações são conduzidas no terreno revela que se trata de alguém que estudou a fundo o seu assunto.

De ambos os lados da barricada, os agentes são apresentados como sujeitos idealistas que se batem acima de tudo por mundo livre ou por um mundo sem exploradores, conforme o caso, o que, embora lisonjeiro para os envolvidos, é provavelmente pouco objectivo. Esta benevolência genérica aplica-se inclusivamente aos agentes duplos e aos traidores.

Uma das particularidades mais interessantes do livro é a mistura de figuras reais que todos conhecemos com personagens fictícios. Os personagens fictícios são, em geral, pouco conseguidos A principal excepção é Harvey Torritti, por alcunha o Feiticeiro, que talvez possamos considerar o elemento chave de todo o enredo. O livro começa com ele a tentar organizar em Berlim a fuga para o ocidente de um oficial de topo do KGB e acaba com a sua morte em 1991, quarenta anos depois. Ao longo de todo esse tempo, o Feiticeiro comporta-se consistentemente como herói da guerra fria inteiramente dedicado à Companhia (nome por que a CIA é conhecida pelos próprios agentes) e imune a pressões ou interesses mesquinhos, mas também como um aventureiro excêntrico e um alcoólico sempiterno, qualidades que contribuem para o tornar especialmente simpático aos olhos dos leitores. O ponto mais alto da sua carreira tem lugar quando expulsa Robert Kennedy da sala de operações quando este se julga no direito de vasculhar informação classificada.

Em contrapartida, são magistrais os retratos de Kim Philby, o espião britânico ao serviço da União Soviética que durante anos a fio torpedeou todas as principais operações da CIA, e de James Jesus Angleton, o grande amigo e confidente de Philby que, depois do seu desmascaramento, passou a desconfiar de tudo e de todos, a ponto de, ainda em 1974, ainda persistir em considerar o cisma sino-soviético um embuste destinado a enganar os Estados Unidos.

São igualmente convincentes as representações de John Kennedy, Robert Kennedy e Ronald Reagan. John Kennedy move-se com elegância e à vontade entre milionários, diplomatas, playboys e gangsters, sempre acompanhado do petulante e conflituoso Bobby que não hesita em comportar-se por vezes como se estivesse investido de autoridade presidencial. Quanto a Ronald Reagan, é efectivamente o pobre tolo que sempre aparentou ser, apenas preocupado com trivialidades e relações públicas e tomando decisões de enorme responsabilidade, tais como fornecer artilharia pesada aos fundamentalistas afegãos que combatem os soviéticos, por capricho momentâneo ou desejo de agradar a alguém.

No conjunto, Littell parece pensar que o contributo efectivo da CIA para o desfecho da Guerra Fria foi marginal. Enredada em contínuas questiúnculas internas, propensa a acções aventureiras de duvidosa eficácia, frequentemente mal informada quanto ao que de facto se está a passar, dirigida por burocratas que apenas desejam cair nas boas graças dos políticos ou por excêntricos sem verdadeira noção das realidades, crescentemente condicionada na sua acção pela pressão da opinião pública americana, minada por agentes soviéticos infiltrados ao mais nível dos serviços de contra-espionagem, a CIA acaba muitas vezes por ser um estorvo para os propósitos da política externa norte-americana.

A moral da história é adequadamente posta na boca de Harvey Torritti: “We screwed up less than they did. That’s why we won.”

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