Recebi de uma leitora, Nina Basílio, o seguinte email que a seguir transcrevo com a sua autorização. Este depoimento parece-me ser especialmente relevante por apontar exemplos concretos de como uma informação de péssima qualidade é utilizada para alimenta preconceitos estúpidos entre o público telespectador.
Chamo a atenção para a atitude xenófoba que persistentemente se insinua por detrás de toda a ignorância patenteada pelas «notícias» referidas. Nunca me cansarei de repetir que a nossa televisão é uma área de catástrofe a exigir uma atenção séria.
Caro João Castro:
A propósito de sua indignação com os telejornais portugueses e seus comentaristas, não é nada de espantar, visto que os seguintes factos são rotina:
Se os erros jornalísticos são comuns em qualquer parte do mundo, o que dizer do caso português, em que as notícias falsas constantemente divulgadas (mais do que o razoável) pelos canais de televisão NUNCA merecem a obrigatória (em
qualquer país civilizado) errata? Pior ainda, em uma espécie de histeria colectiva, comenta-se o jornalismo praticado no país, como se existisse jornalismo em Portugal (veja o blog Guerra e Pas) - na verdade, existe, mas
somente porque os artigos de opinião são considerados um género jornalístico. Pois em Portugal, em geral, não se tem ideia de como se produz uma notícia, antes julga-se que basta seguir o exemplo da coscuvilheira da aldeia: passa-se adiante o que se ouviu dizer, ou o que foi "soprado" aos
jornalistas por interesses óbvios, sem que haja a preocupação de apurar a VERACIDADE da informação. A esse respeito, tenho uma longuísssima lista de exemplos. No entanto, fico-me pelos exemplos de notícias falsas veiculadas por canais de televisão, um deles dito “jornalístico”, que nunca mereceram o obrigatório “erramos, pedimos desculpas”.
1. Sic Notícias, 5 de outubro de 2003: o boletim informativo das 10h00 dá destaque ao desaparecimento de uma avioneta, no Brasil, "que transportava o presidente do partido do presidente Lula da Silva" (percebe-se finalmente
porque a Sic e a Sic Notícias, nas últimas eleições presidenciais brasileiras, referiam-se a Lula como o "candidato populista do partido trabalhista brasileiro" - não era uma questão interpretativa, mas mero erro factual, e se nós percebíamos "partido trabalhista brasileiro" desse modo, em minúsculas, o locutor lia-o em maiúsculas). A verdade é que o dirigente desaparecido, José Martinez, era membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), populista e de direita, que nada tem a ver com o Partido dos
Trabalhadores (PT) do presidente Lula da Silva. O espantoso é que a Sic Notícias continuou a veicular a notícia com destaque, a abrir, com a voz alarmada do pivot, os seus boletins de hora em hora, até ao noticiário das 14h00, quando decidi ligar à redacção para evitar que mais brasileiros telefonassem ao Brasil para obter notícias adicionais sobre a morte da conhecidísssima figura, e gastassem assim inutilmente seu dinheiro. No noticiário seguinte, a falsa informação sumiu sem deixar rastos...
2. Dia 12/10/2003, 14h25: na Sic Notícias, os conflitos na Bolívia transformam-se em uma "guerra do petróleo" (sic). Enquanto são mostradas imagens de bombas de gasolina (???!!!), a voz off do locutor esclarece que o país está em guerra civil porque populares e oposição discordam da decisão governamental de "exportar petróleo" (sic, sic, sic) para os EUA via Chile. Estaria tudo muito bem, não fosse o facto de a Bolívia não possuir petróleo algum (quiseram os bolivianos...) Mais uma vez, a realidade conspira contra a Sic, que reaje fazendo simplesmente "sumir" a notícia, após novo telefonema de minha parte.
3. No dia 27/06/2003, o Jornal Nacional da TVI, em reportagem sobre o desemprego no Rio de Janeiro, afirmou, com a devida voz alarmada do repórter-correspondente, no estilo "jornalismo aos gritos" da TVI, que "a inflação no país está descontrolada". Ora, naquele mês, o Brasil entrava no segundo mês consecutivo de deflação -- além do que, a inflação no país está controlada desde 1994! Telefonei à TVI e fui atendida com escárnio (tal como
foi desdenhoso o atendimento da Sic Notícias, acrescente-se), e nem sinal de errata, como é óbvio.
4. Na primeira semana de Julho, a visita do presidente Lula da Silva foi o mote para mais uma festa da histeria colectiva do jornalismo português: segundo o telejornal da noite da SIC, “Portugal é o 3º maior investidor estrangeiro no Brasil”; no mesmo dia, de acordo com a TVI, “é o 2º”. Quem mais se aproximou da verdade foi o jornal Público, no dia seguinte, que colocou Portugal em 6º lugar (a confusão de alhos com bugalhos é evidente - IDE etc. -, mas nem isso justifica a dança dos números).
5. Na primeira semana de Outubro, o Jornal da Noite da Sic veiculou a "notícia" de uma passeata realizada no Rio de Janeiro e organizada por actores da Rede Globo, contra o porte de armas por civis. No entanto, na notícia da Sic, a passeata transformou-se em uma “inédita” manifestação da
sociedade civil brasileira contra a violência urbana. Citando as palavras da pivot do telejornal: "é curioso que uma sociedade violenta como a brasileira necessite de uma telenovela para acordar para os problemas da criminalidade
urbana". Assim, no mundo da fantasia dos telejornais portugueses, a sociedade civil mais organizada do mundo (o juízo é da inspectora de direitos humanos da ONU, Asma Jaranhir, que esteve no início de outubro no Brasil a investigar grupos de extermínio), só se manifesta após a realidade ser mostrada em uma novela da Globo. Somente os repórteres da Sic não sabem que já houve centenas (SIM, JÁ CHEGAMOS ÀS CENTENAS) de manifestações da sociedade civil brasileira contra a violência no Rio de Janeiro e em todo o país, e há dezenas de ONGs dedicadas ao tema, a mais famosa das quais a Viva Rio, composta por moradores da Zona Sul carioca, a qual, aliás, ao lado de muitas outras ONGs cariocas, manifestara-se recentemente (na imprensa, em manifestações de rua) contra a exploração da criminalidade carioca em telenovelas da Globo. A passeata dos actores da Globo foi uma reacção à Viva Rio.
6. Hoje, 20/10/2003, às 10h45, a Sic Notícias que transmite uma discussão, no âmbito do programa Opinião Pública, sobre a legalização de imigrantes brasileiros. Questionando a justiça do tratado bilateral que deu origem à legalização, o jornalista da Sic afirma que, se o Brasil é o país que mais tem imigrantes em Portugal, o contrário não é verdadeiro, pois Portugal não é o país que mais tem imigrantes no Brasil, afirmação que é corroborada por
um alto funcionário do SEF presente no progrma. Ora, PORTUGAL É SIM, DE LONGE, O PAÍS QUE MAIS IMIGRANTES TEM NO BRASIL: 1 MILHÃO (ISSO MESMO, 1 MILHÃO DE IMIGRANTES, E NÃO LUSO-DESCENDENTES), MUITOS DELES ILEGAIS, PRINCIPALMENTE NO NORDESTE BRASILEIRO. Aliás, minutos antes, o mesmo jornalista afirmara não haver portugueses ilegais no Brasil, outro disparate com que também concordou prontamente o funcionário do SEF. Telefonei à Sic,
o mesmo escárnio, enviei e-mail, não foi veiculado, e o programa terminou, claro está, sem nenhuma rectificação à falsa informação apresentada.
Os demais e extensos capítulos do anedótico jornalismo que se faz em Portugal (incluindo os jornais e revistas) serão por mim divulgados brevemente, em blog próprio se houver paciência para tal, ou em outros blogs. Fazer uma queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social também passou-me pela cabeça, mas como já tive a minha dose de escárnio e risinhos, é possível que não o faça.
Cumprimentos, parabéns pelo seu blog
Nina Basílio
23.10.03
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