João Bénard da Costa recordou há uma semana no Público o lendário reitor Sérvulo Correia, que, a partir dos anos 50 dirigiu, durante duas décadas, o liceu Camões.
Segundo Bénard da Costa, um episódio que relatou provaria que o estilo autoritário e prepotente de Sérvulo Correia se justificava pela convicção profunda de ser essa a melhor forma de cuidar da educação dos jovens a cargo do Liceu que dirigia. Logo, ele seria, no fundo, uma pessoa bem intencionada que sem hesitar teria sacrificado tranquilidade pessoal e reputação para fazer aquilo que acreditava ser o melhor para os alunos. Não receara ser impopular, como agora se diz, para assumir plenamente as suas responsabilidades perante a comunidade escolar e o país.
Vistas as coisas à distância, achei a história curiosa, mas não inteiramente surpreendente, talvez porque sempre tive a percepção de que, sendo Sérvulo Correia um homem inteligente, as coisas muito estúpidas que dizia e as figuras tristes que fazia só poderiam resultar de um apego irracional a crenças absurdas em que, todavia, apegadamente acreditava.
Permitam-me, todavia, que recorde uma outra história, também ela pessoal, acerca do mesmo personagem. Em meados dos anos 60 (creio que precisamente em 1965), três quartos dos alunos da minha turma do Liceu Camões, secção do Areeiro, faltaram à exibição de ginástica programada para o dia 10 de Junho, Dia da Raça, no Estádio Nacional.
No último dia de aulas, fomos todos chamados à presença do Reitor e sumariamente expulsos do liceu. Nas condições política da época, isto poderia até certo ponto ser considerado normal, dado que, no quadro da Mocidade Portuguesa, a nossa ausência equivalia a uma espécie de deserção. Mas agora vem a parte mais curiosa: apesar de, por razões de saúde, eu ter sido nesse ano dispensado da ginástica, fui expulso como os outros sem apelo nem agravo. Nem se pode dizer que essa decisão tivesse resultado de um equívoco ou de um impulso de momento, porque, embora o facto fosse de todos conhecido e explicitamente alegado em minha defesa, ela não foi revogada nas semanas seguintes.
Apenas três meses depois, já em Setembro, o vice-reitor Salvador do Carmo finalmente conseguiu a anulação da pena a todos os alunos.
Este caso serve para mostrar como, apesar de todas as «boas intenções» do Reitor Sérvulo Correia, a estupidez prepotente reinava absoluta no Liceu Camões desses anos. Hoje, porém, está muito em voga a nostalgia do autoritarismo, o que me parece uma irresponsabilidade vinda de pessoas que puderam comprovar no seu dia a dia as suas nefastas consequências.
Argumentar com as boas intenções de alguém pode ser relevante de um ponto de vista exclusivamente pessoal, mas um balanço sério não pode ignorar as consequências práticas dessas intenções. E a verdade é que o sistema vigente no Liceu Camões só servia para fomentar a falsidade, a dissimulação, a mesquinhez, o culto das aparências, a hipocrisia, a subserviência, a ignorância e a ausência de sentido crítico, - para não mencionar outras coisas mais graves, mas que exigiriam uma explicação detalhada. Ora essas eram, e continuam a ser quarenta anos depois, as mais correntes patologias da sociedade portuguesa.
Escadas que não se podia descer, escadas que não se podia subir, corredores por onde só podiam circular os alunos, outros reservados aos professores, obrigatoriedade de usar gravata por baixo da camisola de gola alta, proibição de correr no recreio, proibição de frequentar cafés a menos de cem metros do liceu, proibição de parar no jardim da Praça José Fontana – eis algumas das normas arbitrárias do regime de sistemática e quotidiana humilhação a que alunos e professores eram submetidos sob os mais variados pretextos. O absurdo era planeado ao mais ínfimo detalhe no Liceu Camões desses anos de chumbo.
Alguém com dois dedos de testa acreditará que é esse o caminho para reformar a nossa educação? Não creio que Bénard da Costa pense assim, mas muita gente é capaz de retirar essa consequência do que ele escreveu.
Poderia contar muitas outras histórias sobre esses tempos, designadamente algumas reveladoras de que Sérvulo Correia era alguém que só conhecia e respeitava a linguagem da força, mas hoje fico-me por aqui.
27.8.04
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