22.5.09

A cartilha maternal

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O ser humano habitua-se a coisas muito estranhas, e uma das coisas mais estranhas a que se habituou sem fazer perguntas foi àquela cena de o Economist, uma publicação que acima de tudo valoriza as liberdades do indivíduo em geral e a liberdade de expressão do indivíduo em particular não publicar artigos assinados.

Tudo o que ali se lê, como se sabe, reflecte a opinião do colectivo, algo que nem no saudoso Pravda acontecia.

Há, porém, na aplicação do princípio, uma dificuldade prática que me intriga desde sempre: como conseguem eles manter uma tal uniformidade de pontos de vista no interior de cada número, de número para número, de ano para ano e até de século para século?

Ponho de parte, por razões óbvias, a hipótese de ser tudo escrito pelo mesmo indivíduo. Não concebo também que cada número seja revisto e corrigido de fio a pavio por um único cavalheiro. (Como é que eu sei? Sei, pronto.)

Resta a hipótese de os redactores se guiarem por uma cartilha muito detalhada que a todos ilumina quando têm que opinar sobre os mais variados assuntos.

É a adesão estrita a uma doutrina bem encaixada nos cornos que, por exemplo, permite a alguém, mesmo sem conhecer os detalhes da questão, sentenciar que os problemas económicos portugueses se resolvem, como há escassas semanas declararam, liberalizando o mercado de trabalho e reduzindo o envolvimento do Estado na economia. Isto, lá na casa, está certo por definição.

Um ponto que decerto figura em grande destaque na cartilha da revista é o cuidado de não se meterem com os EUA. As pessoas já se esqueceram, por exemplo, que o Economist apoiou a invasão do Iraque com argumentos de baixo nível e que, durante muito tempo, esteve do lado do Bush. Depois, como o país virou, também virou, e, como não se sabe quem escreveu os artigos, ninguém é responsável por eles.

Por outro lado, o Economist indigna-se muito com a corrupção em países onde a revista não se vende muito, como o Zimbabwe, a África do Sul ou mesmo a Itália, mas aborda sempre com pinças ou mesmo compreensão a espantosa sucessão de trafulhices que levou globalmente à bancarrota o sistema financeiro norte-americano. Mais uma vez, não há ninguém que dê a cara pelas doutas opiniões favoráveis à "inovação financeira" publicadas ao longo de anos e anos.

É tão bom um irresponsável poder beneficiar do anomimato do "colectivo", não é? Quem sabe, sabe.
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5 comentários:

Joana Lopes disse...

Só assinado pelo colectivo talvez não no Pravda mas certamente em «O Tempo e o Modo» era MRPP...

Luis M. Jorge disse...

"Não concebo também que cada número seja revisto e corrigido de fio a pavio por um único cavalheiro. (Como é que eu sei? Sei, pronto.)"

Eu por acaso concebo, não por causa do conteúdo mas da uniformidade estilística. Há uns anos os principais artigos revelavam apontamentos de um encantador humor britânico, muito refinado, e nitidamente originário da mesma cabeça.

Entretanto o editor reformou-se, e foi substituido por um americano. A revista decaiu estilisticamente de imediato, e nunca voltou a ser a mesma.

jj.amarante disse...

Individualistas liberais? Com aquela cor nunca me enganaram...

Anónimo disse...

Isto da "Liberdade de Pensamento" e do "Criticamos todos", tem que se lhe diga.

Há um estilo muito liberal thinking que, criticando todos, é mais severo para com "os outros" e mais forgiving para com "os nossos".

Quando o pensamento é de qualidade, este estilo aparenta equidistância e o leitor honesto acaba por perdoar - a qualidade acaba por "amaciar" a parcialidade.

"Anónimo do 1º ao 7º"

João Pinto e Castro disse...

Lembra bem, Joana. Só que, nesse caso que recorda, os redactores queriam evitar ser presos. E olhe que, já depois do 25 de Abril, ainda foram engaiolados mais três; um em 1974 e dois em 1975.