12.5.06

O último rosto

Na semana passada, morreu a primeira mulher que apareceu num écrã de televisão. Ao que suponho, trabalharia com os cientistas pioneiros que construíram o primeiro protótipo.

Durante algum tempo, a televisão permaneceu um bicho de laboratório. Congeminavam-se sem dúvida possíveis aplicações militares. Em seguida, passou ao circo: era exibida em feiras populares onde as pessoas iam espreitar a preto e branco, numa caixa minúscula, as mesmas imagens disponíveis ao vivo e a cores a alguns passos de distância.

Depois, os aparelhos começaram a espalhar-se pelas cidades. Os transeuntes acotovelam-se para contemplar a caixa mágica na montra de alguma loja que a usava como técnica promocional para atrair clientes - não para comprar televisões, é claro, mas lâmpadas, ferros eléctricos ou telefonias.

Animaram-se os cafés com os clientes que os frequentavam, especialmente ao sábado à noite, para ver televisão. As associações recreativas cobravam bilhete pelo mesmo espectáculo.

Certas famílias mais à frente acolheram-na em suas casas. Quando deram fé, os seus quotidianos haviam sido reorganizados pelas exigências da programação. Nesse tempo, prestava-se atenção até aos interlúdios motivados por falhas técnicas. Se desse futebol, as pessoas viam; se desse missa, as pessoas viam; se desse Shakespeare, as pessoas viam também.

Um dia, a televisão pintou-se de cores, Depois, começou a chegar também por satélite. Cresceu o número de canais. Um aparelho já não era suficiente para toda a família. Penetraram nos quartos de dormir, nas cozinhas, nas casas de banho. Daí saltaram para os escritórios, as salas de espera dos consultórios, os aeroportos, as farmácias, as estações de serviço, os táxis, os estádios de futebol, os espaços de culto religioso. Há quem traga um pequeno aparelho no bolso para situações de emergência.

Paralelamente, cresce o número de câmaras e de circuitos privados. Os nossos movimentos são acompanhados nos bancos, nas estradas, nos aeroportos, nos estádios de futebol. Em breve ninguém dará um passo que não tenha sido registado. Os apanhados entraram no quotidiano: "sorria, está a ser filmado."

Os humanos não se reproduzem, as televisões sim. Virá o dia, não muito longínquo, em que haverá mais câmaras e receptores de televisão do que pessoas. Muitas câmaras ficarão sem pessoas para registar. Guiadas por sensores ópticos rodarão continuamente em busca de alguém que possam captar, mas em vão.

Certas classes de televisões mais desfavorecidas queixar-se-ão da intolerável desigualdade que condena um cada vez maior número delas a não captarem um único rosto humano durante anos a fio. Aumentará a ociosidade televisiva de longa duração.

As novas gerações de aparelhos crescerão nesse ambiente de exclusão e marginalidade em relação às pessoas, de tal modo que muitos jovens nunca terão visto uma em toda a sua vida. Alguns começarão a suspeitar de que a humanidade acabou. Seitas hereges proclamarão que os seres humanos não passam de uma fábula inventada para amedrontar câmaras e receptores crédulos e ignorantes.

Imagino, num futuro incerto, o telejornal da noite a abrir com esta notícia: "Faleceu ontem em sua casa, vítima de doença prolongada, o último aparelho de televisão que alegadamente teria acolhido nos seus raios catódicos um rosto humano."

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