10.5.06

Tretas

O Manual do Utilizador do último automóvel que comprei tem 580 páginas, mais do que a tradução da Ilíada do Frederico Lourenço. Alguém espera realmente que eu o leia? A verdade, porém, é que ter carta de condução já não é suficiente para um sujeito conduzir um carro. Estou preocupado com a eventualidade de um dia destes poder ficar trancado dentro dele e não conseguir sair.

Há dias, o João Paulo, condoído com a minha dificuldade em manipular os múltiplos comandos à distância espalhados pela sala, emprestou-me um comando universal para substituir todos os comandos especializados. Como se eu pudesse tirar férias para aprender a mexer nele...

Cá em casa, ninguém sabe usar todos os electrodomésticos. Aliás, ninguém sabe usar nenhum deles, de modo que aplicamos o princípio da desvantagem comparativa: cada um de nós opera aqueles em que é que relativamente menos incompetente.

A crescente complexidade dos equipamentos com que interagimos no dia a dia associada à mania da especialização transformou-nos numa sociedade de incompetentes. O mesmo se passa em tudo o resto, e designadamente no mundo das ideias, onde a complexidade dos conceitos também foi acompanhada de um ensino cada vez mais focalizado em áreas cada vez mais exíguas. Vai daí, como ninguém sabe verdadeiramente do que fala, qualquer pessoa pode dizer o que lhe vier à cabeça sobre qualquer assunto sem correr grande risco de ser apanhado em falso.

É por isso que triunfa a conversa da treta. Como combatê-la? Primeiro, esforçando-nos por não falarmos daquilo que ignoramos ou em que não meditámos, o que nem sempre é fácil, porque a pressão para asnear é muito forte. Segundo, treinando o nosso sentido crítico e aprendendo a questionar as afirmações alheias, particularmente aquelas que assumem um tom mais peremptório.

"On Bullshit", de Harry G. Frankfurt, ocupa 90% do espaço a fabricar uma definição de treta por meio de uma análise quase exclusivamente linguística, para só no final dedicar alguns parágrafos - mais precisamente, três - a discutir as suas causas e o que poderá ser feito para evitar as suas principais consequências. Ora, segundo ele, a treta tem três causas principais: a) a convicção generalizada de que os cidadãos de uma democracia devem ter opiniões sobre a condução da política do seu país; b) o cepticismo que nega o acesso à realidade objectiva; e c) o culto da sinceridade. Ora este moralismo barato, se me permitem, não passa de uma grande treta.

Uma investigação empírica sobre a treta procuraria, antes de mais, identificar as formas mais recorrentes de treta, classificá-las, entender os contextos e as causas imediatas que lhes dão origem e compreender que propósitos servem.Talvez assim pudéssemos chegar a conclusões mais relevantes.

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