28.8.12

Diferenciação por via judicial

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Não me sinto ainda capaz de avaliar o mérito dos processos movidos pela Apple contra a Samsung, embora me pareça algo peculiar o mero direito de proteger design e software com patentes.

O que desde já me parece evidente é que, ao acusar a Samsung de ter copiado aspectos centrais dos seus produtos iPad e iPhone, a Apple está implicitamente a admitir que nada de essencial a separa do seu concorrente e que, por conseguinte, é irracional pagar o preço extra que cobra por eles.

Por conseguinte, ou a Apple vence as ações judiciais que colocou em todas as regiões e países do mundo em que as acionou ou corre um sério risco de ser derrotada pela sua rival em todos os mercados, excepto os EUA.

A situação poderá tornar-se ainda mais grave se se gerar entre a opinião pública doméstica a ideia de que a decisão dos tribunais americanos é injusta e apenas se justifica por um impulso protecionista que, em última análise, só prejudica os consumidores.

Perde-se sempre alguma coisa quando o sucesso de uma estratégia de diferenciação depende mais de uma decisão judicial do que de uma efectiva perceção de superioridade.
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20.8.12

50

A única falha imperdoável da lista dos "50 livros que toda a gente deve ler" do Expresso é ignorar Tom Sawyer & Huckleberry Finn, de Mark Twain, e A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Fica-se com a ideia que os autores da seleção se esforçaram demasiado por parecerem Pessoas Muito Sérias.

Outras falhas - inclui poucos russos (faltam Gogol, Turguéniev, Babel e Bulgakov, no mínimo); limita a participação de cada autor a uma só obra (regra inaceitável para Stendahl, Dostoevsky, Borges e Conrad); não abrange géneros ditos menores (policial, ficção científica, fantástico); Guimarães Rosa ficou de fora - serão questão de gosto pessoal.

A designação escolhida para a lista, porém, levanta-me problemas. Porque é que uma lista de 50 grandes livros se limita a obras literárias? No critério lato proposto de livro imperdível, nem um ateu se atreveria a deixar de fora a Bíblia.

Também é difícil perceber-se a abertura de exceções à exclusão da não-ficção para listar A República e os Ensaios de Montaigne. Pode-se argumentar que os escritos filosóficos de Platão têm qualidade literária, mas o mesmo seria possível dizer dos de Demócrito e de Nietzsche, entre outros. E se vamos abrir um espaço para ensaistas, como acolher apenas Montaigne e deixar de fora Bacon, La Bruyère ou Hazzlitt?

Finalmente, o teatro e a poesia estão mal pessimamente representados. Só se arranjou espaço para duas peças? E que dizer de uma seleção de poesia que não abrange sequer Rimbaud?

Uma outra nota. Esta é, evidentemente, uma lista para leitores portugueses. Doutro modo, desculpem lá, não faria sentido que incluisse Eça. E mesmo o Pessoa, vamos lá...

Quero eu dizer com isto parecer-me óbvio que uma recomendação de livros para portugueses deveria ter também por propósito familiarizá-los com a cultura do seu país. O que implicaria incluir nela pelo gente como Camões, Fernão Mendes Pinto, António Vieira, Bocage, Camilo e mais uns quantos que, não se encontrando entre as grandes luminárias do universo, nós ainda assim devemos conhecer para melhor nos conhecermos.

10.8.12

Mais uma caçada aos gambozinos


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Ao cabo de um ano bem contado a vasculhar as catacumbas do orçamento, as luminárias governativas decidiram que, afinal, as gorduras do estado se encontram, não nos célebres consumos intermediários, mas nas PPP e nas fundações.

Sobre as PPP, já sabemos no que deu o exercício, mas a operação “desperdício nas fundações” ameaça um desenlace ainda mais ridículo.

Parece claro que o trabalho do governo consistiu basicamente em incumbir um bando de garotos de recolher alguns dados que não entendiam e incluí-los numa folha de excel. No final, foi produzido um pomposamente chamado “relatório”, que, a bem dizer, nem define o seu propósito nem apresenta recomendações.

Desde a prometedora revelação de que a Gulbenkian seria uma fundação pública, a cada hora que passa são revelados mais dislates constantes da informação divulgada à imprensa.

O que, porém, não faltava a essa informação era sound-bytes prontos a usar, que certos media prontamente abocanharam, entre eles a denúncia de que metade do dinheiro entregue pelo estado às fundações fora despendido pela “fundação do Magalhães”, pouco interessando esclarecer que, tendo a verba origem nas empresas de telecomunicações e não podendo ser gasta noutra finalidade, ela de facto não foi financiada pelo estado.

Acresce que a própria decisão de confinar a análise ao triénio 2008-10 se justifica principalmente pela possibilidade de nela incluir o Magalhães. Acrescentar-lhe mais anos reduziria drasticamente a percepção de que o estado gastara fortunas com a fundações.

Ora a verdade é que, retirando às transferências para as fundações o Magalhães e o financiamento do ensino superior, quase nada fica, sobretudo se raciocinarmos em termos anuais (e não de triénios, opção mansamente acolhida pelos media que serviu apenas para confundir a opinião pública).

De modo que, sabe-se agora, para além de se reduzir a algumas dezenas de milhões de euros anuais (estamos outra vez na escala dos 0,01% do PIB), o essencial dos cortes incidirá no financiamento de actividades culturais. O terreno foi preparado com a revelação do apoio a uma tal Fundação do Carnaval de Ovar, calculada para indignar os pategos, mas as baterias acabaram por ser apontadas a coisas como o museu de Cascais que reúne obras de Paula Rego. De facto, se os Mirós da colecção do BPN vão ser vendidos, que fica cá a fazer a Paula Rego?

Estou com o Tio Patinhas: um cêntimo mal gasto é um cêntimo mal gasto. Se esquecermos por um momento a demagogia em torno das “gorduras do estado”, faz todo o sentido eliminar todas as transferências injustificáveis, mesmo que insigificantes. Mas, então, o que é preciso é começar por definir “mal gasto” e, depois, saltar a pés juntos sobre tudo o que encaixe na definição. É preciso definir objectivos, é preciso traçar prioridades, é preciso seleccionar prioridades, por outras palavras é preciso ter uma política clara, que é o que não tínhamos nem temos.

Sem isso, talvez o estado venha a gastar menos, mas não está garantido que gaste melhor. No final, ganhará quem tiver mais poder para influenciar as decisões discricionárias dos poderes públicos, como certas declarações de gente influente vindas a público nos últimos dias já começaram a revelar.

Não vamos, pois, ter nenhuma melhoria na racionalidade da distribuição dos dinheiros públicos, pela simples razão que não era isso que se pretendia, mas apenas fazer notícias para os jornais, uma forma de fazer política que indiscutivelmente fica muito cara ao país.
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2.8.12

As PPP explicadas ao povo e às crianças

Caldeira Cabral escreve hoje no Negócios, num artigo intitulado "Cortes nas PPP com aumento de encargos futuros, não obrigado!":

O discurso sobre as Parcerias Público-Privadas (PPP) criou expectativas exageradas sobre a dimensão e o tipo de cortes que é possível efectuar. Em primeiro lugar, criou uma ideia errada quanto à escala e montantes envolvidos, nomeadamente relativamente ao peso dos encargos com as PPP na despesa pública ou no PIB. Em segundo lugar, criou a ideia de que é fácil cortar grandes parcelas dos pagamentos das PPP, sem se discutir o que esses cortes podem significar.
 

As expectativas criam riscos de soluções apressadas com falsas poupanças, que apresentem diminuições nos pagamentos de curto prazo, à custa da transferência de obrigações e de maiores encargos futuros para os contribuintes.

A Dimensão da Poupança.

Nos próximos 30 anos, os montantes brutos pagos a todas as PPP serão em média cerca de 0,6% do PIB do respectivo ano, ou seja, 1,2% da despesa pública, o que corresponde a cerca de 1/8 do investimento público médio anual dos últimos 30 anos. Como as PPP rodoviárias têm receitas (o Estado paga a disponibilidade, mas recebe portagens), o montante líquido de encargos para o Estado resultante das PPP é menor – cerca de 0,3% do PIB, montante que corresponde a 2,6% dos gastos com funcionários públicos ou a 2% das prestações sociais.
 

As despesas brutas com as PPP variam ao longo do tempo, atingindo valores entre os 1 e os 1,2% do PIB, em 6 dos próximos 30 anos, mas também valores entre os 0,1 e os 0,5% do PIB, em 15 dos próximos 30 anos. Assim, um corte de 30% nos gastos brutos com as PPP resultaria numa poupança inferior a 0,25% do PIB em 20 dos próximos 30 anos. Esta poupança seria bem-vinda, mas significa apenas uma pequena parte dos 4 ou 5 pontos do PIB que o défice tem de baixar. Infelizmente os cortes nas PPP apenas podem solucionar uma pequena parte do problema orçamental português, pelo que temos de continuar a melhorar muitos outros aspectos da despesa e da receita.

Cuidado com as falsas Poupanças

As despesas com PPP incluem três grandes componentes: o retorno do capital investido pelos privados; serviços (por exemplo: serviços hospitalares ou de manutenção de estradas) e receitas – portagens das PPP rodoviárias.
 

No que respeita à remuneração do capital investido, há referências a casos de taxas de retorno muito elevadas. Mas também são conhecidos casos em que os privados estão a obter retornos muito baixos, ou mesmo prejuízos (por exemplo, na Saúde). Há espaço para negociar, mas deve haver realismo sobre o nível de poupanças que se pode obter. Baixar a taxa de retorno em 2 ou 3 pontos percentuais não permite poupar mais do que 0,02% do PIB nos pagamentos anuais. E mesmo nos casos em que tal seja justo, será difícil fazer prova e conseguir fazer prevalecer esse ponto como argumento legal.
 

Assim sendo, é provável que a maioria das reduções de pagamentos negociadas seja feita com contrapartidas nas duas outras componentes (serviços e receitas).
 

Uma possibilidade será diminuir os encargos brutos das PPP passando as receitas das portagens para os privados. Seria apenas uma manobra contabilística, que não diminuiu os encargos líquidos do Estado no longo prazo.
 

Outra hipótese será o Estado conceder aos privados direitos adicionais, por exemplo, de aumento de preços das portagens ou de alargamento das concessões que expiram nos próximos anos, com as quais o Estado tem direito a receitas adicionais. Neste caso, é fácil parecer que se está a pagar menos, quando na realidade em termos líquidos a situação pode estar a piorar.
 

Uma última possibilidade será reduzir os serviços e as obrigações dos privados. Esta solução também é enganadora, pois o Estado pagará menos às PPP, mas ao dispensar os privados de obrigações (como a prestação de serviços de saúde ou a manutenção de infra-estruturas), transfere para os contribuintes encargos futuros eventualmente mais elevados.
 

Estes exemplos salientam que a pressão de apresentar resultados, cria o risco de o Estado perder dinheiro com a negociação das PPP, transferindo mais receitas e direitos para os privados do que a diminuição que consiga nos seus pagamentos. É importante estar atento, pois estas falsas poupanças podem custar caro aos contribuintes.

A crítica de "esquerda" às PPP

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Há pelo menos dois tipos de críticas às Parcerias Público-Privadas.

O primeiro é virtualmente indistinguível da vulgar crítica da direita ao investimento público: que é excessivo, que é pouco produtivo, que implica um pesado encargo para as gerações futuras.

O segundo, que classificarei “de esquerda”, prefere bater na tecla dos alegados benefícios inaceitáveis que delas decorrem para as empresas privadas envolvidas.

O que há de comum a ambas as críticas é uma oposição de princípio às Parcerias Público-Privadas. Não se trata de questionar este ou aquele modelo, este ou aquele projecto em particular, mas a própria aceitabilidade das PPP.

Na visão alternativa que perfilho, as PPP são uma estratégia de financiamento que permite aumentar a eficiência da despesa do estado nalguns domínios sem que isso implique a alienação da responsabilidade pública sobre eles. Por decorrência, uma PPP será boa quando cumprir cumulativamente duas condições: a) assegurar o cumprimento das políticas públicas traçadas; b) fazê-lo em condições financeiras vantajosas para o estado. Sei de casos em que foram elas foram cumpridas, mas também doutros em que falhou uma ou ambas.

Nem o PCP nem o BE aceitam tais critérios, porque abominam a mera possibilidade de subcontratação de serviços ao sector privado na saúde, nas auto-estradas e noutros domínios. Aparentemente, mais do que os serviços públicos, essas forças políticas pretendem a todo o custo salvaguardar os empregos públicos, independentemente das consequências que tal opção possa ter para a generalidade dos cidadãos.

Se assim não fosse, preocupar-se-iam em pesar as vantagens e desvantagens das PPP em cada domínio e caso particular, em vez de se limitarem a alimentar suspeições genéricas e, frequentemente, infundadas. Por isso, recorrem sem pestanejar a munições tomadas de empréstimo ao arsenal da direita, como sucede quando citam Medina Carreira ou Carlos Moreno (cujo livro sobre o tema deve ser considerado um insulto à inteligência dos leitores).

Naturalmente que este assunto pode e deve ser aprofundado (muito para além deste breve apontamento), mas do que não sobra dúvidas é que o resultado da convergência tácita entre PCP, BE, PSD e PP em relação às PPP foi e é uma desvalorização genérica do papel do investimento público sob qualquer das suas formas.
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