27.5.06

O que inventaram os ingleses quando inventaram o futebol moderno?



A palavra football começou por designar todos os jogos com bola cujos praticantes estavam apeados, ou seja, não montados a cavalo.

Tudo o que envolvia uma bola era football, independentemente de ela ser golpeada com os pés, com as mãos ou com a cabeça. Diz-se que os Aztecas o jogavam com cabeças de prisioneiros decapitados. Uma tribo do Amazonas ainda hoje pratica uma variante em que só é permitido tocar a bola com a cabeça. Sob uma forma ou outra, o futebol existe, pois, desde tempos imemoriais.

As regras desses divertimentos populares variavam conforme o local e as circunstâncias. Não havia um número fixo de participantes. Os espectadores poderiam entrar na contenda se e quando lhes apetecesse. Não havia árbitro, as situações dúbias eram resolvidas por consenso. A força física predominava sobre a habilidade.

As partidas degeneravam frequentemente em violentas cenas de pancadaria ou mesmo em motins. Por esse motivo, sucessivas leis proibiram sem resultado ao longo dos séculos a prática do futebol. Chegados ao século XIX, o desporto popular encontrava-se ainda nesse estado.

Foi então que apareceu o comboio, fomentando deslocações rápidas em longas distâncias numa escala nunca vista. O futebol deixou de ser uma realidade local, para passar a opor equipas de localidades afastadas habituadas a regras distintas.

Nestas circunstâncias, foi preciso chegar-se a acordo sobre os mandamentos do jogo. Conforme as preferências, o football subdividiu-se em várias modalidades. Por exemplo: para um lado foi o rugby, para o outro o soccer.

A emergência de um "dominant design " (como hoje diríamos) para o desporto jogado apenas com os pés ocorreu inicialmente de forma espontânea. Em 1863 foi criada a Football Association, a primeira organização de âmbito nacional especificamente encarregada de codificar as regras do futebol e de vigiar a sua aplicação. Em seguida, o sistema, consistente num conjunto de regras aceites voluntariamente como razoáveis, impôs-se rapidamente, primeiro em Inglaterra, depois no mundo.

Porque é que esta forma de conceber o desporto se converteu num tal sucesso à escala mundial? A minha explicação é que ela correspondia maravilhosamente ao espírito do tempo.

O futebol moderno representava o triunfo da civilização sobre a natureza, da habilidade sobre a força, da ordem sobre o caos, da lei sobre o arbítrio, do universal sobre o local.

O futebol incorporava uma ideia de progresso que todavia não negava a importância da emoção e da espontaneidade. Promovia as luzes temperadas pelo romantismo, uma espécie de síntese harmoniosa das grandes correntes filosóficas contenporâneas.

O traçado das linhas do campo de jogo sobre a relva resume perfeitamente, a meu ver, a carga simbólica que consigo transporta o futebol moderno.

Neutron Jack



Quando eu era miúdo, contavam-se anedotas sobre o General Electric. Em nossas casas havia televisões General Electric, frigoríficos General Electric, rádios General Electric, ferros de engomar General Electric.

Alguém sabe o que é que a General Electric, a empresa fundada pelo grande inventor Thomas Alva Edison, faz hoje? Aparentemente, faz dinheiro.

Quando, em 1981, Jack Welch tomou as rédeas da General Electric, ela empregava 411 mil trabalhadores. Oito anos depois, abandonara todas as linhas de produto que a haviam tornado mundialmente conhecida e reduzira os seus efectivos para apenas 276 mil pessoas.

O novo CEO ganhou a alcunha de Neutron Jack porque, tal como a bomba de neutrões, matava as pessoas deixando intactas as coisas.

Parece, pois, que o único propósito da General Electric passou a ser "gerar valor para os accionistas". Mas, aqui há uns anos, o economista britânico John Kay fez notar que as acções da empresa apenas haviam superado ligeiramente o índice Standard & Poor's. Por outras palavras, o "método do chimpanzé sueco", consistente em seleccionar aleatoriamente uma carteira de títulos, teria produzido no longo prazo ganhos equivalentes aos conseguidos pelo gestor mais admirado da América.

Não deixa de ser irónico que, vinte e cinco anos depois da ascensão ao poder de Jack Welch, a empresa outrora famosa pelas suas inovações seja mais conhecida do público pelos livros sobre a sua pessoa encomendados pela super-estrela do mundo de negócios do que pelos produtos que vende no mercado mundial.

17.5.06



Rembrandt: Auto-retrato.

16.5.06

Felipão (2)

Ser treinador de futebol é um modo de vida, não um modo de morte. Tirando psicopatas como o Mourinho, permanentemente dispostos a apostar no tudo ou nada, os oficiais desse ofício fazem escolhas racionais ditadas pelas suas ambições profissionais de longo prazo.

O portuguesinho, e principalmente o mulherio inconsciente, que leva a sério a publicidade da Galp e do BES, acredita que é possível Portugal sagrar-se campeão mundial, desde que, é claro, "os jogadores dêm o litro".

Scolari entende o suficiente de futebol para saber como isso é improvável. Do ponto de vista da sua carreira não é importante que Portugal seja campeão, mas apenas que faça "boa figura". Passar a primeira fase é uma necessidade; chegar aos quartos de final, a meta razoável; atingir a meia final, um bambúrrio.

É em função desse raciocínio que estrutura a equipa, e não há dúvida que, no essencial, está certo. Ao contrário de outros, ele entende que formar uma equipa não é a mesma coisa que fazer uma colecção de cromos da bola. Mais: ele sabe que se ganha jogos com o currículo dos jogadores, tal como se ganha jogos com a cor das camisolas. Ele precisa de uma equipa sólida e fiável. Para isso rodeia-se de gente de confiança.

Tal como o FCPorto, com o qual não poderia deixar de entrar em confronto, Scolari dá prioridade ao espírito de equipa em detrimento das individualidades, uma estratégia tanto mais certa quanto é facto que até nem tem muitas individualidades por onde escolher.

Na verdade, como alguns notaram, é algo estranho o campeão nacional quase não estar representado na selecção. Mas há uma boa justificação para isso: é que Helton, Pepe, Paulo Assunção, Lucho e Jorginho não são portugueses.

E o Quaresma? Na equipa errada - o Sporting, por exemplo - o Quaresma nunca passaria de um brinca-na-areia. Este ano progrediu significativamente, mas ainda está longe de ser um jogador feito, à altura de disputar um Campeonato do Mundo. E, depois, imaginam que ele poderia tirar o lugar ao Cristiano Ronaldo? Tenho muita pena, mas, neste particular, não concordo com o meu Presidente.

E o Moutinho? Ora, deixem o rapaz crescer...

A única decisão verdadeiramente questionável do seleccionador é o guarda-redes. Scolari não quer o Baía pela simples razão de que ele seria um pólo de autoridade e liderança no balneário alternativo à sua pessoa. Com a saída do FCPorto do Deco, do Ricardo Carvalho, do Paulo Ferreira, do Postiga, do Costinha e do Maniche, o problema ficou atenuado. Mas o Scolari não poderia voltar atrás sob pena de revelar publicamente as suas motivações quando, há dois anos, resolveu afastar Vítor Baía.

Vindo de quem vem...

O apoio de Manuela Ferreira Leite ao encerramento de algumas maternidades só poderia ser considerado uma vitória do Governo se houvesse alguma coisa que ela achasse não dever ser encerrado.

15.5.06



Rembrandt: Auto-retrato.

Sugestão de reforma estrutural

Já repararam que, na final da Taça de Portugal, ao contrário do que sucede em qualquer outra parte do mundo, em vez de as excelências descerem ao relvado para entregarem o troféu aos vencedores, é a equipa vencedora que tem que subir à tribuna para recebê-lo das mãos das excelências?

Seria difícil encontrar uma metáfora mais adequada para mostrar o que é e como se comporta o Poder em Portugal.

12.5.06

O último rosto

Na semana passada, morreu a primeira mulher que apareceu num écrã de televisão. Ao que suponho, trabalharia com os cientistas pioneiros que construíram o primeiro protótipo.

Durante algum tempo, a televisão permaneceu um bicho de laboratório. Congeminavam-se sem dúvida possíveis aplicações militares. Em seguida, passou ao circo: era exibida em feiras populares onde as pessoas iam espreitar a preto e branco, numa caixa minúscula, as mesmas imagens disponíveis ao vivo e a cores a alguns passos de distância.

Depois, os aparelhos começaram a espalhar-se pelas cidades. Os transeuntes acotovelam-se para contemplar a caixa mágica na montra de alguma loja que a usava como técnica promocional para atrair clientes - não para comprar televisões, é claro, mas lâmpadas, ferros eléctricos ou telefonias.

Animaram-se os cafés com os clientes que os frequentavam, especialmente ao sábado à noite, para ver televisão. As associações recreativas cobravam bilhete pelo mesmo espectáculo.

Certas famílias mais à frente acolheram-na em suas casas. Quando deram fé, os seus quotidianos haviam sido reorganizados pelas exigências da programação. Nesse tempo, prestava-se atenção até aos interlúdios motivados por falhas técnicas. Se desse futebol, as pessoas viam; se desse missa, as pessoas viam; se desse Shakespeare, as pessoas viam também.

Um dia, a televisão pintou-se de cores, Depois, começou a chegar também por satélite. Cresceu o número de canais. Um aparelho já não era suficiente para toda a família. Penetraram nos quartos de dormir, nas cozinhas, nas casas de banho. Daí saltaram para os escritórios, as salas de espera dos consultórios, os aeroportos, as farmácias, as estações de serviço, os táxis, os estádios de futebol, os espaços de culto religioso. Há quem traga um pequeno aparelho no bolso para situações de emergência.

Paralelamente, cresce o número de câmaras e de circuitos privados. Os nossos movimentos são acompanhados nos bancos, nas estradas, nos aeroportos, nos estádios de futebol. Em breve ninguém dará um passo que não tenha sido registado. Os apanhados entraram no quotidiano: "sorria, está a ser filmado."

Os humanos não se reproduzem, as televisões sim. Virá o dia, não muito longínquo, em que haverá mais câmaras e receptores de televisão do que pessoas. Muitas câmaras ficarão sem pessoas para registar. Guiadas por sensores ópticos rodarão continuamente em busca de alguém que possam captar, mas em vão.

Certas classes de televisões mais desfavorecidas queixar-se-ão da intolerável desigualdade que condena um cada vez maior número delas a não captarem um único rosto humano durante anos a fio. Aumentará a ociosidade televisiva de longa duração.

As novas gerações de aparelhos crescerão nesse ambiente de exclusão e marginalidade em relação às pessoas, de tal modo que muitos jovens nunca terão visto uma em toda a sua vida. Alguns começarão a suspeitar de que a humanidade acabou. Seitas hereges proclamarão que os seres humanos não passam de uma fábula inventada para amedrontar câmaras e receptores crédulos e ignorantes.

Imagino, num futuro incerto, o telejornal da noite a abrir com esta notícia: "Faleceu ontem em sua casa, vítima de doença prolongada, o último aparelho de televisão que alegadamente teria acolhido nos seus raios catódicos um rosto humano."

Competitividade

Quem anda de Metro e compara a performance dos pedintes portugueses com a dos do Leste não duvida por um momento que temos um problema de competitividade.

Os nossos ceguinhos continuam a cantarolar uns fadunchos manhosos ou a manipular burocraticamente uns acordeões de teclas partidas.

Os cegos deles, em contrapartida, vêm perfeitamente. Estudaram em bons conservatórios, apresentam um repertório variado, cantam em várias línguas, apresentam-se em grupos instrumentais animados, usam amplificadores.

Aos portugueses, as pessoas dão uma esmola para se verem livres da chinfrineira. Aos estrangeiros, pagam para tocarem mais.

11.5.06

Confissão

Porque é que é bom ser-se europeista convicto e mau ser-se iberista convicto?

Faz sentido apoiar a globalização e contrariar a iberização?

É possível amar a humanidade e detestar os espanhóis?

Se ser-se iberista é pecado já sinto as chamas do Inferno a queimarem o teclado do computador. A minha perversidade é quase inimaginável: sou simultaneamente iberista, europeista e internacionalista.


Rembrandt: Auto-retrato.

Última hora

O Diário da República está de volta às bancas.

"As minhas projecções são mais honestas do que as tuas"

Certo, certíssimo. Projecções a 50 anos é algo que todos os governos responsáveis têm que fazer.

Não é desonesto fazer projecções e considerar cenários alternativos. Talvez não seja desonesto, mas é certamente sintoma de alguma ignorância, confundir-se exercícios de prospectiva com previsões com carácter científico, como José Manuel Fernandes frequentemente faz - e como volta a fazer no seu editorial de hoje.

(Nota: As recentes propostas da administração Bush para a reforma da segurança social norte-americana basearam-se em projecções a 75 anos! E esta, José Manuel Fernandes?)

10.5.06

Bolonha não

Bolonha não, diz o Eduardo.


Rembrandt: Auto-retrato.

Tretas

O Manual do Utilizador do último automóvel que comprei tem 580 páginas, mais do que a tradução da Ilíada do Frederico Lourenço. Alguém espera realmente que eu o leia? A verdade, porém, é que ter carta de condução já não é suficiente para um sujeito conduzir um carro. Estou preocupado com a eventualidade de um dia destes poder ficar trancado dentro dele e não conseguir sair.

Há dias, o João Paulo, condoído com a minha dificuldade em manipular os múltiplos comandos à distância espalhados pela sala, emprestou-me um comando universal para substituir todos os comandos especializados. Como se eu pudesse tirar férias para aprender a mexer nele...

Cá em casa, ninguém sabe usar todos os electrodomésticos. Aliás, ninguém sabe usar nenhum deles, de modo que aplicamos o princípio da desvantagem comparativa: cada um de nós opera aqueles em que é que relativamente menos incompetente.

A crescente complexidade dos equipamentos com que interagimos no dia a dia associada à mania da especialização transformou-nos numa sociedade de incompetentes. O mesmo se passa em tudo o resto, e designadamente no mundo das ideias, onde a complexidade dos conceitos também foi acompanhada de um ensino cada vez mais focalizado em áreas cada vez mais exíguas. Vai daí, como ninguém sabe verdadeiramente do que fala, qualquer pessoa pode dizer o que lhe vier à cabeça sobre qualquer assunto sem correr grande risco de ser apanhado em falso.

É por isso que triunfa a conversa da treta. Como combatê-la? Primeiro, esforçando-nos por não falarmos daquilo que ignoramos ou em que não meditámos, o que nem sempre é fácil, porque a pressão para asnear é muito forte. Segundo, treinando o nosso sentido crítico e aprendendo a questionar as afirmações alheias, particularmente aquelas que assumem um tom mais peremptório.

"On Bullshit", de Harry G. Frankfurt, ocupa 90% do espaço a fabricar uma definição de treta por meio de uma análise quase exclusivamente linguística, para só no final dedicar alguns parágrafos - mais precisamente, três - a discutir as suas causas e o que poderá ser feito para evitar as suas principais consequências. Ora, segundo ele, a treta tem três causas principais: a) a convicção generalizada de que os cidadãos de uma democracia devem ter opiniões sobre a condução da política do seu país; b) o cepticismo que nega o acesso à realidade objectiva; e c) o culto da sinceridade. Ora este moralismo barato, se me permitem, não passa de uma grande treta.

Uma investigação empírica sobre a treta procuraria, antes de mais, identificar as formas mais recorrentes de treta, classificá-las, entender os contextos e as causas imediatas que lhes dão origem e compreender que propósitos servem.Talvez assim pudéssemos chegar a conclusões mais relevantes.

9.5.06

La reporter es saloia

Manifestação em Madrid contra o novo arranjo do passeio de Recoletos.

Em vez de procurar saber as razões dos presentes, a repórter da RTP põe-lhes o microfone à frente e dispara: "Lo arquitecto es portugués, sabe?", na ansiosa expectativa de suscitar alguma diatribe anti-lusa.

Estas coisas deprimem-me.

8.5.06

Qualquer disparate que vocês possam imaginar já foi previsto

Perante augúrios cada vez mais negros e disparatados, de que é exemplo aquele que hoje forneceu o título de primeira página ao Diário de Notícias, é obrigação moral de um economista explicar que não existe nenhuma forma científica de fazer previsões.

A bem dizer, os economistas não fazem previsões, mas sim projecções. Quer isso dizer que, admitindo como invariantes certos parâmetros, projectam para o futuro outras variáveis. Isto não é prever, mas balizar o que pode vir a acontecer a certos níveis se num plano mais profundo nada se alterar.

Em matéria de taxas de crescimento, o que acontece é que, quando ele é mais baixo num certo ano do que a média recente, presume-se que se tratou de uma anomalia e "prevê-se" no ano seguinte uma taxa de crescimento mais próxima do normal. Se for mais alto do que a média recente, faz-se o raciocínio inverso.

As previsões económicas das instituições mais reputadas falham sistematicamente, mas não de uma forma sistemática, o que seria o menor dos males. E nem sequer se prova que alguma acerte mais do que as outras. Tudo isto está muito bem documentado.

Há trinta anos, uma previsão suficientemente séria para ter sido mencionada no Economics de Samuelson asseverava que a URSS ultrapassaria os EUA até 2005. Anos depois, em pleno milagre japonês, prognosticou-se que afinal seria o Japão a deixar para trás os EUA antes do virar do século. Viu-se.

Tudo isto não valeria mais do que uma gargalhada à custa de quem assim nos ilude, não se desse o caso de as previsões publicadas poderem ter consequências desastrosas se as pessoas acreditarem nelas. Por exemplo, se os investidores estrangeiros acreditarem nos presságios publicados na nossa imprensa, é evidente que as mais sombrias perspectivas acabarão por confirmar-se.

A Espanha exibe actualmente um colossal défice da balança de transacções correntes, apenas ligeiramente inferior ao nosso em percentagem do produto. Felizmente para eles, o investimento estrangeiro tem tapado o buraco. Mas o que é que vocês imaginam que aconteceria se os jornais espanhóis se pusessem a berrar que o seu país está condenado a crescer claramente menos nos próximos anos do que o fez num passado recente?

(Corrigi um lapso da primeira versão deste post. Onde se dizia que a Espanha tem um défice da balança de transacções correntes ligeiramente "superior" ao nosso, diz-se agora que ele é ligeiramente inferior, que é o que está certo.)

Um lugar comum nunca vem só

Quatro bloggers muito cá de casa, incluindo dois que ainda recentemente se haviam baldado, juntaram-se para fazer o Lugar Comum. Ou muito me engano, ou será tudo menos isso.

4.5.06

Diálogo

- Vá, toca a escrever um post!

- Preferia não ter que o fazer..

3.5.06



Rembrandt: Auto-retrato.