31.12.03

Mas este gajo não tem mesmo cara de pedófilo?



Tirando a da Al-Qaedah, eu não acredito em conspirações.

A malta e os utentes

Quando, há cerca de dois anos, viajei de comboio de Nova Iorque para Washington, notei que a voz que, através dos altifalantes do comboio, se dirigia aos passageiros, tratava-nos por folks (malta). Isto de uma forma natural, sem nenhuma espécie de má-educação, antes com um toque carinhoso notório em tudo o que nos dizia.

Por conseguinte, nos EUA não somos nem consumidores nem utentes: somos folks. Vejo aqui a marca de uma cultura genuinamente democrática, assente numa igualdade fundamental entre todos os cidadãos.

Tanto quanto sei, este problema, que mereceu um comentário do Abrupto e uma resposta de Vital Moreira não está bem resolvido em país nenhum da Europa.

É um facto que os utilizadores de serviços públicos não o são na qualidade de consumidores, mas na de cidadãos. Mas, como não nos sentimos confortáveis a chamar-lhes cidadãos ou camaradas, inventávamos essa coisa artificial do utente. (Digo artificial porque ninguém se considera a si próprio um utente.)

É nestas pequenas coisas que podem ser observadas profundas diferenças entre a Europa e a América. E, neste particular, a vantagem está toda do lado da América.

30.12.03

Eu sei que é para o nosso bem...



Eu sei que é para o nosso bem, mas, ainda assim, desejo a todos um Ano Novo de 2004 sem mais cortes.

29.12.03

O capital não tem pátria, excepto quando é estrangeiro

A venda da maioria do capital da Somague à espanhola Sacyr não configura nenhuma situação de conquista ou expoliação. Pura e simplesmente, a família Vaz Guedes troca capital corpóreo por capital incorpóreo; como em qualquer outra transacção, ambas as partes ficam a ganhar, porque cedem uma coisa a troco de outra que consideram mais valiosa.

Além disso, tanto os trabalhadores da Somague como os restantes cidadãos portugueses só têm a lucrar se, como é de esperar, se criarem condições para a empresa se tornar mais eficiente. Por consequência, de um ponto de vista estritamente económico, não há nada a lamentar.

Acontece que esta análise, em linha com a teoria económica dominante, esquece a questão o poder. Descontando o problema da eficiência, será a mesma coisa ter patrões portugueses ou estrangeiros? Obviamente, não é -- digo-o pela minha experiência pessoal do modo como funcionam as multinacionais.

A única razão pela qual tantas empresas americanas têm a sua sede europeia em Londres é a facilidade de entendimento com os indígenas, e não qualquer consideração de eficiência ou produtividade. Vai daí, as empresas multinacionais compreeendem muito melhor os problemas com que convivem directamente do que aqueles com que se defronta um longínquo gestor em Lisbon, Spain.

Acontece, porém, que a preservação a todo o custo dos centros de decisão nacionais não é uma solução, a menos que se esteja disposto a premiar a incompetência fomentando o proteccionismo.

Que fazer? A Volvo pertence hoje ao grupo Ford mas, apesar disso, ninguém sonha tirar a empresa da Suécia e mudá-la para os EUA. Porquê? Porque os engenheiros e os técnicos suecos detêm certas competências que não são facilmente replicáveis noutras latitudes.

O que demonstra que o essencial não é proteger centros de decisão mas estimular a emergência de centros de competência.

Tolkien meets George Bush



Aparentemente, o Senhor dos Anéis trata da luta entre o Bem e o Mal.

O conteúdo deste Bem e deste Mal é, todavia, mais estético do que ético. Além disso, não se está de um lado ou do outro por escolha, mas porque se nasceu lá. Certas pessoas nascem elvos, outras nascem orcs -- e é tudo.

Os orcs e os trolls não são maus por fazerem coisas más -- eles limitam-se a matar inimigos, tal e qual como os bons -- mas por serem feios e mostruosos, ou seja: diferentes.

A única acusação séria que podemos fazer contra estes maus é carecerem de individualidade, mas também nunca temos ocasião de saber como se relacionam com as suas mulheres, os seus filhos e os seus amigos -- será que os têm? Mas, vendo bem as coisas, isso também não interessa porque eles são apenas inimigos que devem ser abatidos sem piedade.

Pelo contrário, os bons são ecologistas e diferentes. Tão diferentes, aliás, que as diferentes castas não se misturam umas com as outras, e só algumas são predestinadas para mandar.

Diz-se que Tolkien era um católico tradicionalista. Percebo onde está o tradicionalismo, porque os temas que lhe são caros repetem o conhecido cânone anti-moderno que pode ser encontrado em Wagner, Spengler, Heidegger, Evola e outros proto-fascistas do género.

Mas o catolicismo, esse, escapa-me completamente. O que eu vejo aqui é um neo-paganismo de pacotilha, na sua essência oposto a todos os princípios essenciais do cristinianismo, que, para meu espanto, os católicos não cuidam de combater.

Tolkien busca inspiração e legitimação numa ordem natural-feudal distinta da linhagem humanista greco-romana e oposta à tradição iluminista fundadora do mundo moderno. À beira deste primarismo ideológico, o paganismo New Age da Guerra das Estrelas parece mais profundo e aceitável.

Mas este filme reflecte bem a ideologia dominante da nossa época e permite-nos entender melhor o pensamento político de George Bush e dos neo-conservadores de todo o mundo. É o perfeito filme de época para o pós 11 de Setembro.

Wunderkammer



The cabinet of curiosities, or Wunderkammer, was designed to facilitate an encyclopaedic enterprise, the aim of which was the collection and preservation of the whole of knowledge. The earliest encyclopaedic practices were set within a classical framework whereby new observations and practical experiments were seen as the continuation of work initiated by the great ancient thinkers, such as Aristotle and Pliny the Elder.

26.12.03

Nunca como neste ano houve tanta gente a desejar-me um «Santo Natal». Recrudescimento do sentimento religioso? Nalguns casos, talvez. Na maioria, não estou a imaginar.

Talvez queiram apenas dizer que, já que este Natal, pelas circunstâncias bem conhecidas, não pode ser feliz, ao menos que seja santo. E assim regressa e se insinua o estereotipo segundo o qual a santidade casa bem com a pobreza.

Cidades desertas, blogues desertos. Estranhos dias estes, com as pessoas ou as famílias dobradas sobre si mesmas.

23.12.03

Francis Bacon



Lembro-me como se fosse hoje. A primeira vez que vi uma pintura de Francis Bacon foi -- sim, é verdade! -- no Paris Match, há coisa de 40 anos, e ía no comboio Lisboa-Porto.

Retrospectiva



A reedição que o Público está a fazer das aventuras do Tintim fez-me compreender que a minha geração não é filha de Marx e da Coca-Cola (ambos proibidos em Portugal até ao 25 de Abril) mas do Cavaleiro Andante e da laranjada do Buçaco.

Roy Lichtenstein



Lichtenstein começou por propor-nos que olhássemos a arte comercial dos cartoons como se fosse pintura abstracta.

Em seguida, invertendo o processo, sugeriu-nos que observássemos a pintura abstracta através das lentes da arte comercial.

Suprematismo



Como pode alguém ter acreditado que «isto» era compatível com o comunismo soviético.

Mas Malevitch acreditou, e a esse equívoco devemos nós esta visão singular que desde a Perestrioka começou a reemergir das caves de coleccionadores particulares que arriscaram as suas vidas para a preservar.

22.12.03

A Era dos Autores

Pasmado com a velocidade a que eram editados novos livros no século XVII, Samuel Johnson considerou que a humanidade tinha entrado na Era dos Autores.

Que diria ele desta loucura dos blogues? Provavelmente insistiria em que esta proliferação de centros de proliferação de textos nos impõe a todos uma ética da concisão.

O respeito pelos outros e por nós mesmos impõe-nos que digamos depressa e bem o que temos para dizer.

Há mais gente na bicha.

A paragem

Em 1903, o homem conseguiu pela primeira vez fazer voar uma máquina mais pesada do que o ar. Se a primazia pertenceu a Santos Dumont ou aos irmãos Wright é coisa de somenos.

Em 1969, Neil Armstrong pisou o solo da lua.

Desde o momento em que o homem conseguiu erguer-se uns metros acima do solo e o instante em que pisou o solo de outro planeta decorreram apenas 66 anos.

E que aconteceu desde então? O que é que parou? O que é que foi aqui interrompido e porquê?

Em defesa do egotismo

Não posso gastar demasiado tempo com as ideias dos outros se quiser dedicar suficiente atenção às minhas.

Preocupação

O nosso ensino, ainda e sempre autoritário e de raiz livresca, consegue quando muito produzir gente obediente, executantes competentes das ideias alheias, jamais notáveis criadores ou conceptores.

Curiosamente, vejo pouca gente preocupada com isto e muita obcecada com o reforço da autoridade na sala de aula.

Por outro lado...

Por outro lado, não preciso de ler aquilo que consigo perfeitamente imaginar.

Mea culpa

Reconhecço que é muito fácil criticar-se as ideias de alguém quando se desconhece o que efectivamente disse ou escreveu.

Observação

Comecei a reparar que as pessoas que passam o tempo a exigir coisas mais práticas são usualmente destituídas de sentido prático.

Eu concordo com Boltzmann: «Não há nada mais prático do que uma boa teoria».

Sublinho: uma boa teoria.

Derrotado por KO

Em que estado terá ficado o Marcello depois de ler o Economist deste fim de semana?

Sim, como reagirá ele, o tal que lê um livro por dia, ao saber que há nos EUA uma autora de livros infantis que escreve um livro num dia?

Ponham-se a pau

O sempre imprevisível Cintra Torres sustenta hoje no Público que a exibição de Saddam na tv não violou a convenção de Genebra porque, tendo a guerra acabado (says who?), ele não pode verdadeiramente ser considerado um prisioneiro de guerra.

Admitindo que seja verdade, achará ele que os direitos humanos não se aplicam aos prisioneiros de direito comum? Pelos vistos, acha. Não vale a pena um homem ler tantos livros, para depois aderir tão inesperadamente à ética tablóide.

Apesar de tudo, eu concordo com a conclusão do autor: «As imagens não estão lá, mas sim nos nossos olhos». E não me agrada o que os meus olhos vêem.

Albergue dos doentinhos

Demónios acamados por obra e graça de um mísero vírus? Valha-nos Deus, que o Diabo também já não é o que era!

18.12.03

Os nossos e os outros

É fácil defender os direitos do homem quando são os dos nossos que são atacados.

O caso muda completamente de figura quando estão em causa os dos outros. Por aqui se vê a pinta destes «democratas».

O essencial sobre isto foi escrito aqui.

Ser ou não ser não é a questão

A estupidez de George Bush pode não ser uma questão política essencial. Também há muita gente estúpida à esquerda, como por exemplo aquele tipo de cujo nome agora de momento não me consigo lembrar...

Mas o facto de gente inteligente e bem informada se esforçar a todo o custo por negar o óbvio, isso sim, não pode deixar de ter um significado que não podemos ignorar.

A saber, o de que a cegueira ideológica se apoderou de uma parte da direita conservadora mundial no decurso dos últimos anos, tornando-a disponível para transigir com gente tão pouco recomendável como Donald Rumsfeld, Silvio Berlusconi ou Paulo Portas.

E isto, meus amigos, é uma novidade.

17.12.03

A guerra contra a concorrência segundo Bush

Escreve Alan Murray no Wall Street Journal:

"Saddam's capture provides Mr. Bush an opportunity to try again. At his news conference Monday, the president sounded more subdued but continued to insist that rebuilding contracts shouldn't go to French or German contractors. 'The idea of spending taxpayers' money on contracts to firms that didn't participate in the initial thrust -- that's not something I'm going to do,' he said.... "

Empresas que não participaram no ataque inicial? Esta é nova! provavelmente isto quer dizer que a Halliburton do Vice-Presidente Dick Cheyney participou no ataque inicial.

(Devo esta referência ao site de Brad de Long -- link aqui ao lado)

O clube dos autores mortos

As minhas inclinações literárias são todas para os clássicos. Se há tanta coisa magnífica escrita há séculos de que ainda não disfrutei, porque é que hei-de perder tempo a ler aquela obra incontornável editada hoje de que ninguém vai lembrar-se amanhã?

Apesar de tudo, para não perder totalmente o contacto com os outros peixinhos do meu aquário temporal, de vez em quando atiro-me a um autor contemporâneo.

Lamento informar, porém, que o resultado, mesmo quando agradável para mim, revela-se desastroso para o próprio, visto que pouco depois morre.

O primeiro caso ocorreu com o Bruce Chatwin, que só sobreviveu uns meses à minha leitura fatal. Seguiu-se o Robert Carver, acompanhado de perto pelo Italo Calvino e, depois, pelo Primo Levi. No ano passado comecei a ler o prodigoso W. G. Sebald; este ano, ei-lo que morre num acidente de automóvel.

Que estranha maldição será esta? Serei eu uma espécie de Rei Midas ao contrário que transforma em cadáver tudo aquilo em que toca?

Estava eu a contar isto ao Miguel, quando ele alvitrou: «Ó pá, porque é que tu não começas a ler o Saramago?»

Acudiu o Luis: «E não queres experimentar também o Lobo Antunes?»

Alguém aí na plateia tem mais alguma encomenda a fazer?

Mas atenção: não julguem que vou trabalhar à borla. Acho que acabo de descobrir uma forma de me tornar num assassino a soldo sem correr o risco de ser descoberto!

16.12.03

Ainda dizem que não há progresso...

A reboque do Bispo do Porto, e talvez espantado pela tranquilidade das reacções públicas às afirmações por ele proferidas, o PSD lá abriu finalmente a portinha para a despenalização do aborto.

(Ou será descriminalização? Abre-se aqui mais uma daquelas estéreis discussões que excitam os juristas e adormecem os restantes cidadãos).

E era preciso que tanta gente tivesse continuado a sofrer durante mais uma dúzia de anos para, finalmente, se resignarem a abolir contrafeitos e arrastando os pés mais esta selvajaria que exprime melhor do que qualquer coisa a nossa triste identidade nacional?

A pouco e pouco, lá vamos progredindo.

15.12.03

As três mortes de Saddam Hussein

Politicamente, o Saddam já estava morto antes de ser ontem preso nas circunstâncias humilhantes que todos pudémos ver pelas tropas norte-americanas. Pois não vêem que o homem foi abandonado pelos compinchas?

Desde que o regime encabeçado por ele caiu, outros facínoras tomaram o controlo e comandam hoje a chamada «resistência iraquiana». Acredito que isso vai tornar-se cada vez mais claro nas próximas semanas.

É natural que as pessoas fiquem contentes com a prisão de Saddam Hussein porque as suas atenções continuam concentradas na guerra anterior, não na actual. A mim parece-me que o natural regozijo pela captura não deve fazer-nos esquecer que, no essencial, tudo continua rigorosamente na mesma.

Eu pensava que era só a esquerda que permanecia fixada nas condições políticas anteriores à invasão, mas constato agora que o mesmo se passa com a direita, sinal de que ainda ninguém parece ter-se apercebido do abismo que se abriu naquela zona do globo.

Em particular, não há ainda uma consciência clara de que o Iraque se tornou de facto, por obra da intervenção norte-americana, num verdadeiro santuário do terrorismo.

Saddam Hussein já morreu duas vezes este ano. E ainda vai morrer uma terceira, se Deus quiser-mas isso é politicamente quase irrelevante.

12.12.03

Sim, Turing

Sim, Porfírio. Concordo com essa maneira de pôr a questão.

Encalhado no tempo


Manuscrito de Proust

Genet dizia que o local mais indicado para ler Proust é a prisão ou o hospital.

Como não fui constituido arguido em nenhum processo judicial nem consegui aquela baixa psiquiátrica a que indiscutivelmente tinha direito, tive mesmo que rebaixar-me a conviver com a Recherche apenas nos meus tempos livres.

Não sou, por conseguinte, um leitor sério, apenas um pobre amador que se esforça por ocultar a sua incompetência essencial para desempenhar a contento esta tarefa.

Nessas condições, arrastei-me penosamente durante os últimos quatro anos ao longo das quase cinco mil páginas do enorme tijolo de papel. Sim, porque ler Proust é, antes de mais, uma proeza atlética que põe à prova a nossa capacidade de resistência intelectual, mas também física e anímica. De vez em quando contraem-se lesões de esforço que nos impedem de prosseguir a caminhada por uns tempos.

Andando, andando, há um mês atrás notei que finalmente me encontrava apenas a 25 páginas de concluir o livro.

Foi então que sucedeu uma coisa estranhíssima: seja por isto ou por aquilo, nunca mais consegui avançar uma página.

Mergulhei na biografia do Proust escrita pelo Edmund White (uma maravilha de concisão e precisão), reli o How Proust Can Change Your Life do Alain de Botton, voltei a passar os olhos pela Pomba Ensanguentada do Pietro Citati... mas quanto voltar a pegar na Recherche, isso é que nada.

O que se passa? Alguém é capaz de me explicar?

11.12.03

Juventude desenganada

Na sua resposta ao meu post («Não está certo abusar da ingenuidade da juventude») Semiramis prova que, além de conhecimentos, também tem bom senso.

Surpreendemente, ou talvez não, concordo com quase tudo o que ela diz.

Também eu conclui há muito tempo que a Organização Industrial é uma das poucas áreas da teoria económica em que se faz verdadeira investigação científica. O problema é que, quanto mais se estuda essa sub-disciplina, mais se conclui que o grosso da Microeconomia é um engano.

As simplificações da Microeconomia não são um primeiro passo no caminho da verdade; são uma auto-estrada sem portagem para o erro. Vai daí, a obsessão de fundar a Macro na Microeconomia assegura que a primeira assenta nas estacas podres da segunda.

(Diga-se de passagem que, se a física admitisse essas absurdas exigências metodológicas, não conseguiria viver com as contradições entre a mecânica quântica e a mecânica clássica.)

O problema é que, se Semiramis admitir isto, não pode continuar a recorrer à teoria económica para pronunciar sentenças definitivas sobre toda a espécie de problemas da nossa organização social. O equilíbrio económico geral é uma ficção. A eficiência dos mercados é, em geral, uma miragem. O comportamento dos consumidores é certamente racional, mas não no sentido usualmente atribuido ao termo. A livre concorrência nem sempre conduz a bons resultados.

Admitir isto não obriga a concluir o contrário, ou seja, que o mercado é condenável, que o progresso se obtém condicionando a concorrência, que o controlo da actividade económica deve ser entregue ao Estado, etc., etc. Mas força-nos certamente a analisar cada situação concreta com muito mais cuidado.

Não duvido que haja muita coisa útil na teoria económica. Mas acredito que o seu mainstream é uma simples doutrina ideológica e politicamente motivada que não merece muita confiança.

9.12.03

Mystic River



Em Mystic River, um acontecimento inesperado e cruel despoleta uma sequência imparável de eventos que arrasta os seus protagonistas como a torrente de um rio caudaloso.

Naquele dia, todos os três amigos entraram naquele carro. E, com eles, não o esqueçamos, nós também. Parte da magia de Mystic River consiste em fazer-nos sentir desde o primeiro momento que não há salvação para aqueles rapazes porque algo de profundo morreu ali.

Neste filme tudo é inevitável como uma tragédia grega, como uma vida ou como uma história bem contada. O final está inteiramente contido no princípio, como se de uma demonstração lógica se tratasse. A assinatura dos três amigos no cimento permanece lá gravada para que nenhum possa alguma vez esquecer como tudo começou.

Jimmy, Sean a Dave fazem todos o seu melhor, cada um à sua maneira, mas isso de nada serve. Não há como inverter a marcha dos acontecimentos. Jimmy quer ser um bom pai, mas a filha estava a preparar a fuga quando foi morta. Dave quer proteger as vítimas, mas só consegue criar outras. Sean quer amar, mas só provoca sofrimento.

Clint Eastwood criou um filme perfeito: pela unidade e eloquência do enredo, pelo poderoso sentimento de verdade que dele se desprende, pela riqueza dos personagens (mulheres incluidas, especialmente Celeste), pelo modo como cada um deles ocupa alternadamente o centro da acção, pelos pequenos detalhes decisivos que dão espessura ao filme, pelo desempenho de todos os actores principais e secundários, pela forma discreta mas eficaz como a metáfora do rio é utilizada.

O princípio da história mostra-nos como o mal destrói a inocência. Como esta tese é demasiado banal, ficamos a saber no fim que a inocência também pode ser a inesperada causa do mal.

Surpreendemente, e bem vistas as coisas, o final é feliz, na medida em que a felicidade é possível para os sobreviventes, todos eles a um tempo crentes e descrentes num novo começo.

Este não é um filme desesperado, apenas humano. Às vezes, como recorda Jimmy a dado momento, um pequeno acontecimento pode mudar a história. Ou não.

Como criar confiança

Que haveremos nós então de fazer para promover a confiança entre os portugueses? Confrontados com uma sondagem recente que nos coloca entre os cidadãos mais desconfiados da Europa, a nossa tendência, como povo pouco prático, é colocar o problema no plano da moral colectiva.

O sermão, como se sabe, é o nosso grande instrumento de reforma social. Onde os outros fazem planos, nós fazemos sermões. Mas não me parece que se vá longe por aí.

Por muito estranho que pareça, este problema da criação de confiança já está suficientemente bem estudado para que se saiba como abordá-lo racionalmente.

O Dilema do Prisioneiro mostra que, em muitas situações, nós temos interesse em adoptar comportamentos anti-sociais. Todavia, quando é jogado repetidamente, os jogadores podem ser prejudicados se sistematicamente tentarem enganar os seus parceiros. É que, a longo prazo, a criação de uma reputação (positiva ou negativa) determina o modo como os outros nos tratam.

Simplificando muito, a reputação, na qual assenta a confiança, emerge mais facilmente quando as interacções entre os indivíduos são intensas e repetidas. Quando o contexto social favorece a informalidade e os encontros ocasionais e esporádicos é mais difícil criar confiança. Quando as pessoas colaboram estreitamente em comunidades onde toda a gente se conhece, o caso muda de figura.

A estratégia geral deduz-se daqui. Alguém quer começar a fazer o plano?


5.12.03

Não está certo abusar da ingenuidade da juventude

Milton Friedman

Semiramis é um blogue que se debruça com invulgar seriedade sobre os temas que aborda, situados principalmente, mas não só, na área económica. O cuidado que põe na argumentação não pode deixar de seduzir um racionalista em part-time como eu.

Surpreende-me, porém, a credulidade da autora em relação à ciência que abraçou. Embora eu partilhe com ela a mesma formação de base, habituei-me a desconfiar de uma parte substancial da teoria económica pela simples razão de que está tão longe de qualquer método reconhecidamente científico como a escolástica medieval.

Pegue-se, por exemplo, na Macroeconomia do Barro ou na Microeconomia Intermédia do Varian, e é impossível a alguém não totalmente toldado pelos preconceitos da profissão deixar de ficar perplexo. A matéria encontra-se organizada de uma forma rigorosamente lógica, com as diversas teorias a serem deduzidas de um conjunto de axiomas de base, um método certamente recomendável para a geometria, mas não para uma ciência que se quer experimental.

Uma boa parte desses axiomas são reconhecida e demonstradamente falsos, como resulta das investigações de economistas laureados como Simon, Arrow e outros. Mas esses factos são ocultados aos jovens estudantes, e toca a andar. Mais tarde, quando também eles tiverem cumprido todos os ritos de iniciação e lhes for muito difícil voltar atrás, serão confrontados, tarde demais, com a terrível verdade.

Estes e outros manuais raramente se incomodam a falar da realidade (mesmo sob a forma de factos estilizados, que é o nome que os economistas dão às teorias observacionais). Algumas historietas, às vezes meras anedotas, bastam para criar a ilusão de que a teoria lida adequadamente com os factos económicos conhecidos.

Em geral, nada ou quase nada se diz como é que as teorias expostas se sairam quando testadas contra os factos, pela simples razão de que muitas delas têm uma sustentação empírica nula ou altamente duvidosa.

Resumidamente, a ciência económica (e particularmente o seu ensino) tem vindo a evoluir por caminhos muito duvidosos. Basta comparar a riqueza da análise de economistas como Keynez com a pobreza franciscana das argumentações que hoje nos são servidas para se perceber o que eu quero dizer.

O chapéu de três bicos



Ver a música de Falla tocada ao vivo na Gulbenkian ajudou-me a perceber como ele revolucionou a utilização da orquestra sinfónica. Um caso em que os sentidos da vista e do ouvido se combinaram para produzir um resultado superior.

4.12.03

Dilema

Parece que agora só são aceitáveis as ideias compatíveis com aquilo que os economistas consideram bom para o aumento da competitividade do país.

Então eu pergunto: deveria o país mudar de religião (de preferência consagrando-a na Constituição) se se provasse ser verdadeira a tese de Max Weber sobre as vantagens do protestantismo em relação ao catolicismo nesse particular?

O anti-americanismo existe

Foi Heidegger quem escreveu que, «do ponto de vista metafísico, nazismo, comunismo e americanismo são equivalentes».

O surpreendente é que, por via do radicalismo francês dos anos 60, as opiniões do nazi Heidegger tenham sido tão bem acolhidas por uma parte da esquerda.

Sendo os EUA a sociedade mais genuinamente demótica à face da terra, o anti-americanismo enquanto posição de princípio só faz sentido numa perspectiva de direita.

Puro engano

Quando comecei este blogue, o meu maior temor era que me faltasse o assunto.

Nada disso: neste momento, tenho 87 ideias para posts à espera de oportunidade para serem utilizadas.

Aleluia




Depois de um ano cinematograficamente fraquinho, eis que aparece um filme perfeito: Mystic River.

Voltarei a ele.

Pobre outra vez

Há dias encontrei, nas minhas deambulações pela net, um curioso site americano chamado BlogShare que mantém uma espécie de sistema de cotações de acções (fictícicias, claro está) de blogues.

Mais surpreendente ainda, descobri que alguns maduros se distraiam a simular compras e vendas do Blogoexisto, cuja capitalização bolsista ascendia nessa data ao fantástic valor de 330 dólares.

Estava eu já a pensar lançar uma OPV que haveria de assegurar a minha reforma antecipada quando eis que, inesperadamente, o BlogShare anunciou o seu encerramento.

Adeus, ó sonhos de fortuna! Ainda não é desta que me livro da escravidão assalariada!

29.11.03

Sonia Delaunay


Abaixo de cão

A Drª Margarida Marante entrevista o Dr. Luis Filipe Menezes na TSF. É difícil imaginar uma cena mais degradante.

Ela, mal preparada como sempre, opinativa como sempte, peremptória como sempre, ignorante como sempre, ocupa o tempo inteiro com perguntas (?) que rodam sempre à volta das ambições pessoais do entrevistado. Aqui só há lugar para a baixa política, ou seja, para a intriga mesquinha envolvendo personagens inenarráveis que nós preferiríamos nunca ter conhecido.

Ele, medíocre, manhoso, calhandreiro, mal intencionado, é para mim um dos grandes mistérios do nosso país. Este tipo, que não desempenha nem nunca desempenhou qualquer cargo político de relevo, que manifestamente não tem nada de relevante para dizer, no fundo um mero autarca de Gaia que conduz uma campanha infame e sem princípios contra o seu colega de partido Rui Rio, é constantemente requisitado pela televisão, pela rádio e pelos jornais para nos regalar com as suas opiniões.

Ao entrevistado e à entrevistadora une-os a paixão da mediocridade, que, com o seu sentido gregário altamente desenvolvido, facilmente toma conta do país e das nossas vidas.

Rothko

Cá da tribo

Eu sempre simpatizei com os Masai. Agora percebo melhor porquê.

28.11.03

Um link dos diabos

Decididamente, o Albergue dos Danados é um dos meus blogues preferidos. Aí está ao lado o link para selar essa predilecção.

O homem do leme é uma mulher e não está lá

Como o déficite efectivo do Orçamento do Estado português ronda os 5% (maior, portanto, que os déficites da França ou da Alemanha), a verdade é que ele é expansionista, não contraccionista.

Que sentido faz então criticar o Governo simultaneamente por centrar todos os esforços no controlo do déficite e por não controlar o déficite? O que quer afinal a oposição: que o Governo controle o déficite ou que o Governo não controle o déficite?

A questão está mal posta. O problema é que o Governo criou expectativas recessionistas, mesmo se depois a execução orçamental não as confirmou. Ora o problema é que os agentes económicos adaptaram os seus comportamentos a esses estímulos, o que os levou, designadamente, a investir menos. Logo, faz todo o sentido dizer-se que as expectativas negativas criadas pelo Governo conduziram a uma recessão mais profunda do que seria objectivamente necessário.

Agora, porém, a situação está invertida. Todos sabemos que o que o Governo diz não é para aplicar. Todos sabemos também que a França e a Alemanha, as duas economias decisivas no espaço europeu, têm as mãos livres para fazerem o que quiserem. Boas notícias, portanto: o fim da recessão está a vista.

Subsiste, porém, um problema crucial, que é o da composição da despesa pública em Portugal. Apesar de todas as declarações grandiloquentes, este Governo aumentou a despesa corrente em detrimento do investimento. Ou seja, fez exactamente o contrário do que seria aconselhável.

Ainda o orçamento acabou de ser aprovado, e já está claro para todos que se trata de um documento absolutamente destituido de visão estratégica e bom senso.

O euro e eu

Sempre fui de opinião que o euro era uma má ideia. Vamos lá: não uma ideia muito má, apenas um bocadinho má.

Mas é claro que tinha todas as condições para ir para à frente sem grandes oposições. A esquerda, em grande parte internacionalista, simpatiza com uma moeda capaz de unir todos os povos, e por isso não poderia deixar de a aprovar. Á direita, pelo seu lado, agrada retirar a política monetária do controlo de políticos eleitos, e vai daí também apoiou.

Além disso, a criação do euro casa muito bem com o projecto de construir a Europa a partir do tecto e, tanto quanto possível, fora do controlo de poderes democraticamente eleitos. É o emblema perfeito da europeização a marchas forçadas, vulgo Grande Salto em Frente.

Ora o euro estampou-se ao virar da primeira esquina, por não se ter tido em conta que a integração das economias europeias ainda não se encontrava suficientemente avançada para que os seus ciclos se encontrassem coordenados. Em Portugal, a taxa de juro deveria ser um bocadinho mais alta para ajudar a controlar o endividamento, ao passo que na Alemanha deveria ser algo mais baixa para estimular a procura. Em vez disso, temos este fato para marrecos que faz todos ficarem mal no retrato.

É claro que, a partir do momento em que há uma moeda comum, é preciso geri-la. Como não há instituições centrais que controlem as políticas económicas dos países, impoem-se então regras arbitrárias que depois não funcionam. Entretanto, a política interna é desvalorizada na medida em que os governos nacionais podem legitimamente desresponsabilizar-se argumentando que se encontram condicionados por regras impostas por Bruxelas. A democracia esvazia-se de conteúdo e os cidadãos convencem-se de que o seu voto afinal não serve para nada.

Um lindo serviço, não haja dúvida.

Agora, dizem-nos os sábios que o euro é uma realidade irreversível e que, por isso, é necessário avançar-se para um novo Pacto de Estabilidade, ou seja, é preciso repetir-se o mesmo erro outra vez. O problema é que a credibilidade do euro não depende da letra do pacto mas da convicção de que existe vontade de cumpri-lo, seja ele qual for.

Ora a verdade é que ficou claro que um pacto deste género só será cumprido se for conveniente para os poderes fácticos que dominam a União Europeia. Por outras palavras, o arranjo institucional que foi criado para o euro não merece confiança.

O que eu prevejo, por conseguinte, é que o destempero vai ascender a um novo patamar de irracionalidade.

Entretanto, o verdadeiro problema que se coloca, pelo menos para os europeistas como eu, é este: como criar instituições democráticas centrais europeias com legitimidade para conduzir políticas económicas e sociais progressivas? O mais preocupante para mim é que não só a chamada Constituição Europeia não aponta neste sentido, como reforça mesmo a tendência oposta.

Digam-me lá com franqueza: o que é que há de democrático neste super-estado europeu que se está a formar sob os nossos olhos?

27.11.03

Viagens na minha terra

Nos últimos dias tenho descoberto tantos blogues interessantes que o tempo nem tem sobrado para escrever. É o caso deste, e deste, e deste, e deste, e deste, e mais deste.

Que querem? Antes ser um leitor competente do que um autor banal.

26.11.03

Necrologia

Uma nova forma de fazer poesia. Aqui.

23.11.03

Desintoxicação

Já consigo passar todo o fim-de-semana sem sequer olhar para a primeira página do Expresso. Vá lá, façam um esforço e vão ver que também vocês são capazes.

19.11.03

O acaso e a necessidade

Porque é que Bach nunca compôs uma ópera?-Porque os seus patrões nunca lhe encomendaram uma.

É um bocado chato aceitar-se que a história da arte esteja dependente de contingências deste tipo. Mas podemos encontrar algum consolo no modo como João Sebastião conseguiu superar as adversidades.

Como não podia fazer óperas, Bach compôs oratórios. Quando lhe faltava uma orquestra, escrevia (é verdade!) um concerto para cravo solista. Se o cliente sofria de insónias, propunha-lhe umas infindáveis variações (a Ofrenda Musical) que duravam até ele cair exausto para o lado. Se a moda era a música italiana, ele fazia uns pastiches de Vivaldi. E por aí fora.

Moral da história: quando o talento é real, encontra sempre alguma maneira de se manifestar. O espírito sopra em quaisquer circunstâncias e em qualquer lugar.

Onde está o dinheiro?

A gente já sabe em que é que o governo poupou. Agora, gostaríamos de saber em que é que gastou, tendo em conta que o déficite real das contas públicas não pára de crescer.

Eisenstein e o Rato Mickey

No Festival de Cinema de Moscovo de 1935 (precisamente o primeiro de todos eles), Eisenstein, Presidente do Júri, propôs que o Grande Prémio fosse atribuido ao Rato Mickey.

Embora ele estivesse cheio de razão, é claro que o galardão foi antes para Tchapaév, um óbvio filme de regime. Mas este episódio serve para tornar claro o que Eisenstein se ralava com o realismo socialista.

O sensacionismo

«O que sente? O que sentiu? Qual é a sensação?» Perguntam ansiosos os reporteres a José Mourinho na inauguração do Estádio do Dragão, ao jornalista da TSF libertado dos seus captores, ao condutor ainda azamboado por um choque frontal.

Sabem lá eles, pobres infelizes apanhados à má fila, descrever o que sentem. Nada é menos imediato, menos elementar, menos primitivo do que a expressão de uma sensação. A verbalização das nossas sensações é-nos ensinada, pelo que, contrariamente ao que se pensa, os analfabetos são as pessoas menos indicadas para nos falarem delas.

A inteligência e a cultura são a matéria-prima das sensações; sem elas, o que há são vagas impressões, picadelas ou comichões.

É preciso ser-se um Proust para se conseguir dizer o que se sente. Mas não é certamente isso que os reporteres esperam ouvir.

18.11.03

The American Dream




Robert Indiana, o autor de The American Dream, trabalha ícones comerciais até os tornar irreconhecíveis: restam apenas vagas sugestões de etiquetas de preços, auto-colantes, cartazetes promocionais, emblemas, anúncios de luna-park, elementos decorativos de máquinas de jogos.

Essa matéria-prima (os signos de actividades comerciais e de lazer e não as coisas elas mesmas) é por ele transfigurada para nos dar a ver um mundo mais real do que a própria realidade. É uma espécie de realismo capitalista.

Será isto pintura anti-americana? Mais do que uma «crítica», o que eu vejo aqui é um comentário que remete para uma pluralidade de sentidos.

Soulages



Em 1962, a Fundação Gulbenkian ainda não tinha o seu edifício da Avenida de Berna. Por isso, foi no pavilhão da FIL da Junqueira que organizou a exposição «Cem anos de Pintura Francesa».

Foi aí que muitos milhares de lisboeta (e eu entre eles) tiveram a hipótese de pela primeira vez na sua vida contemplarem ao vivo e a cores telas de Monet, Manet, Degas, Pissarro, Gauguin, Toulouse-Lautrec, Seurat, Bonnard, Matisse, Léger, Bracque, Sónia e Robert Delaunay ou Vieira da Silva (representada, se não erro, por um quadro intitulado O Desastre), entre muitos outros.

A concluir tanto deslumbramento, no final da exposição, deparei-me com uma tela gigantesca de Soulages, na altura um completo desconhecido.

A pintura de Soulages vem, não pode haver dúvida, de cima para baixo. É uma voz que desce até nós, sólida, dominadora, mas também atenciosa ou prestável. Nunca esmagadora, excepto talvez no sentido de uma presença benévola que nos submerge (talvez a palavra certa seja antes: que nos invade).

Predomina o negro, completado apenas com uma sugestão de vermelho ou, mais frequente, azul. Tudo é subtileza nestas formas colossais: este elefante certamente não partiria nada numa loja de porcelanas.

É inútil acrescentar que se trata de pintura religiosa.

17.11.03

A cegueira no posto de comando

Já o disse uma vez, e repito: independentemente do modo errado como tudo começou, a guerra do Iraque é agora também a nossa guerra. Ou seja, partindo do princípio de que o regresso de Saddam ou algo parecido não é uma opção aceitável, é indispensável que as Nações Unidas e os principais aliados dos EUA se envolvam e tomem conta do assunto.

Uma das principais dificuldades (não a única, certamente), é que Bush deseja antes de mais evitar perder a face. Isso coloca-nos perante um cenário muito negativo: daqui até às eleições americanas e à eventual queda de Bush, se nada inverter o curso dos acontecimentos, nem os aliados do EUA vão querer comprometer-se com tropas no terreno, nem a ONU vai querer assumir a direcção política da operação.

O resultado será a degradação da situação militar, desembocando muito provavelmente numa guerra civil generalizada, que é aquilo que os adeptos de Saddam estão a tentar provocar.

Neste momento, as principais potências agem como se não estivessem conscientes deste perigo. Em particular, os aliados europeus dos EUA comportam-se como se tivesse alguma importância continuarmos infindavelmente a discutir se houve ou não justificação para a «guerra preventiva».

Grossa asneira.

16.11.03

India Song

Não é que os géneros não possam influenciar-se mutuamente, mas fazer um filme com ideias literárias é má ideia; tal como é má ideia, acrescento já, fazer um romance com ideias cinematográficas.

Talvez se conseguisse fazer com isto um bom trailer. Tenho reparado que a maior parte dos filmes ficam melhores no trailers, recolhem só o sumo e deitam fora a palha, às vezes com horas de duração, que só serve para justificar os 4,5 euros do bilhete.

Até já me ocorreu que os trailers são uma forma de arte cuja importância ainda está à espera de ser reconhecida, se calhar pelas civilizações vindouras. Parafraseando o Pacheco Pereira, um dia hei-de voltar a isto.

15.11.03

Enigma esclarecido

Está finalmente esclarecida a missão da GNR no Iraque: proteger os repórteres portugueses presentes no Iraque para cobrir a presença da GNR no Iraque.

14.11.03

Dicionário das ideias feitas

«Realmente, o Ferro não devia ter deixado enredar o PS no escândalo da Casa Pia.»

Isto é o que eu ouço onde quer que vá: nas cervejarias, nos táxis, nas retretes dos cinemas, nos consultórios dos dentistas, nos táxis, nas missas de sétimo dia, nos trottoirs do Intendente, nas tertúlias intelectuais, nas paragens dos autocarros, nas bancadas dos campos de futebol, nas festas de casamento, nos seminários de gestão, nas filas para o confessionário, nas assembleias gerais das sociedades anónimas.

Se Flaubert voltasse cá abaixo, lá teria que acrescentar a frasezinha ao seu Dicionário das Ideias Feitas.

Esta insidiosa inteligência omnipresente e impessoal que a todos nos governa é a prova provada de que ninguém está a pensar. A todos estes peremptórios, eu gostaria apenas de perguntar (mas não é preciso responder) o que é que eles acham que Ferro deveria ter feito (ou deixado de fazer) para evitar «enredar o PS no escândalo da Casa Pia».

Vá, voltem lá às vossas ocupações e esqueçam o assunto. Mas, primeiro, prometam-me que não voltam a dizer tolices sem pensar.

Eu, outros

Admira-se o Flor de Obsessão que o Barnabé junte num mesmo blogue «anarquistas, sociais-democratas, ex-comunistas e liberais de esquerda».

Que diria então de mim, que consigo reunir numa mesma pessoa todas essas tendências e ainda algumas outras, eventualmente inconfessáveis.

Que se lixe a coerência!

Deus está nos detalhes

Num filme de cujo nome não me recordo, o Mastroianni vai a um ensaio de orquestra visitar o filho que é percussionista.

Depois de bater os pratos no momento azado, o filho vem até à  plateia ter com ele e diz-lhe: «Vamos tomar um café, mas temos que ser rápidos: daqui a dez minutos entro outra vez». Na conversa que se segue, Mastroianni tenta convencer o filho, que o ouve com mal disfarçada condescendência, que ele é o melhor da orquestra e que todos os outros estão a aproveitar-se do seu trabalho.

Psicologicamente falando, o percussionista é o aristocrata da orquestra. Enquanto os operários se esfalfam a dar ao arco ou a soprar até perder o fôlego, ele contempla o afã da oficina a seus pés com ar enfadado, do alto do seu posto de controlo e, de vez em quando digna-se bater o timbale ou sacudir os ferrinhos. E, lá no fundo, por detrás da sua fingida indiferença, ele está bem consciente de que essas fugazes intervenções fazem toda a diferença.

Nem toda a gente se apercebe disso, mas os grandes músicos, esses, sabem-no bem.

Quando Toscannini dirigiu a orquestra do festival de Bayreuth, interrompeu a dada altura o ensaio para interpelar o percussionista: «Então o timbale? Porque não tocou o timbale?»

«Mas, maestro, segundo a partitura, o timbale não toca aqui!»

Toscannini não quis acreditar. Pediu para ver a partitura do percussionista, mas era verdade: não estava previsto ali nenhum toque de timbale. Todos os outros músicos lhe asseveraram de que estavam fartos de tocar aquela ópera e que, de facto, o timbale nunca entrava naquele momento.

Toscannini foi consultar a edição impressa: não estava lá nada. Foi ver edições antigas: também não. Procurou a primeira edição: nada.

Desesperado, vasculhou o arquivo de Bayreuth em busca do original manuscrito por Wagner e, quando chegou à página pretendida, pôde finalmente sorrir: «Eu sabia! Eu sabia que aqui tinha que entrar o timbale!»

Radu Lupu

A postura descontraida, as costas tão inclinadas para trás que, às vezes, parece que se vai deitar, sem a mínima sugestão de esforço, quase sem mexer os braços, Radu Lupu limita-se a instigar o piano a deitar cá para fora o que lhe vai na alma. Como se deitasse o instrumento na marquesa e lhe perguntasse mansamente: «Ora então de que se queixa?»

12.11.03

Distracções

Segundo os jornais de hoje, os GNR lá partiram para Nasiriyah. Não está mesmo a ver-se que, em português, isso diz-se «Nazaré»?

11.11.03

Violência gratuita

Acabo de saber pela televisão que o ministro Morais Sarmento deu em Timor uma aula sobre lusofonia.

Mas, se os timorenses são nossos amigos, porque este acto hostil?

10.11.03

Eu não pago 2

Porque é que eu, que não tenho propriedades rurais, hei-de pagar o combate aos fogos florestais?

Porque é que eu, que tenho carro, hei-de pagar os transportes públicos?

Porque é que eu, que sou continental, hei-de pagar o ordenado do Alberto João?

(Se tiverem mais ideias, mandem-nas para cá. Quem sabe se não seremos capaz de criar um movimento verdadeiramente e grandiosamente estúpido, capaz de fazer inveja ao Manuel Monteiro?)

Viagens na minha terra

Estes danados têm estilo.

Eu não pago

Porque é que eu, que não circulo nas estradas do interior, hei-de pagar as SCUTS?

Porque é que eu, que nunca estive desempregado, hei-de pagar o subsídio de desemprego?

Porque é que eu, que nunca roubei nem fui roubado, hei-de pagar a polícia e os tribunais?

Porque é que eu, que não sou mulher, hei-de pagar o atendimento hospitalar das mulheres grávidas?

Ai, meu Deus, que se faz tarde!

Dizia-me há uns anos um amigo brasileiro: «Os portugueses são de uma pontualidade britânica». E, como eu o olhasse como se tivesse um parafuso a menos, explicou: «É verdade, sim. Aqui você vai no cinema e começa na hora.»

Como se vê, há quem ache que a nossa descontraida relação com os horários, uma das coisas que pior me faz ao coração, pode ser correctamente apelidada de pontualidade. É tudo uma questão de perspectiva: um dia, não há muito tempo, já nos estivémos onde os brasileiros estão; um dia, mais cedo do que pensamos, estaremos onde os ingleses hoje estão.

Se calhar, nada como a pontualidade mede com tanta precisão o grau de desenvolvimento de um país. De facto, se tempo é dinheiro, falta saber quanto dinheiro vale cada unidade de tempo; e, tendo em conta que o custo de uma hora de ócio é o dinheiro que perdemos por não estarmos a trabalhar, a importância que atribuimos ao chegar a horas varia na razão directa da nossa produtividade.

Sendo assim, o problema da pontualidade resolve-se por si.

Quando li no jornal que um professor universitário português abrira na internet um abaixo-assinado a favor da pontualidade não pude deixar de reagir com emoção, tratando-se de uma cruzada que a me diz tanto. Mas a verdade, caro Professor Ivo Dias de Sousa, é que não vale a pena ralar-se demasiado: esta é mais uma doença nacional que não se resolve com sermões, mas com trabalho.

Sabiam?

Quando toda a gente está certa de alguma coisa, toda a gente está errada.

9.11.03

Shit happens

Cervantes e Shakespeare, para muito boa gente as duas maiores figuras de sempre da literatura europeia, morreram no mesmo dia do mesmo mês do mesmo ano: 16 de Abril de 1616.

Não consigo deixar de pensar que há qualquer coisa de misterioso nesta coincidência. Dá vontade de buscar uma incompreensível relação de causalidade entre os dois acontecimentos, talvez uma conspiração de vírus ou uma vingança cujo segredo se perdeu para sempre. A menos que tenha tudo sido combinado entre os dois, deixando-nos a nós a responsabilidade de descobrirmos o significado gesto.

Viagem de ida e volta ao reino da escravatura

De há uns tempos a este parte, tornou-se hábito justificar todas as políticas destinadas a reduzir os direitos de quem trabalha ou a favorecer os interesses de quem manda através do recurso ao imperioso argumento da competitividade externa.

«Nós até gostaríamos de reduzir a precaridade do trabalho, de aumentar o salário mínimo, de melhorar a segurança social, e por aí fora. Mas temos que ver que os países com os quais competimos, sejam eles asiáticos ou do leste europeu, não garentem benefícios equivalentes aos seus trabalhadores, de maneira que, ao fazê-lo, estaríamos a prejudicar a competitividade das nossas empresas, a afastar o capital estrangeiro e a criar condições para aumentar o desemprego em Portugal.» De modo que, embora o ministro Bagão Félix seja um adepto fervoroso da doutrina social da Igreja, é forçado a reconhecer com o coração destroçado que, na prática, ela não se encontra à altura dos acontecimentos. Se até o Papa se engana desta maneira, que haveremos nós de fazer?

Dou por mim às vezes a pensar se, neste contínuo processo de descida aos infernos (pode sempre aparecer um país com legislação laboral pior, e sabe Deus que alguns já a têm bem má), não surgirá um dia um economista a explicar que o melhor será mesmo restaurar a escravatura para assegurar o progresso do país.

«Impossível», dirão alguns optimistas, «toda a gente sabe que o esclavagismo era um regime menos produtivo do que o feudalismo, e este, por sua vez, menos eficiente do que o capitalismo. Foi por isso que o capitalismo triunfou, e este é um ponto em que toda a gente, marxistas incluídos, está de acordo.»

Mas imaginemos, por um instante, que um economista reputado conseguia provar o contrário, ou seja, que seria possível aumentar a produtividade instaurando o esclavagismo. Deveríamos nós seguir o seu conselho? E estaria o ministro Bagão Félix disponível para promulgar toda a legislação necessária?

Pois é, meus amigos, lamento muito informá-los, mas a verdade é que não só esse economista já apareceu, como inclusivamente a excelência da sua investigação foi há anos reconhecida e premiada com o prémio Nobel da Economia. Estou a referir-me a Robert W. Fogel, galardoado em 1993 conjuntamente com Douglas North.

Num conjunto de trabalhos memoráveis, de que se destacam Time on the Cross: The economics of negro slavery e Without Consent or Contract: The rise and fall of american slavery, Fogel demonstrou sem margem para dúvidas que, ao contrário do que muitas vezes se afirma, a escravatura era um regime de trabalho eficiente e rentável. Assim, segundo este autor, está demonstrado que o crescimento económico e tecnológico é perfeitamente possível, mesmo no interior de uma ordem sócio-económica profundamente imoral. Era costume ensinar-se nas faculdades de economia que a escravatura terminara porque constituía um entrave ao progresso, mas isso, pura e simplesmente, não é verdade: a abolição da escravatura resultou da determinação política de muita gente, impulsionada por factores de ordem diversíssima, entre os quais os éticos, para pôr termo à escravatura.

A lição de tudo isto é que a república dos economistas que actualmente vigora entre nós assenta numa combinação de falácias económicas, insensibilidade ética e fraude política. Não será altura de comprarmos o bilhete de regresso?

8.11.03

A tabloidização do pensamento

«Que geração é esta que considera que não deve contribuir nem de forma simbólica para custear os seus estudos?» Depois de um breve perí­odo em que pareceu experimentar ligeiras melhoras, lá volta Helena Matos, no Público de hoje, ao seu desesperado estado normal.

Geração que não contribuiu, nem simbolicamente, para pagar os seus estudos superiores foi a minha, e suponho que também a dela. Exactamente um dos aspectos desagradáveis da actual situação é precisamente que, enquanto a universidade foi um terreno praticamente reservado aos filhos das classes superiores, não se pagava nada; ao passo que agora, que ela se democratizou consideravelmente, essas mesmas classes já consideram que se deve pagar ao menos qualquer coisa. Isto entendo e reconheço eu, apesar de, por outras razões, concordar com o aumento do preço das propinas. Mas, como boa doutrinária, a Helena Matos pouco lhe interessam os factos, apenas as conclusões simplórias que já formulou na sua cabeça, como manda o bom pensamento tablóide de que ela é uma digna representante.

Mas o mais relevante no artigo de Helena Matos é a sua insistência no preconceito estafado de que a actual juventude sofre sobretudo de excesso de mimo e de privilégios. Ora eu acho, pelo contrário, que a convicção de que as vidas dos outros são isentas de privações e dificuldades é o traço psicológico distintivo do autêntico egoista, daquele que não consegue entender, muito menos simpatizar, com o sofrimento alheio. Que os jovens de hoje não conhecem muitos problemas que nos atormentaram há poucas décadas, é uma verdade indiscutí­vel; que conhecem outros, talvez maiores, talvez incomensuráveis, é algo que a mera observação estribada no bom-senso nos permite constatar.

Como estudou a cartilha reaccionária há pouco tempo, Helena Matos segue obedientemente o guião (não teve ainda tempo para elaborar um pensamento próprio, valha-nos isso!), o que a leva a passar em seguida a outro tema querido do seu clube ideológico: o do culto da juventude que considera tí­pico dos nossos tempos.

Ora a senhora está desfasada. O culto da juventude foi uma coisa que despontou na sequência do pós-guerra, correspondendo à transformação demográfica traduzida no enorme peso dos adolescentes nas sociedades ocidentais. Esse tempo acabou há muito, para o bem e para o mal. Hoje, vivemos em sociedades envelhecidas, onde, como bem o demonstra a opinião bem-pensante representada por Helena Matos, a juventude tende a ser apenas tolerada. E, não se duvide, estamos apenas no princí­pio de um processo.

Com a sua habitual coragem de pacotilha, Helena Matos nada mais faz senão colocar-se disciplinadamente do lado da nova sabedoria oficial.

E, afinal, o que é que a vontade de não pagar propinas tem a ver com o excesso de mimo? Pois não é verdade que também os empresários não querem pagar os impostos, o governo não quer pagar as SCUDs, os automobilistas não querem pagar as portagens, os clubes de futebol não querem pagar os estádios, e por aí­ fora? Será a falta de carícias o impulso oculto por detrás de todos esses comportamentos?

Ó doutora Helena, francamente! Vá lá pensar melhor no assunto e volte quando tiver uma ideia melhor. E, sobretudo, gaste mais tempo a pensar e menos a alindar a frase.

Doçura da convalescência

É muito mais agradável recuperar a saúde do que conviver com ela como presença invisível, trivial e inquestionada. Bastam uns breves dias de interrupção do curso natural dos acontecimentos para que muita coisa pareça já lavada e nos revele uma face nova, para que redesperte a percepção embotada pela rotina.

Aí está uma felicidade de que, por definição, não se pode desfrutar no Paraíso.

7.11.03

Em louvor da gripe

Uma gripe inopinada abriu um brusco hiato no meu dia a dia, essa corrente contínua de busy-ness impositivo a que bravamente me esforço por resistir para conquistar um espaço que seja meu.

Durante dois dias e meio vegetei num estado de semi-inconsciência não inteiramente desagradável. Subitamente, sou dono do meu tempo sem ter sequer que lutar por isso: tudo o que tenho a fazer é deixar-me levar pelos acontecimentos e soltar a fantasia, seguindo o capricho dos meus pensamentos para onde eles me quiserem levar.

E assim sou levado a pensar que a gripe, essa doença amiga entre todas, nunca foi louvada como merece. Bem vistas as coisas, faz muito mais bem que mal.

Da infância, traz-me recordações do Vick-Vaporub ternamente esfregado no peito e das costas. Mais tarde, na adolescência, recorda-me a ambicionada pausa na corveia quotidiana das aulas, o descontraido remanso de manhãs e tardes passadas a ouvir na rádio programas tolos, apresentadores tolos e canções não menos tolas de cuja existência não suspeitara sequer, ou então a reler pela enésima vez os meus Tintins favoritos.

Com o passar da idade, parece-me que se espaçaram as suas visitas amigas. Mas a gripe nunca deixa de, forçando-nos à inactividade, convidar-nos à sabedoria. Algo especialmente bem-vindo quando, adultos convictos da importância dos nossos afazeres profissionais, somos subitamente confrontados com a verdade indesmentí­vel de que não só o mundo continua perfeitamente a girar sem nós, como também nós passamos perfeitamente sem ele, numa espécie de antevisão do lado mais positivo da morte.

A gripe é uma forma especial de preguiça que tem a vantagem de não nos envergonhar perante os outros: quem terá o mau gosto de criticar-nos por estarmos doentes? Mas é uma preguiça intelectualmente mais produtiva, porque nos desperta a atenção para coisas a que usualmente não prestamos atenção, desde os ruidos da rua aos movimentos de entrada e saída no prédio denunciados pelas subidas e descidas dos elevadores. É uma oportunidade única para conversarmos com a mulher-a-dias, para conhecermos o carteiro, para sabermos como ocupam o seu tempo os filhos e o cão, para vermos a televisão à hora do almoço, para participarmos um pouco, enfim, das vidas de outros com quem habitualmente nos cruzamos demasiado de raspão.

Mas eis que, a pouco e pouco, recomecei a pedir os jornais e a espreitar a televisão. A internet teve que esperar mais um pouco, porque sempre dá mais trabalho. Quando, finalmente, volto à blogoesfera, entro em pânico, afligido tanto pela quantidade de posts que deixei de ler como pelos que deixei de escrever.

Acabou-se a boa vida!

4.11.03

Déficite de inteligência

A clique dos economistas, a que me orgulho de pertencer, é muito melhor a diagnosticar problemas do que a resolvê-los.

Por exemplo: eles chamam correctamente a atenção para o facto de que a manutenção de orçamentos fortemente deficitários do sector Estado conduz ao aumento do endividamento público e, normalmente, ao crescimento da dívida externa.

Todavia, eles não entendem nem a origem dos déficites nem as suas causas profundas e, como tal, não estão em condições de sugerir medidas correctivas eficazes. Para isso, seria melhor chamar politólogos ou sociólogos.

Acontece que os déficites são a expressão de conflitos de interesses, uns legítimos, outros nem por isso, que o Estado não é capaz de arbitrar de forma satisfatória. O que há não chega para todos, de modo que a tentativa de satisfazer os diversos grupos de pressão leva a uma escalada da despesa. É por isso que estes problemas acontecem mais quando o Estado é fraco e os poderes fácticos demonstram uma rapacidade incontrolada. Embora oficialmente a luta de classes tenha sido declarada extinta, a verdade é que continua a fazer das suas...

Para reduzir custos, seja numa empresa, seja numa instituição pública, é necessária uma estratégia orientadora. De outro modo, as poupanças que se realizam num lado aumentam as despesas noutro. São as tais «decisões estúpidas» de que muito bem fala a Ministra das Finanças.

É certamente por isso que, apesar de tanta retórica de controlo orçamental e tanto corte espectacular nisto e naquilo, o déficite continua a crescer descontroladamente (segundo alguns, já andará nos 5%) se descontarmos o efeito da contabilidade criativa permitida por Bruxelas.

2.11.03

Alegria austera



Trafalgar Square, Piet Mondriaan

Passo

Pego no novo romance de uma jovem autora portuguesa exposto em lugar de destaque no escaparate da livraria. A crítica (pelo menos uma parte dela) diz maravilhas, e isso despertou a minha curiosidade.

Logo nas primeiras linhas, é tão evidente o esforço para impressionar o leitor com o virtuosismo da autora que eu fico logo de pé atrás. «Vejam só como eu escrevo bem!», eis a mensagem principal que me é gritada de dentro daquelas páginas. Por mim, está dispensada: não preciso de ler mais.

Decididamente, o exibicionismo estilístico, síndrome que infecta uma parte considerável das nossas letras, é a doença infantil da literatura.

Escrever devagar

Será o ritmo da blogoesfera incompatível com a reflexão? Turing Machine acha que não, e eu espero que esteja certo.

Importa-se de repetir?

Já viram a campanha do Ministério das Finanças para nos incitar a pedir factura pelos serviços que adquirimos?

A meu ver, ela só vem comprovar a preguiça mental de quem a encomendou e aprovou.

Senão, vejamos. Todos sabemos que pedir factura, na grande maioria das situações, não tem nenhuma vantagem para o consumidor. Em contrapartida, tem um grande inconveniente: com factura, o serviço fica mais caro, porque o fornecedor é obrigado a acrescentar-lhe o IVA.

Logo, o que a campanha verdeiramente diz, é: «Se você pagar o IVA, nós provavelmente vamos receber esse dinheiro». Como promessa, não está mal pensado.

Lock-in

O peso de Pacheco Pereira como político resulta de ser jornalista.

A influência de Pacheco Pereira como jornalista resulta de ser político.

Tiro ao boneco

É oficial: o Flash-back está de regresso, agora na SIC, e José Magalhães consegue conservar o seu lugar de punching-ball. É justo, tendo em conta as provas dadas ao longo dos últimos anos.

Em que ficamos?

Pacheco Pereira é deputado ou jornalista?

Como deputado, não lhe conheço em década e meia de actividade, primeiro na Assembleia da República, depois no Parlamento Europeu, qualquer iniciativa parlamentar de relevo.

Como jornalista, semana após semana, escreve no Público, perora na TSF, sentencia na SIC, sem esquecer que quotidianamente bloga no seu blogue. Toda a gente que escreve sabe que isto toma muito tempo, a maior parte do qual gasto a recolher e organizar informação.

Afinal, em que ficamos: deputado ou jornalista?

Assim, sim

A TSF dedica a sua emissão da manhã de sábado a Évora. A dada altura, vai para a rua perguntar aos eborenses o que acham de haver uma universidade na cidade. Que sim, que é muito bom para o comércio, que os estudantes trazem muito movimento aos cafés e às lojas...

No debate que se segue, o reitor congratula-se com o teor das opiniões recolhidas, e a conversa prossegue no mesmo tom.

Temos, então, que a missão do ensino universitário é, fundamentalmente, a protecção do pequeno comércio. Registo, consolado, que, afinal, a cultura sempre serve para alguma coisa. Assim sendo, o futuro das universidades está assegurado, e talvez fosse boa ideia passar a sua tutela para a Secretária de Estado do Comércio.

Bendita a pátria que tais universidades dá ao mundo!

1.11.03

Português, demasiado português.

Deito uma olhada à primeira página do Expresso, vejo as notícias sobre o príncipe saudita que alegadamente comprou as dívidas ao fisco (lendo a notícia percebe-se que a afirmação é, em rigor, falsa), a investigação pela Judiciária de um preço de favor a Vieira (o Vieira, não estão a ver?), a viagem de Cinha aos EUA acompanhando Portas (é a isso que se chama escorting?), o aluguer do Panteão que só custou mil euros e outros temas palpitantes, e dou comigo a pensar como é brega a classe dirigente que se revê neste jornal «de referência».

Virando a página, confronto-me mais uma vez com o esplondoroso mau gosto do arranjo gráfico deste periódico, exacerbado pela intromissão, nos espaços mais nobres do jornal, de pequenos anúncios que desarranjam o lay-out e misturam os temas centrais da política nacional com o kitsch quotidiano. Em que outra parte do mundo é possível encontrar-se outra coisa assim? Talvez no Iraque do Saddam houvesse disto, mas agora já devem ter evoluído um bocadito.

Mais adiante, do alto da página cinco, Saraiva, o Sábio, inflinge-nos mais uma vez os seus pensamentos profundos de mestre-escola reformado. O seu assunto preferido é: «Eu bem vos disse!» Prevendo que a política portuguesa vai seguir as suas medíocres opiniões, é claro que ele acerta sempre.

E a coisa continua por ali fora, sempre no mesmo estilo pomposo, maçador e consistentemente destituído de ideias, polvilhado de comentadores institucionais cuja principal mensagem é lembrar-nos que existem.

Um estrangeiro pergunto-me certa vez porque é que os portugueses gostam tanto de sacos de plástico, originalidade que nos aproxima dos russos, esse povo irmão que habita o outro extremo do Continente. Os russos sei eu que criaram esse hábito porque, num país onde havia bichas para comprar quase tudo, levar um saquito de plástico no bolso pode dar muito jeito quando por acaso se encontra uma aberta. Mas, em Portugal, continua a ser para mim um mistério o entusiasmo que toma as multidões quando as caravanas dos partidos destribuem sacos durante as campanhas eleitorais.

Seja como for, resultou daí uma outra originalidade portuguesa, que é esta de um semanário consistir numa colecção de maços independentes de papel atafulhados num saco de plástico que nos desarruma a casa durante todo o fim de semana. Que tal experimentar aquela fórmula estafada, exaustivamente testada em países menos originais, consistente em agrafar os cadernos e inseri-los numa capa?

No ponto a que as coisas chegaram, eu já tenho vergonha de ser visto na rua carregando o Expresso dentro do saquito de plástico. É que é degradante e parece mal. «Ah! Mas então porque o compras tu?» E eu lá respondo, meio acabrinhado, com receio de que pareça estar apenas a inventar uma desculpa, que a coluna de opinião do José Cutileiro vale bem os 2,90 euros.

Eu vi a Luz

Diz-se que uma pessoa pode mudar de mulher ou de país, mas só um patife muda de clube de futebol. Ora o Benfica acaba de eleger seu presidente um homem assim.

30.10.03

A descoberta

É sempre reconfortante descobrir alguém que, de facto, percebe de futebol.

Tem Vincent toda a razão, a maior figura de sempre do futebol português chama-se Mário Coluna. E quem o diz é um portista.

O Benfica foi campeão europeu (em 61) sem Eusébio. Mas nunca ganhou nada sem Coluna.

É fácil perceber-se a qualidade do Eusébio através de breves lances de futebol. Mas quem nunca viu o Coluna fazer jogos inteiros tem dificuldade em entender a sua importância porque o que distingue os maiores jogadores é a sua presença em campo, uma qualidade com o seu quê de imaterial, não redutível a esta ou àquela intervenção pontual.

Mas isto está a tornar-se numa discussão altamente técnica, e temos que ter cuidado para os nossos leitores não fugirem para a TVI...

O teste

Pinto da Costa anunciou há semanas que o Presidente da Câmara da cidade do Porto não seria convidado para a inauguração do novo Estádio do Dragão.

Compreendo as razões do FCPorto, mas interrogo-me: Que atitude tomará a Direcção do PSD? E, sobretudo, que atitude tomará o primeiro-ministro?

Bem sei que Durão Barroso está naturalmente ansioso por enfrentar a segunda vaia gigantesca no espaço de poucas semanas e habilitar-se desse modo a entrar para o Guinness. Mas, mesmo assim, custa-me a entender como poderá prestar-se a colaborar na humilhação pública do seu colega de partido Rui Rio.

Os jornais de hoje noticiam que Mota Amaral, Presidente da Assembleia e segunda figura na hierarquia do Estado, também não será convidado por há meses ter levantado dúvidas sobre a deslocação de inúmeros deputados à final de Sevilha invocando «trabalho politico».

Pinto da Costa está nitidamente a esticar a corda, dado que, ao vetar Mota Amaral, começa agora a colocar um problema de solidariedade institucional ao próprio Presidente de República.

Como reagirão as principais figuras políticas nacionais a este imbróglio? Aproveitarão a ocasião para demonstrar um nadinha de carácter? Ou deixar-se-ão enterrar mais um bocadinho?

Decididamente, a inauguração do estádio do FCPorto ameaça tornar-se no acontecimento político do mês.

O olhar frágil



Para que conste: no meu ranking pessoal o Klee vem muito à frente do Picasso. Não é para ser original, mas é mesmo assim.

Klee professou uma religião dos pequenos encontros, da miniatura, da atenção excessiva ao excessivamente desapercebido. Buscou o estilo por detrás do informal, o artifícial por detrás do natural. Procurou tornar visível para além do visível.

Projectou desenhar música e conseguiu-o. Esboçou contrapontos visuais explorando ritmos cromáticos e mudanças de temas gráficos.

Conjecturou que por detrás dos estados espirituais há equações. Propôs que o olho pensasse e que a fantasia racionalizasse.

Coleccionou no seu frágil jardim de formas toda a espécie de símbolos visuais, troféus capturados em incursões pelo desenho infantil, pela escrita, pela zoologia, pela botânica, pela astronomia, pela física.

A pintura de Klee projecta a seriedade de que só uma criança é capaz.

27.10.03

O pecado da indiferença

Com o Bastonário da Ordem dos Advogados a dizer tudo o que pode e deve ser dito, nada mais há sobre a substância do assunto que um pobre circunstante como eu possa ou deva acrescentar.

Resta-me apenas aplaudir e notar que é em alturas como esta que se revela o real carácter das figuras públicas. Infelizmente, há alguns que se desculpam com o facto de não sabermos tudo para não tomarem posição.

No mundo há relativamente poucas pessoas muito boas ou muito más, de modo que quem de facto pode lixá-lo são os indiferentes.

25.10.03

O meu candidato

Admitindo que o país precisa de um governo (coisa de que eu, às vezes, chego a duvidar), então o meu candidato ao lugar de primeiro-ministro é sem dúvida, este.

Não só estudou a fundo os dossiers, como os traz na ponta da língua. Nenhum assunto é demasiado complexo para ele. É tão forte na concepção como na argumentação. Não receia lóbis. Tem soluções prontas a usar para tudo e mais umas botas. As próprias respostas às previsíveis objecções da oposição já foram preparadas em pormenor.

Ainda por cima, tem espírito de humor. Querem mais?

Inspira-te e pira-te

O Stendhal costumava ler o Código Civil para se inspirar antes de começar a escrever. O Proust preferia os horários dos comboios, que lhe sugeriram aliás algumas páginas mágicas no segundo volume da Recherche. Eu cá, mais modestamente, quando quero maçar-me, vou ao Aviz.

24.10.03

Chuck Close

Allen Rupersberg (5)

Allen Ruppersberg (4)

Allen Ruppersberg (3)

Allen Ruppersberg (2)

Allen Rupersberg



Encontro na revista Book Forum (Fall 2003) um artigo sobre Allen Rupersberg, um artista que até agora me tinha passado despercebido. Faço uma pesquisa no Googgle e rapidamente encontro vários trabalhos seus que, através de um simples cut and paste, incorporo na minha galeria pessoal e coloco à disposição dos visitantes deste blogue.

É isto a maravilha da web. E é por isso que chamo a este blogue uma wunderkammer, segundo o modelo dos gabinetes de curiosidades, ou museus privados, do século XVII.

A cultura serve-se fria

Não acham estranha esta obsessão de recomendar livros aos telespectadores que têm os comentadores do PSD? Alguém imagina o Miguel Sousa Tavares ou o Sócrates, por exemplo, a fazer isso?

A direita passa-se dos carretos com qualquer sugestão de que é culpada de um déficite de preparação cultural, razão pela qual não perde uma ocasião de exibir os seus escassos troféus. A verdade, porém, é que para aquelas bandas não se lê muito.

Mas como é possível dizer-se isso de um partido recheado de professores universitários, gestores de topo e juristas? Funcionam um bocado no modelo do Cavaco que, se bem se recordam, «não tinha tempo» para ler nada fora do estreito âmbito dos manuais de Finanças Públicas (e até desconfio que mesmo a Microeconomia já era para ele um tema um tanto esdrúxulo).

Felizmente que há gente (Marcello e Pacheco) que lê por eles e depois informa o povo do que está a dar. Cada um dos comentadores adopta, porém, um formato distinto.

Marcello passa a correr pelas capas e pelas lombadas, quando muito dá uma espreitadela às badanas. É o modelo Círculo de Leitores da compra de três metros de livros para decorar a estante. Fica sempre bem numa casa de família.

Já Pacheco é o Reader´s Digest do PSD. Ele lê aquelas tremendas chumbadas do Túcidides, do Orwell ou do Kafka e depois serve as conclusões já devidamente mastigadas e digeridas, prontas a usar no debate ideológico.

Topam?

23.10.03

Nova fórmula de êxito

Leio no Correio da Manhã de hoje que a discussão assanhada entre Manuel Moura Guedes e Miguel Sousa Tavares em pleno telejornal da TVI levou a um crescimento em flecha da audiência do canal.

A ser verdade, é de temer que a TVI comece a organizar cenas de pugilato opondo entrevistados a entrevistadores. Se forem espertos, registam já a fórmula antes que a Endemol se lembre disso.

Só não percebo o que é que o Sousa Tavares está a fazer neste filme.

Pobre PP

Eu sei que todos temos momentos infelizes. Eu sei que é difícil manter-se algum rigor no raciocínio quando se é militante de um partido político. Eu sei que Pacheco Pareira tem usualmente, a este propósito, uma postura bem mais recomendável do que a da maioria dos políticos no activo.

Mas o seu artigo de hoje no Público agrava singularmente o seu caso. Errar é humano; persistir no erro, coisa do demónio.

De que é que vale um tipo andar toda a vida a pregar contra o populismo, contra o sensacionalismo dos media, contra os julgamentos na praça pública, contra a importância atribuida a alguns por cartas anónimas, contra a calúnia como arma política se, chegada ahora da verdade, perde a compostura e se comporta deste modo?

O que nós verdadeiramente valemos revela-se nas situações limite a que somos expostos. É tempo de Pacheco Pereira parar um bocadinho para pensar.

PS: Por estas e por outras, decidi prolongar por tempo indeterminado a pena de exclusão do link deste blogue com o Abrupto .

Do passado fazendo tábua rasa



Malevitch resolveu em 1913, ao pintar este quadrado negro sobre fundo branco, recomeçar de novo a história da pintura. Por essa altura, nas vésperas de uma grande carnificina de repercussões mundiais, muitos outros fizeram o mesmo na literatura (Proust, Joyce) ou na música (Schoenberg, Stravinsky), para recordar apenas alguns exemplos triviais.

Continuo a achar isto comovente e, olhando para trás, não posso deixar de pensar que, no essencial, essa ousadia perdeu-se. E que falta nos faz ela agora!

Viagens na Minha Terra

Eu sei que a minha lista de links é muito pequena, mas é só porque optei por listar apenas os blogues que visito com grande frequência.

À cabeça das minhas preferências estão A Praia e o Barnabé, porque tenho uma grande afinidade de pensamento com muito do que lá se escreve e porque, apesar disso, aprendo bastante com eles.

Logo a seguir vem o Dicionário do Diabo: apesar de a minha orientação política ser muito diferente, eu aprecio sobretudo gente com espessura intelectual e ética, e encontro isso no Pedro Mexia. Por essa mesma razão, eu gostava do Abrupto, mas confesso que o seu autor me desapontou muito seriamente nos últimos tempos; por isso o risquei, até nova ordem, das minhas preferências.

O Cristóvão de Moura foi o primeiro blogue a dar-me troco. O seu autor tem um talento natural para estimular a polémica, qualidade que muito prezo neste país de gente sonsa. Agora está calado há um mês e meio, e confesso que sinto a falta.

Outro blogue onde encontro muita matéria para reflexão, em quantidade e qualidade, é o País Relativo. Daí o link.

Finalmente, A Oeste é um blogue que me interessou à primeira vista, já há uns meses. Mantive-o sob observação durante uns tempos, e agora criei um link permanente. Não tem nada a ver com os outros: não trata de política, lida principalmente com assuntos intemporais, o autor escreve (bem) sobre temas culturais do seu interesse, sempre num tom muito pessoal, que eu acho cativante.

É claro que há muitos outros blogues de que eu gosto, mas desses irei falando sempre que se proporcionar.

Violação ou talvez não

Talvez seja altura de esclarecer que, ao contrário do que diariamente se diz nos nossos media, não é verdade que a Alemanha, a França ou Portugal tenham violado o Pacto de Estabilidade e Crescimento (curioso como normalmente esta última palavra é esquecida...).

Fui recentemente informado de que o que o texto do Pacto diz é que o déficite orçamental não deve ultrapassar 3% do PIB «excepto se ocorrerem circunstâncias excepcionais». Ora, ao contrário do governo português, os governos alemão e francês argumentam, com toda a lógica, que a actual recessão deve ser considerada uma circunstância excepcional.

O governo português prefere calar-se pela excelente razão de que a sua natureza é ser feroz com os fracos e manso perante os poderosos. Além disso, se desaparecesse o papão do déficite, deixaria praticamente de ter assunto de conversa.

Desinformação e xenofobia

Recebi de uma leitora, Nina Basílio, o seguinte email que a seguir transcrevo com a sua autorização. Este depoimento parece-me ser especialmente relevante por apontar exemplos concretos de como uma informação de péssima qualidade é utilizada para alimenta preconceitos estúpidos entre o público telespectador.

Chamo a atenção para a atitude xenófoba que persistentemente se insinua por detrás de toda a ignorância patenteada pelas «notícias» referidas. Nunca me cansarei de repetir que a nossa televisão é uma área de catástrofe a exigir uma atenção séria.

Caro João Castro:

A propósito de sua indignação com os telejornais portugueses e seus comentaristas, não é nada de espantar, visto que os seguintes factos são rotina:

Se os erros jornalísticos são comuns em qualquer parte do mundo, o que dizer do caso português, em que as notícias falsas constantemente divulgadas (mais do que o razoável) pelos canais de televisão NUNCA merecem a obrigatória (em
qualquer país civilizado) errata? Pior ainda, em uma espécie de histeria colectiva, comenta-se o jornalismo praticado no país, como se existisse jornalismo em Portugal (veja o blog Guerra e Pas) - na verdade, existe, mas
somente porque os artigos de opinião são considerados um género jornalístico. Pois em Portugal, em geral, não se tem ideia de como se produz uma notícia, antes julga-se que basta seguir o exemplo da coscuvilheira da aldeia: passa-se adiante o que se ouviu dizer, ou o que foi "soprado" aos
jornalistas por interesses óbvios, sem que haja a preocupação de apurar a VERACIDADE da informação. A esse respeito, tenho uma longuísssima lista de exemplos. No entanto, fico-me pelos exemplos de notícias falsas veiculadas por canais de televisão, um deles dito “jornalístico”, que nunca mereceram o obrigatório “erramos, pedimos desculpas”.

1. Sic Notícias, 5 de outubro de 2003: o boletim informativo das 10h00 dá destaque ao desaparecimento de uma avioneta, no Brasil, "que transportava o presidente do partido do presidente Lula da Silva" (percebe-se finalmente
porque a Sic e a Sic Notícias, nas últimas eleições presidenciais brasileiras, referiam-se a Lula como o "candidato populista do partido trabalhista brasileiro" - não era uma questão interpretativa, mas mero erro factual, e se nós percebíamos "partido trabalhista brasileiro" desse modo, em minúsculas, o locutor lia-o em maiúsculas). A verdade é que o dirigente desaparecido, José Martinez, era membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), populista e de direita, que nada tem a ver com o Partido dos
Trabalhadores (PT) do presidente Lula da Silva. O espantoso é que a Sic Notícias continuou a veicular a notícia com destaque, a abrir, com a voz alarmada do pivot, os seus boletins de hora em hora, até ao noticiário das 14h00, quando decidi ligar à redacção para evitar que mais brasileiros telefonassem ao Brasil para obter notícias adicionais sobre a morte da conhecidísssima figura, e gastassem assim inutilmente seu dinheiro. No noticiário seguinte, a falsa informação sumiu sem deixar rastos...

2. Dia 12/10/2003, 14h25: na Sic Notícias, os conflitos na Bolívia transformam-se em uma "guerra do petróleo" (sic). Enquanto são mostradas imagens de bombas de gasolina (???!!!), a voz off do locutor esclarece que o país está em guerra civil porque populares e oposição discordam da decisão governamental de "exportar petróleo" (sic, sic, sic) para os EUA via Chile. Estaria tudo muito bem, não fosse o facto de a Bolívia não possuir petróleo algum (quiseram os bolivianos...) Mais uma vez, a realidade conspira contra a Sic, que reaje fazendo simplesmente "sumir" a notícia, após novo telefonema de minha parte.

3. No dia 27/06/2003, o Jornal Nacional da TVI, em reportagem sobre o desemprego no Rio de Janeiro, afirmou, com a devida voz alarmada do repórter-correspondente, no estilo "jornalismo aos gritos" da TVI, que "a inflação no país está descontrolada". Ora, naquele mês, o Brasil entrava no segundo mês consecutivo de deflação -- além do que, a inflação no país está controlada desde 1994! Telefonei à TVI e fui atendida com escárnio (tal como
foi desdenhoso o atendimento da Sic Notícias, acrescente-se), e nem sinal de errata, como é óbvio.

4. Na primeira semana de Julho, a visita do presidente Lula da Silva foi o mote para mais uma festa da histeria colectiva do jornalismo português: segundo o telejornal da noite da SIC, “Portugal é o 3º maior investidor estrangeiro no Brasil”; no mesmo dia, de acordo com a TVI, “é o 2º”. Quem mais se aproximou da verdade foi o jornal Público, no dia seguinte, que colocou Portugal em 6º lugar (a confusão de alhos com bugalhos é evidente - IDE etc. -, mas nem isso justifica a dança dos números).

5. Na primeira semana de Outubro, o Jornal da Noite da Sic veiculou a "notícia" de uma passeata realizada no Rio de Janeiro e organizada por actores da Rede Globo, contra o porte de armas por civis. No entanto, na notícia da Sic, a passeata transformou-se em uma “inédita” manifestação da
sociedade civil brasileira contra a violência urbana. Citando as palavras da pivot do telejornal: "é curioso que uma sociedade violenta como a brasileira necessite de uma telenovela para acordar para os problemas da criminalidade
urbana". Assim, no mundo da fantasia dos telejornais portugueses, a sociedade civil mais organizada do mundo (o juízo é da inspectora de direitos humanos da ONU, Asma Jaranhir, que esteve no início de outubro no Brasil a investigar grupos de extermínio), só se manifesta após a realidade ser mostrada em uma novela da Globo. Somente os repórteres da Sic não sabem que já houve centenas (SIM, JÁ CHEGAMOS ÀS CENTENAS) de manifestações da sociedade civil brasileira contra a violência no Rio de Janeiro e em todo o país, e há dezenas de ONGs dedicadas ao tema, a mais famosa das quais a Viva Rio, composta por moradores da Zona Sul carioca, a qual, aliás, ao lado de muitas outras ONGs cariocas, manifestara-se recentemente (na imprensa, em manifestações de rua) contra a exploração da criminalidade carioca em telenovelas da Globo. A passeata dos actores da Globo foi uma reacção à Viva Rio.

6. Hoje, 20/10/2003, às 10h45, a Sic Notícias que transmite uma discussão, no âmbito do programa Opinião Pública, sobre a legalização de imigrantes brasileiros. Questionando a justiça do tratado bilateral que deu origem à legalização, o jornalista da Sic afirma que, se o Brasil é o país que mais tem imigrantes em Portugal, o contrário não é verdadeiro, pois Portugal não é o país que mais tem imigrantes no Brasil, afirmação que é corroborada por
um alto funcionário do SEF presente no progrma. Ora, PORTUGAL É SIM, DE LONGE, O PAÍS QUE MAIS IMIGRANTES TEM NO BRASIL: 1 MILHÃO (ISSO MESMO, 1 MILHÃO DE IMIGRANTES, E NÃO LUSO-DESCENDENTES), MUITOS DELES ILEGAIS, PRINCIPALMENTE NO NORDESTE BRASILEIRO. Aliás, minutos antes, o mesmo jornalista afirmara não haver portugueses ilegais no Brasil, outro disparate com que também concordou prontamente o funcionário do SEF. Telefonei à Sic,
o mesmo escárnio, enviei e-mail, não foi veiculado, e o programa terminou, claro está, sem nenhuma rectificação à falsa informação apresentada.

Os demais e extensos capítulos do anedótico jornalismo que se faz em Portugal (incluindo os jornais e revistas) serão por mim divulgados brevemente, em blog próprio se houver paciência para tal, ou em outros blogs. Fazer uma queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social também passou-me pela cabeça, mas como já tive a minha dose de escárnio e risinhos, é possível que não o faça.

Cumprimentos, parabéns pelo seu blog

Nina Basílio


20.10.03

Retaliação

Em sinal de protesto contra as declarações do Pacheco Pereira ontem na SIC, decidi cortar relações com o Abrupto eliminando-o dos meus links.

Esta medida é temporária e poderá ser suspensa por um gesto simpático vindo daquelas bandas.

(Atenção, PP: isto é suposto ser uma piada!)

Blame the victim. Talvez seja ingenuidade minha, mas confesso que fiquei chocado com a intervenção de ontem do Pacheco Pereira no seu mano a mano dominical com o Professor Marcello. Equilíbrio, moderação, bom senso? Isso é bom para os outros!

O essencial sobre isto foi escrito pelo Ivan.
Não percebo. Luís Delgado e António José Teixeira concordaram ontem na SIC Noticias em dois pontos:

1. Ferro Rodrigues está a ser vítima de uma campanha ignóbil.

2. Ferro Rodrigues deve demitir-se porque não tem condições políticas para continuar à frente do PS

Ouço, e não e acredito. Qualquer pessoa, independentemente da sua orientação política deve pedir (ou exigir) a Ferro Rodrigues que não ceda à chantagem, porque essa é, e neste momento, a única forma de travar o passo à guerra suja que mina o nosso sistema político.

19.10.03



O método de produção de uma pintura de Jackson Pollock era frenético, caótico, agressivo, produto de milhares de pequenos acidentes de resultado final imprevisível. Ele não tratava a tela com meiguice, deitava-a sobre o chão e despejava sobre ela tinta de forma razoavelmente arbitrária, numa relação física de confronto corporal e espiritual com ela.

O resultado final, porém, transmite uma certa serenidade, sobretudo quando contemplado à distância, como se acima dos intrincados labirintos parcelares e sobrepostos traçados sobre a tela pairasse algo de mais poderoso, como se o sublime emergisse misteriosamente do sofrimento.

Uma metáfora talvez adequada para os tempos que correm. Mas para a compreender é preciso treinar o olhar.

18.10.03

Não acredito em conspirações; mas que as há, há. A minha vontade de me pronunciar sobre o tema da pedofilia é menos que nula, porque eu interesso-me por política, não por politiquice.

Mas há alturas em que o silêncio só pode significar cobardia, e este é um deles. Como, ainda por cima, não tenho nem nunca tive qualquer relação com o PS, nem conheço o Paulo Pedroso de lado nenhum, talvez sejam mesmo pessoas como eu que devem falar.

Assistimos no final desta semana a mais uma divulgação cirúrgica de segredos de justiça, ao mesmo tempo que era divulgado com grande fanfarra pelo DN o texto de mais um acórdão da Relação de Lisboa. Quanto a este último, recomendo a toda a gente que o leia, chamando especialmente a atenção para a linguagem raivosa de comício da extrema-direita em que está escrito, a lembrar o partido do Manuel Monteiro no seu pior. Já que criticaram tanto o estilo da Ana Gomes, roam agora este osso: cá fico à espera de ouvir as opiniões dos nossos sábios de serviço.

Francamente, não creio que sejam precisos grandes comentários, porque os factos em si são altamente reveladores. É cada vez mais evidente que há uma guerra declarada de uma parte do aparelho judicial contra o PS, e a ninguém é legítimo continuar a ignorá-lo. Como eu previ, o apelo de Barroso à despolitização da justiça era só fumaça.

Quanto ao resto, continuamos a aguardar os resultados dos inquéritos à fuga de segredos de justiça ordenados à meses pelo Procurador-Geral da República. Se não sabem como fazer para identificar os responsáveis pela difusão de informações classificadas, recomendo ao senhor Procurador a leitura de The Company: A novel of the CIA, porque lá explica-se como é que é. O livro é barato (deve caber no orçamento) e, além do mais, entretem.

PS-É cada vez mais evidente o papel do DN na divulgação de informações sobre este processo nos momentos mais propícios para a acusação. Recomendo também a leitura atenta dos editoriais do Director-Adjunto António Ribeiro Ferreira, porque normalmente prenunciam o que vem a seguir.

17.10.03



A arte de Morandi parece passar completamente ao lado do nosso tempo. Mas a verdade é que ele inventou uma outra forma de ser contemporâneo.

16.10.03

Não se paga, não se paga! Imaginemos que um sujeito tem um carro com um motor de baixo rendimento e diz assim: «Vou meter-lhe menos gasolina para ver se ele anda melhor». Ou, pior ainda: «Vou antes meter-lhe gasóleo, para ver se ele aprende». Surpresa das surpresas: no primeiro caso, o carro anda menos quilómetros do que antes. No segundo, fica logo parado no meio da estrada.

O que este exemplo pretende sugerir é que o aumento da eficiência do sistema educativo não se resolve dando menos dinheiro para a educação. Por isso, quando António Barreto diz que não se deve dar mais dinheiro para a educação porque não vale a pena subsidiar a inércia e a preguiça, está a proferir uma tolice disfarçada de sabedoria. Em boa lógica, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Enquanto a eficiência do sistema não melhorar (e não se vê como há-de melhorar só porque sim) atribuir-lhe menos dinheiro só pode conduzir a uma degradação da qualidade do ensino. Se houvesse um plano para melhorar a qualidade do ensino, as coisas seriam diferentes, mas eu não vejo que este governo tenha qualquer plano.

Mas ainda há outro problema: se houvesse um plano, ele custaria certamente dinheiro. É uma chatice, mas é verdade: se uma empresa (ou uma instituição) tem baixos níveis de qualidade e de produtividade, terá forçosamente que investir em instalações, em equipamentos, em formação, e por aí fora.

O que está em causa não é não investir, mas investir bem, ou investir melhor. Os que argumentam que nos últimos anos já se investiu muito em educação não percebem que, tendo em conta o atraso do país nesta matéria, teremos que investir muito mais que os outros durante muitos anos se quisermos apanhá-los. Lembrem-se sempre de que só agora atingimos as taxas de alfabetização que os países escandinavos alcançaram no final do século dezanove. Já há cem anos a nossa impagável classe dirigente achava que não valia a pena gastar mais com a educação. Mudam-se os tempos, mas a estúpida cegueira permanece.

Esta palavra de ordem («não se paga, não se paga») altamente popular entre os políticos de direita, em que Barreto gostosamente se inclui para ser popular nos meios que frequenta, é só uma forma demagógica de acariciar o egoismo espontâneo das massas ignaras que acreditam que o mundo ficaria melhor se ninguém pagasse impostos.

A propósito de prostituição. Arnaut, o meu ministro favorito, teve agora esta fantástica ideia de mandar cancelar a publicidade na Time ao Euro 2004 em sinal de desagrado por causa de uma reportagem que mencionava o crescimento da prostituição em Bragança.

Passadas algumas horas, a decisão já era suspender e não cancelar as inserções, provavelmente porque os ministros portugueses não têm o poder de alterar por despacho as leis americanas que regulam os contratos entre os anunciantes e os media.

Decorridas menos de 24 horas sobre a declaração inicial de Arnaut, somos informados de que afinal o que se cancelou foi a suspensão, porque o director da Time escreveu uma carta a pedir desculpas ao Governo português.

Não é por nada, mas acho que devíamos exigir ver a carta, já que não pudémos examinar as provas de que o Iraque tinha armas de destruição massiva.

Em si mesma, a atitude do ministro reflecte uma inqualificável saloice. Mas, pior ainda, revela que, na ideia dele, o facto de o Governo colocar publicidade numa revista dá-lhe o direito de controlar o seu conteúdo.

Notícias favoráveis em troca de anúncios? Quem diria!


15.10.03




Marketing politico. Nicolas Rolin, representado nesta pintura de Van Eyck numa atitude de veneração à Virgem, dedicou quase sessenta anos (dos oitenta e um que teve de vida) ao serviço dos Duques da Borgonha. Durante os primeiros vinte foi seu conselheiro legal, sendo em seguida promovido a chanceler, uma espécie de superministro que acumulava as funções de ministro das finanças, ministro da administração interna e ministro dos negócios estrangeiros.

O seu senhor Filipe o Bom, Duque da Borgonha e Grão-Duque de Occident, embora nominalmente vassalo de Carlos VII, Rei de França, era de facto muito mais rico e poderoso do que ele.

Rolin, oriundo de uma família modesta de Autun, conseguiu usar o seu poder para acumular uma considerável fortuna. Era considerado um homem enérgico, autoritário e implacável. Os seus inimigos denunciavam os seus métodos políticos e criticavam-no por se ter aproveitado dos cargos que ocupava para enriquecer.

Como muitos outros novos ricos, Rolin compreendeu que o prestígio da arte pode ajudar a nobilitar uma carreira recheada de espisódios pouco dignificantes. Contratou então o grande pintor Van Eyck para executar esta homenagem à Virgem.

É no entanto evidente que a homenagem à Virgem é também uma homenagem ao próprio Rolin. Apesar da atitude de recolhimento adoptada pelo chanceler, o facto de ele se exibir no mesmo plano que a Mãe de Deus não deixa de exprimir uma certa ousadia. Na pintura medieval era normal a dimensão das personagens representadas depender da sua importância. Aqui, porém, insinua-se de uma relação de alguma igualdade entre as duas figuras representadas, envergando as suas melhores vestes, num ambiente muito palaciano e pouco divino.

Esta pintura encerra uma variedade de significados para os contemporâneos que eram chamados a contemplá-la. Uma parte desses significados são marcadamente políticos. Em primeiro lugar, trata-se de uma manifestação óbvia de poder, desde logo porque não era qualquer um que podia dar-se ao luxo de contratar um dos melhores pintores da época, mas também pelo facto de o quadro figurar a Virgem admitindo no seu convívio o chanceler. Em segundo lugar, há uma sugestão de intimidade que visa insinuar uma comunhão de propósitos: Rolin está ao serviço de Deus através da sua Mãe, de quem recebe directamente inspiração e ordens. Pretende-se assim legitimar a actuação política do ministro do Duque.

Esta obra de arte é também, por conseguinte, uma peça de marketing político com mais de seis séculos de existência, uma constatação talvez chocante para uma época como a nossa que às vezes parece julgar ter inventado tudo o que hoje existe.

Naturalmente, hoje em dia nenhum político teria o descaramento de procurar comprometer directamente Nossa Senhora com o programa do seu partido, porque isso cairia muito mal no eleitorado. O que prova que, afinal, sempre há algum progresso na história da humanidade.