30.5.05

Caridade cristã

Os impagáveis escritos de João Carlos Espada explicados, com inexcedíveis boas maneiras, peloIvan.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se

Estes tipos criaram um blogue praticamente auto-suficiente. Só entre eles, sem necessitarem de provocação externa, eles armam as polémicas, partem a louça, varrem os cacos e depois recomeçam.

Vão lá ler os últimos debates a propósito de Guantanamo e da educação sexual, que vale a pena.

Se houvesse mais meia dúzia de bloges asssim, viveriamos num país bem diferente.

Tempos perigosos

O populismo vem de onde menos se espera. E, ainda por cima, com assinatura colectiva.

Afinal, a democracia representativa é boa ou má conforme as circunstâncias?

É esta falta de princípios que está a tornar perigosos os tempos que correm.



Michael Borremans: Replacement, 2004.

De quem foi a culpa?

Um homem caiu num poço no Sul da China, numa aldeia da província de Guangdong, quando estava a instalar uma bomba de água. Um familiar saltou lá para dentro para tentar salvá-lo, sem sucesso, e não conseguiu regressar. Quatro outros homens seguiram-lhe o exemplo, saltando para dentro do poço, um a seguir ao outro, tentando salvar os familiares. Em vão: todos se afogaram.

Aguardam-se as conclusões do relatório da Comissão Constâncio.

Com toda a lógica

O não francês tem toda a lógica. Afinal, com o novo arranjo institucional, a França deixaria, pela primeira vez desde a criação da CEE, de poder comandar a Europa a seu bel-prazer.

Outra questão é saber-se como lá se chegou, ou seja, que pulsões foram activadas para, com argumentos mais ou menos especiosos, se ter conseguido congregar numa mesma frente eleitoral não só estalinistas impenitentes e fascistas reciclados, como ainda numerosos cidadãos bem pensantes que usualmente votam ao centro, à esquerda e também um bocadinho à direita.

As grandes cidades e as regiões mais desenvolvidas votaram sim, as zonas rurais votaram não. Isto não vos faz lembrar um bocadinho as últimas eleições presidenciais americanas? Mais um país refém dos leftovers do progresso.

E agora?

Agora, é preciso saber primeiro o que vai suceder na 4ª feira na Holanda. Se a França ficar isolada, a França tem um problema. Se outros países europeus seguirem o mesmo caminho, a Europa tem um problema.

Por mim, prefiro a primeira alternativa.

26.5.05

Intoxicação televisiva

FNV tem em parte razão no que diz neste post: a televisão é parte do país, não um factor que o determina a partir do exterior. Por outro lado, é verdade que são exageradas as opiniões daqueles que entendem que as pessoas absorvem de forma acrítica aquilo que vêem e ouvem na caixinha das imagens.

Mas esta linha de argumentação só é válida a até certo ponto. O problema crucial é que, no que respeita à televisão generalista de sinal aberto, não existe um verdadeiro mercado, ou por outra, existe um mercado mal formado, dado que a programação é paga pelos anunciantes e não pelos telespectadores.

Dir-se-é que isso vem a dar no mesmo, mas a análise económica prova que não. Quando o público não paga a programação, há uma tendência inexorável, que não ocorre noutros mercados livres em que se transaccionam bens culturais (os dos jornais e revistas, dos livros ou da música, por exemplo) para o alinhamento por baixo, o que conduz a uma contínua degradação da qualidade das emissões.

O que isso significa é que existe um bom argumento, assente na teoria económica, a favor da intervenção estatal na tv no sentido de impor padrões mínimos de qualidade.

O excesso e o desvario da cobertura futebolística parece-me ser uma situação a exigir uma pronta intervenção. Esquivo-me de momento a dizer qual deverá ela ser, porque também eu tenho direito ao feriado.



Just do it

Sócrates saiu-se relativamente bem no seu número de machismo orçamental, um género actualmente muito em voga.

Diz-se, e é verdade, que ele prometera claramente não aumentar os impostos, e que essa afirmação imprudente lhe custará agora uma parte da credibilidade arduamente conquistada. Diz-se também, e não é menos verdade, que o seu governo passou os dois primeiros meses a anunciar novas e injustificadas despesas: a abertura de três delegações do IAPMEI em Espanha (note-se que o IAPMEI nunca teve até agora delegações no estrangeiro); a demagógica nacionalização da Bombardier; e, last but not least, a compra da Varig pela TAP.

Mas o mais preocupante não é isso. O que Sócrates ontem anunciou é a parte fácil. O difícil é pôr a administração pública a funcionar eficientemente, condição indispensável para que as despesas agora cortadas não reapareçam noutro local.

E o problema é que a péssima qualidade média das nomeações até agora feitas pelo governo para altos cargos do sector público não augura nada de bom.

Se as chefias se revelarem incompetentes, quem irá conduzir o processo de racionalização da máquina administrativa?

Não tarda muito, vamos vê-los a chamar pela McKinsey, pela Accenture ou pela Roland Berger. E esse será o sinal indesmentivel de que não sabem o que fazer.

Estejam atentos.

25.5.05

Ó mãe, o que é que aquelas duas senhoras estão a fazer?

Educação sexual no Quase em português.

João Miranda adere ao despesismo

Que se lixe, é só uma décima a mais ou a menos.

Uma indústria de sucesso

Não há dúvida. Continua em alta a procura de políticos portugueses para cargos internacionais: depois de Vitorino e Barroso, é agora a vez de Guterres.

Concordo com a Teresa de Sousa: o que isto prova é que é mais fácil desempenhar esses cargos do que governar Portugal.

Com um pouco de jeitinho, talvez até se consiga arranjar algures ocupação útil para o Santana. Nem que seja como primeiro-ministro do Cazaquistão.

A acompanhar atentamente

A sequência As Mulheres do Mal.

24.5.05

Ricoeur



Devo ao Michel a graça de ter chamado a minha atenção para este homem que conseguiu aliar de forma ímpar uma extraordinária abertura de espírito a uma não menos tenaz fidelidade às suas raízes culturais e religiosas.

Défice de entendimento

Para os economistas, a despesa pública é uma variável independente que pode ser manipulada a seu bel-prazer. Se há um problema de desequilíbrio das despesas públicas, corta-se a despesa pública, e pronto.

Não parece passar-lhes pela cabeça que a despesa pública é uma consequência de outros fenómenos económico-sociais. Por exemplo, se as pessoas se aglomerarem em cidades, é preciso investir em transportes públicos. Se a especulação imobiliária originar cidades disfuncionais, os transportes públicos vão ser menos eficientes e, logo, mais caros. Se as mães trabalharem fora de casa, terá que ser criada uma rede de ensino pré-escolar. Se, para tornar mais atraentes as empresas privatizadas, o Estado facilitar as pré-reformas, a factura das pensões vai aumentar. Se aumentar o número de trabalhadores imigrantes, as escolas vão ter mais dificuldade em educar crianças que nem sequer sabem falar português.

Dir-se-á que isso é verdade, mas que, para além disso, no Estado também há muito desperdício (e inclusive corrupção) e que, aí, haverá muita margem para reduzir despesas.

Sem dúvida que sim. Porém, na administração como em qualquer outro sistema de produção de bens ou serviços, a taxa de desperdício (de que a corrupção é uma parte) é um elemento intrínseco ao sistema. Isso não quer dizer que não possa ser reduzido. Quer apenas dizer que o problema não se resolve cortando nas despesas a torto e a direito, mas sim implantando métodos de trabalho mais eficazes e eficientes.

Aqui chegamos ao ponto crucial. Se nos limitarmos a cortar custos, a qualidade dos serviços baixará e os custos aumentarão. Se nos preocuparmos em melhorar a qualidade e a eficiência da administração pública, serão precisas menos pessoas para fazerem o mesmo trabalho e os custos terão forçosamente que baixar.

Em síntese, três conclusões:

a) Este problema não se resolve com «reformas estruturais» - uma ficção tão irrealista como o unicórnio - mas com pequenas reformas continuadas e persistentes.
b) Isto exige conhecimento específico das situações, demora muito tempo, dá muito trabalho e tem de ser feito no essencial pelos profissionais de cada ofício.
c) Os economistas não têm, de facto, a mínima ideia do que é e como se faz a reforma da administração pública.

Nada de novo na frente empresarial

Como é óbvio, o défice em percentagem do PIB é uma relação entre duas grandezas: o défice e o PIB.

Logo, se o défice em percentagem do PIB é elevado, isso pode resultar de o défice ser alto, do PIB ser alto, ou das duas coisas ao mesmo tempo.

É curioso notar que 95% da discussão pública se centra na questão do défice. Apenas os restantes 5% (estarei a pecar por excesso?) visam sobre o outro termo da questão.

Mas o problema de fundo da nossa economia é que temos relativamente poucas empresas apetrechadas para responder capazmente ao actual ambiente competitivo internacional.

Num país normal, seria de esperar que as publicações especializadas em economia e negócios estivessem cheias de artigos sugerindo formas de melhorarmos o nosso desempenho relativo.

Em vez disso, os dirigentes empresariais e associativos, quando vêm a público, é para se pronunciarem sobre os impostos e a reforma da administração pública.

Recordo que, em meados dos anos 80, quando as empresas americanas levaram uma sova da concorrência japonesa, os sinos tocaram a rebate. Individual ou colectivamente, as empresas americanas identificaram rapidamente as áreas em que necessitavam de melhorar rapidamente para fazer face ao desafio.

Realizaram-se estudos rigorosos, organizaram-se seminários para debater os problemas centrais, publicaram-se centenas de livros e milhares de artigos divulgando as boas práticas e propondo vias de progresso.

A gente assistia àquela efervescência e percebia que, dentro de pouco tempo, o problema estaria resolvido.

Nada disso se constata ainda entre nós.

E que tal se abordássemos de frente as nossas debilidades, se estudássemos os numerosos casos semi-clandestinos de sucesso empresarial, se aprendessemos com eles e se desencadeássemos iniciativas que permitissem multiplicá-los?

Um portista

Nascido no Porto, mas exilado em Lisboa desde que completei duas semanas de idade, eu poderia de facto ter escolhido qualquer clube.

Mas ser o único portista em toda parte onde me encontrava era de um chique irresistível.

Essa experiência educou-me nas delícias da diferença e habituou-me a gostar de estar em minoria.

Aquilo que agrada tanto a muitos benfiquistas - o facto de serem muitos, o argumento do número, a dissolução numa massa anónima de milhões - é precisamente o que me afasta dessa como de outras uniões nacionais.

Ganhar ou perder não era determinante para mim. Mas eis que, algo inesperadamente, o Porto iniciou há um quarto de século a sua caminhada irresistível para a hegemonia no futebol nacional.

Foi um bónus extra para o qual não me encontrava preparado. Mas foi outra razão para reforçar a minha dedicação ao clube, na medida em que os seus triunfos provavam que, com inteligência e esforço, David pode vencer Golias.

Os anos passaram, e o Porto começou a ganhar demais. A presente época, com o infindável cortejo de decisões erradas, o negocismo infrene e, sobretudo, a falta de respeito pelos jogadores e pelos treinadores, mostrou que, infelizmente, o Porto está a aprender com o Benfica.

É claro que eu ficaria mais contente se o Porto tivesse ganho o campeonato - o que, no campo estritamente desportivo, até talvez fosse justo - mas tenho que reconhecer que, se isso tivesse sucedido, o vício teria sido premiado e a virtude e a competência escarnecidos.

Campeõezinhos são os que perderam

Lamento muito, mas não apoio este comentário do PC.

Em primeiro lugar, não é bonito apoucar os feitos dos adversários.

Em segundo lugar, quer queiramos quer não, este foi de facto um dos campeonatos mais intensamente disputados dos últimos anos, e é isso que, antes de tudo, entusiasma os adeptos.

Em terceiro lugar, é asneira pretender que o campeonato foi nivelado por baixo. O único critério objectivo de valorização relativa da nossa Liga é o desempenho internacional dos nossos clubes. Ora o Sporting chegou à final da Taça UEFA, e o Porto eliminou da Liga dos Campeões os vencedores da Taça UEFA. Até o Benfica esteve um bocadinho melhor do que é costume. Em consequência, o país subiu no ranking da mesma UEFA.

Em quarto lugar, assistimos a excelentes jogos de futebol, alguns inclusivamente protagonizados por clubes como o Beira-Mar e o Moreirense que, apesar disso, desceram de divisão.

É claro que há gente que, como de facto não gosta de futebol, acha os jogos sempre maus. Cá por mim, tendo a errar mais para o outro lado.

20.5.05

Assim já durmo mais descansado

Teológos católicos e anglicanos reuniram-se para procurar pôr cobro às divergências doutrinais em torno da Virgem Maria que há cinco séculos dividem as duas igrejas.

No texto «Maria: A Graça e a Esperança em Cristo», ontem publicado ao fim de seis anos de negociações, resolve-se definitivamente a polémica em torno do dogma católico da Imaculada Conceição com a seguinte frase: «o trabalho de redenção de Cristo remonta até ao mais profundo do ser de Maria e às suas primeiras origens».

Por outro lado, a Assunção, que afirma a subida ao céu de Maria em corpo e alma após a sua vida terrena, passa a ser encarada como a convicção de que Deus «tomou a totalidade» da pessoa da mãe de Jesus «na sua Glória», e que isso é «conforme às Escrituras».

É claro que, se tivessem encontrado estas argutas formulações uns séculos mais cedo, sempre se teriam evitado umas quantas mortes.

Seja como for, é reconfortante saber-se que, neste século de niilismo, ainda há pessoas que dedicam as suas vidas a problemas verdadeiramente importantes.

É só um pensamento

Estou perfeitamente disposto a acreditar que Nobre Guedes, Telmo Correia e Abel Pinheiro são pessoas sérias.

Agora imaginem o que eles fariam se o não fossem.

19.5.05

O direito à felicidade

Cá em casa, há muitos anos, aconteceu a mesma coisa.

Mas, como eu sou um bom pai, não me importei e dei-lhe as boas vindas à família dos dragões.

CSKA – 3; Bach – 1

Ainda no período de aquecimento pus a tocar a cantata «Ein feste Burg ist unser Gott» (O nosso Deus é uma poderosa fortaleza) BWV 80, e foi ao som desse tema exaltante que o árbitro apitou para o inicio da final da Taça UEFA.

Não sei se terá sido por influência do Bach, mas as coisas começaram bem. Nós sempre em cima deles, sem lhes permitir respirar, até que, em cima da meia hora, o júbilo atingiu o ponto mais alto: «Jauchzett Gott in allen Landen!» (Louvai Deus em todos os lugares) BWV 51.

O último quarto de hora da primeira parte já não correu tão bem. Em vez de aproveitar o desacerto do adversário para desferir a estocada fatal, a equipa começou a jogar bonitinho, com sucessivos toques de habilidade que animaram o público, mas também o CSKA. Se o Love não tivesse calçado as botas trocadas, a coisa poderia ter azedado logo na primeira parte.

Recomeça a partida, e logo se percebe que isto já é outro filme. O jogo de equipa foi-se esboroando a pouco e pouco, e a fragilidade física tornou-se evidente. Os do CSKA jogavam e corriam, os de verde assistiam. «Actus tragicus» (não precisa de tradução), está bom de ver, aos 57 minutos de jogo.

E a sensação de que o pior ainda estava por vir.

Mudei para «Wachet auf, ruft uns die Stimme» (Acordai, disse-nos a Voz) BWV 140, a equipa reagiu, juntou todas as suas forças, e há àquela jogada em que não se entende se o Rogério falha o golo ou evita o golo.

Como diria Dostoievski, quem não marca arrisca-se a sofrer. «Ich habe genug» (Estou farto) BWV 82, canta o Concentus Musicus Wien sob a direcção de Harnoncourt. E eu também.

Chega por último a hora da resignação: «Weinen, klagen» (Lágrimas e suspiros) BWV 12, de enrolar as bandeiras e as faixas, de enxugar as lágrimas dos miúdos e de explicar às mulheres que estranham a derrota dos campeões que no ano passado não foi o Sporting, foi o Porto quem ganhou a final.

Está visto que o Bach não funciona. No domingo vou antes experimentar o Wagner.

18.5.05



Michael Borremans: Mangas, 2003.

O Estado não tem dinheiro...

O Estado não tem dinheiro, mas a TAP, que é do Estado e dá prejuizo, quer comprar a Varig, que por sua vez exibe um passivo astronómico...

As contas dos outros

Em menos de 10 anos, a taxa de endividamento das famílias portuguesas aumentou de 40% para quase 120% do rendimento disponível.

Vejo três explicações para este extraordinário fenómeno:

1. As famílias são estúpidas, pelo que continuam a contrair novas dívidas apesar das más perspectivas conjunturais.

2. O rendimento disponível das famílias está a ser grosseiramente sub-avaliado.

3. As famílias dispõem de reservas de capital que lhes garantem um rendimento permanente muito mais elevado do que comumente se supõe.

Não sendo minha intenção subestimar a estupidez de muita gente, facto de que todos os dias tenho provas irrefutáveis, creio que a explicação se encontra mais nas hipóteses 2 e 3. Vocês não conhecem aqueles funcionários remediados que vendem um eucaliptal herdado de um tio lá da terra para comprar um BMW?

Uma das coisas que a actual crise económica tem vindo a revelar de forma sistemática é a genérica infiabilidade das estatísticas nacionais.

Se o Estado não é capaz de fazer as suas próprias contas, como se prova pela novela da avaliação do défice, como esperar que saiba o que se passa com as dos particulares?

Se a Rititi não existisse, teria que ser inventada

Uma revolução ignorada



Em 1967 eclodiu no Liceu Camões uma revolução nietzschista de que não rezam as crónicas.

Tudo começou quando o Rui, inspirado pela leitura do Zaratustra, apresentou na aula de Filosofia o seu novo Evangelho.

Proibido de pregar na aula, decidiu anunciar a boa nova no recreio. A horda de discípulos cresceu desde então de dia para dia, impedindo todas as tentativas de silenciar o Mestre.

Conquistado o direito à palavra, as massas decidiram passar aos actos. Não estavam em causa reivindicações sindicais mesquinhas. A única e exclusiva reivindicação era a própria liberdade.

Multidões entusiásticas quebraram uma após outra as inúmeras proibições vigentes, correndo em locais onde era proibido correr, subindo escadas por onde só era permitido descer ou descendo escadas por onde só era permitido subir, atravessando corredores reservados aos professores, libertando os submissos pescoços das gravatas de porte obrigatório e cometendo outras inocências do género.

As ameaças de faltas de castigo e suspensões revelaram-se impotentes para travar o movimento. Chegou a hora de o poder instituído enveredar pela via das cedências.

Foi permitido passar música dos Rolling Stones nos alti-falantes do recreio e um grupo de alunos recebeu finalmente permissão para realizar nas instalações do liceu uma exposição que incluía obras surrealistas e pintura abstracta.

O Rui era um tipo sem medo. Suponho que, por causa dele, muitos de nós se sentiram pela primeira vez envergonhados por viverem no medo, sem sequer saberem ao certo de que tinham medo. E, com isso, todos perdemos o medo.

16.5.05

«Há uma coisa que as pessoas precisam de saber»

Descobri ontem que a minha teimosia em negar-me a assistir aos debates televisivos sobre futebol me tem privado de alguns momentos de puro deleite intelectual proporcionados por essa figura ímpar dos nossos écrãs que é o sr. Rui Santos.

Este sujeito, que por certo penteia o cabelo com azeite para poupar no gel, é o mais parecido com um educador popular que eu tenho encontrado nos últimos tempos.

Para deixar bem clara essa sua vocação, ele repete continuamente que «há uma coisa que as pessoas precisam de saber».

Eis algumas das coisas que, segundo ontem o ouvi dizer, «as pessoas precisam de saber»:

1. O golo do Luisão resultou de um lance faltoso, apesar das opiniões em contrário dos especialistas em arbitragem anteriormente escutados.

2. A decisão tomada pel’A Bola de não inflamar os ânimos antes do jogo de Sábado favoreceu o Benfica.

3. O Sporting perdeu o jogo porque Dias da Cunha não foi consequente na sua luta contra o sistema, dado ter descurado o facto de que quem actualmente controla a arbitragem é o Benfica.

4. O árbitro que apitou o Guimarães-Boavista é benfiquista, e a verdade é que expulsou mal dois jogadores boavisteiros que não poderão defrontar o Benfica na última jornada.

5. João Loureiro é quem vai decidir se o Boavista vai ou não oferecer a vitória de bandeja ao Benfica.

6. O Boavista precisa que o Porto lhe ceda jogadores para a próxima época, por isso tem que se cuidar.

7. A Académica é neste momento um clube dominado pelo Porto.

Estão a ver o nível?

Quanto a mim, há, de facto, «uma coisa que as pessoas precisam de saber»: este sebento é uma besta.

E há outra coisa que «as pessoas gostariam de saber», mas provavelmente nunca saberão: que qualificações tem este cromo mal-formado, este chungueta afadistado, este pedaço de asno ordinário, para falar de futebol a milhões de telespectadores?

A invencível brigada da estupidez

Parece que, no Avante, ainda há uns tipos que, ao referirem-se aos crimes de Estaline, ainda se sentem no direito de colocar a palavra crimes entre aspas.

Foi pena que o Estaline se tivesse esquecido de colocar umas aspas nos pais deles. Mas que estou eu para aqui a dizer? Se calhar os pais nem tiveram culpa...

Ensaio de hipocrisia

Quer o campeonato seja ganho pelo Porto, quer seja ganho pelo Benfica, certo certo é que o vício será sempre premiado este ano em detrimento da virtude.

Mas são vícios de tipo diferente, pelo que, para além da mera paixão clubística, ainda pode haver algum motivo para se preferir um deles ao outro.

É claro que este comentário é um bocadinho hipócrita, agora que o Sporting disse definitivamente adeus ao título.

Mas, valha a verdade, eu nunca prometi ser imparcial.


Borremans: Vértebra, 2004.

Houve um tempo em que eu procurava na internet obras de pintores que eu já conhecia. Agora, porém, descubro com a ajuda da internet pintores geniais de quem nunca ouvira falar. O caso mais recente é este Borremans. More to come.

13.5.05

Grande Prémio 2005 do descaramento

Não é preciso esperar pelo final do ano para atribuí-lo a Dias Loureiro.

«Um longo jejum de 11 anos»

Por enquanto parece longo. Mas consolem-se, dentro de uma semana é possível que 11 anos já pareça curto...


Michael Borremans: Um de cada vez, 2003.

Nata azeda



Fiquei fascinado por uma canção passada na rádio e ouvi (ou julguei ouvir) o locutor identificá-la como pertencendo aos Cream. Dias depois dei de caras na loja com o Fresh Cream e comprei-o sem hesitar.

Chegado a casa percorri rapidamente todas as faixas, sem todavia descobrir aquela que me convencera a comprá-lo. Pior ainda, o estilo dos Cream não tinha qualquer semelhança com o da canção que eu procurava.

Superada a irritação, voltei a escutar o disco, agora com mais atenção. A pouco e pouco, o desapontamento foi sendo substituído pelo fascínio. Agradou-me instantaneamente a frescura daquele som que trazia os blues de volta para o centro do rock depois de anos de crescente mas nem sempre benvinda sofisticação.

Nessa tarde descobri Robert Johnson, a cujas gravações originais só muito mais tarde tive acesso, mas também Skip James e Howling Wolf. Para além, é claro, de Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker.

Nos anos seguintes os Cream lançaram mais 2,5 álbuns (Disraeli Gears, Wheels of Fire e Goodbye), e depois dissolveram-se.

Clapton gravou ainda um bom disco com Steve Winwood (Blind Faith), antes de se entregar de alma e coração às xaropadas por que hoje é conhecido. Jack Bruce colaborou com Carla Bley em Escalator Over the Hill, e em seguida saíu de cena. Quanto a Ginger Baker, iniciou tardiamente uma distinta carreira de jazzman.

Mas eis que, agora, alguém teve a peregrina ideia de voltar a juntar os Cream para uns quantos concertos ao vivo. Leio nos jornais que Jack Bruce está a recuperar de um transplante ao fígado, e que Ginger Baker sofre de artrite aguda. Sobre Clapton nem é bom falar, porque a doença é imaterial e não tem cura.

Quer dizer, um tipo acaricia durante décadas, com toda delicadeza que a memória consente, a recordação de alguns momentos de felicidade única, e eis que alguns desmiolados se julgam no direito de destruí-la assim, de um momento para o outro, em nome da nostalgia.

Da nostalgia, ouviram bem! Qual nostalgia, qual carapuça! A nostalgia (a verdadeira, é claro) não se alimenta de relíquias que, bem vistas as coisas, só servem para pôr em cheque a fantasia a troco de uma imprestável realidade que eu com todo o gosto me permito dispensar.

Afastem de mim esse cálice!

Quadras soltas

Primeiro, começaram com aquela coisa, um bocado suspeita, de pôr o Mário Soares e o Freitas do Amaral a organizar colectâneas de poesia.

Depois, soou o alarme quando chegou a vez dos «poemas da minha vida» de Miguel Cadilhe.

Mas o cúmulo, o absolutamente impensável, ocorreu agora (ou terei sido eu que só agora o notei?), quando vemos nada mais nada menos do que Vasco Graça Moura prestar-se a esse papel.

Poesia? Graça Moura? Que mais irão eles inventar?

Benfica treina jogadas de bola parada

Se eu fosse à família von Trap, fazia a mesma coisa. Afinal, foi assim que ganharam o último Benfica-Sporting a contar para a Taça de Portugal. Que digo eu? Afinal, foi assim que conquistaram a maior parte dos pontos conseguidos este ano na Super Liga.

Ai dos vencidos

Os poderes são cobardes. Disso não há a mínima dúvida.

Querem dar cabo do país

Como se não bastasse sermos um país pobre em recursos e em competências, ainda há quem se mostre apostado em destruir os poucos que verdadeiramente possuímos.

Alguns portugueses esfalfam-se em prol do bem público a criar riqueza, e, depois, o que é que vemos? Só inveja e ingratidão.

Se alguma coisa o país tem progredido nestes últimos trinta anos, não o deve nem à miserável indústria nem à indigente agricultura, tão-pouco ao escrufuloso turismo.

Qualquer pessoa medianamente bem informada sabe que a verdadeira criação de valor, que dá de comer a dez milhões de portugueses, resulta da competência de um punhado de ousados empreendedores para desanexar parcelas da reserva agrícola nacional, tornear processos burocráticos de inspiração comunista e dar emprego a esforçados imigrantes clandestinos.

Pôr isto em causa equivale a fazer perigar a nossa sobrevivência como povo, a atentar contra os nossos mais sagrados valores culturais, a escancarar as portas aos inimigos da Nação.

Food for thought

Mais informações sobre o World Competitiveness Report aqui.

10.5.05



Michael Borremans.

6.5.05

O direito à matemática

Não vi ninguém notar que, no célebre ranking que avalia as competências matemáticas dos estudantes portugueses do secundário em comparação com os de diversos outros países, Portugal está coladinho aos EUA.

Este simples facto basta para demonstrar que não existe nenhuma relação entre essas competências e a chamada competitividade do país.

Os americanos sabem perfeitamente que, numa perspectiva estritamente produtivista, basta perfeitamente que o povo saiba ler, escrever e contar passavelmente. O resto resolve-se com formação e treino profissional.

Quanto às elites dirigentes, essas prepararam-se ao nível universitário e, aí sim, é preciso dotar os alunos de aptidões elevadíssimas adequadas ao trabalho qualificado que irão desenvolver.

O que distingue a Finlândia e a Coreia do Sul, países que ocupam o topo da classificação, dos que ficam cá mais para baixo, como os EUA, Portugal, a Itália ou a Espanha, é que lá predomina uma cultura igualitária.

Na Finlândia, em particular, acha-se que os meninos e as meninas - todos os meninos e todas as meninas - devem ter acesso ao melhor que a sociedade humana lhes pode oferecer em todos os domínios, incluindo obviamente a matemática, mas também as artes, a música e o desporto.

Os jovens finlandeses não são só superiores aos portugueses na matemática. Eles também são melhores a falar inglês, a tocar instrumentos ou a saltar à vara.

Esta ideia, que agora estamos a querer adoptar, de que a escola serve exclusivamente para preparar as pessoas para o mundo do trabalho, é uma monstruosidade baseada na incapacidade para distinguir entre educação, ensino, formação, treino e adestramento.

Todas essas coisas são necessárias numa sociedade moderna, desde que tenham lugar no sítio próprio.

O ensino público foi criado nos países nórdicos pelos protestantes para as crianças aprenderem a ler a Bíblia, não para aprenderem um ofício. Mais tarde, os democratas impuseram o ensino obrigatório porque achavam, e bem, que quem não sabe ler, escrever e contar não pode ser um cidadão livre.

Para surpresa geral, essas reformas revelaram-se boas para a economia, embora não fosse esse o seu propósito inicial. Foi por isso que, mesmo em Portugal, onde a educação popular continua a ser considerada um fardo (vidé a política para o audiovisual), a classe dirigente lá se resignou finalmente a investir um cobres na alfabetização da plebe, sem nunca deixar de chorar-se.

Todavia, não percebe bem como isso se faz. Melhor dizendo: não percebe nada.

Quando me referi à matemática como um luxo num post de há dias, não pretendi defender que se desse menos importância à matemática. Bem pelo contrário, pois acho que o povo tem direito a certos luxos.

5.5.05

Disciplina táctica e concentração competitiva

Não foram nem uma nem duas, mas três, as pessoas que, criticando o meu post de há dias (O luxo da Matemática), chamaram a atenção para o facto de que a aprendizagem da matemática contribui decisivamente para o desenvolvimento das capacidades de raciocínio lógico.

Concordo, evidentemente.

Acredito, todavia, que há outras formas igualmente eficazes de disciplinar o pensamento. Eis algumas:

* Aprender latim

* Dividir orações dos Lusíadas

* Refutar a prova ontológica da existência de Deus de Santo Anselmo

* Jogar xadrez

* Tocar piano ou compor fugas

* Dirigir uma orquestra

* Coleccionar selos

* Organizar um herbário

* Desmontar e montar motores

* Construir maquetas de edifícios

* Resolver puzzles

* Ler romances policiais

* Aprender a contar histórias

* Analisar a composição da Última Ceia de Leonardo da Vinci

* Discutir futebol com o Mourinho

* Explicar o ateísmo a Deus

O interessante é perguntar por que é que, na superstição contempoânea, a matemática ocupa um lugar de indisputada proeminência em relação a estas e outras alternativas.

Raça

Amigos aar, aas, caterina, on, Miguel Magalhães e jpt,

Estava eu bem longe de imaginar que um tão modesto post pudesse dar origem a tanto debate.

Perguntam-me alguns de vocês que há de absurdo no artigo do Prof. Rui Pena Pires que há dias citei.

O Prof. Rui Pena Pires é, a meu ver, culpado de armar uma enorme confusão com um mero jogo de palavras. Nada disso teria a menor importância, se não se desse o caso de com isso poder contribuir para (por certo involuntariamente) ridicularizar a luta contra o racismo.

Eu explico-me. É uma rematada tolice afirmar-se, nos dias de hoje, que «as 'raças' são classificações relacionais, não são atributos essenciais e naturais dos seres humanos».

Todos sabemos, bem pelo contrário, que a raça é um atributo natural - ou, mais precisamente, genético - dos seres humanos. Coisa diferente é o valor, eventualmente negativo, que certas pessoas pretendem atribuir a esses caracteres genéticos.

A mesma genética demonstra-nos sem margem para dúvidas que os traços que distinguem as raças são absolutamente marginais, e não essenciais. Logo, a raça é de facto um atributo natural, embora não essencial.

Por essas e outras razões, o racismo de base biológica encontra-se hoje em acentuado declínio, tendendo a ser substituído pelo racismo de base cultural. Suponho ser isso que, muito justamente, preocupa o Prof. Rui Pena Pires.

Acontece que negar a realidade da raça não é o melhor modo de o fazer, visto essa alegação ser patentemente falsa.

4.5.05



Toulouse-Lautrec: A cama.

3.5.05

Não se faz, não se faz

Paul Auster declarou-se fascinado pela Lisboa medieval.

Qual «Lisboa medieval», se até o Castelo «dos Mouros» foi edificado pelo Estado Novo?

Querem ver que enganaram o homem e o levaram para Óbidos?

O tio Ercílio

O meu tio Ercílio era louco por matemática. O melhor presente que podiam oferecer-lhe era um Caderno de Problemas do Professor Palma Fernandes.

Certa vez, quando uma companhia de circo parou na localidade dos arredores do Porto onde ele vivia, travou amizade com o ilusionista, também ele um entusiasta do cálculo. O meu tio ajudava-o a resolver problemas; o ilusionista, em contrapartida, ensinava-lhe truques de prestidigitação.

O meu tio não tirou nenhum curso, nem sequer estudou muito. Chegado à idade adulta, emigrou para Moçambique e por lá fez a sua vida.

De vez em quando, sem aviso prévio, aparecia por cá de férias, como um relâmpago em céu azul, e do mesmo modo desaparecia durante anos sem deixar rasto. Vivia em permanentemente estado de entusiasmo com os projectos mais estranhos, que depois punha em prática com método e persistência.

Quando nasceu a sua filha, a Lili, decidiu no mesmo instante que ela haveria de ser campeã de natação. Aos quatro meses de idade atirou-a para a piscina e nunca mais a deixou sossegada. Doze anos depois, ela era mesmo campeã de natação.

Sempre gostei muito do meu tio Ercílio, um optimista incorrigível que espalhava a boa disposição à sua volta.

Nunca notei, porém, que a matemática o tivesse ajudado a pôr ordem na sua vida.

Ironia

A ironia tem em vista demonstrar que as coisas não são o que parecem ser, ou que a sua realidade é incompatível com o modo como o senso comum as vê.

Pelo menos desde Sócrates, é utilizada para evidenciar que as pessoas que sustentam determinado ponto de vista não sabem de facto do que estão a falar, dado que não meditaram sobre as consequências daquilo que dizem.

No entanto, em vez de contraditar directamente o antagonista, o ironismo procura criar nele um mal-estar e uma tensão pela revelação da natureza ilógica ou paradoxal de certas ideias feitas ou opiniões vulgares.

O exame dessas opiniões pode conduzir tanto à sua rejeição integral como à sua reformulação. Esta última consiste na recuperação do seu núcleo racional através da eliminação daqueles aspectos que se tenham revelado insustentáveis.

O propósito estratégico da ironia consiste em desembaraçar o espírito dos erros, dos preconceitos e das ideias feitas, abrindo assim o caminho à descoberta da verdade.

Já agora, esclareço que este post não é irónico.