30.1.04




Sonia Delaunay: Ícaro, 1930.

O fantasma camarada



Em 1998 Marx deslocou-se a Lisboa para visitar a Expo. Nessa ocasião, um conhecido semanário entrevistou-o; mas o seu director achou que as declarações do pai do socialismo científico «não tinham actualidade» e decidiu não as publicar.

Tendo chegado aos ouvidos de um destacado militante do PCP que, na dita entrevista, Marx desfiava teses ultra-revisionistas susceptíveis, se dadas a público, de liquidar o resto de fé que ainda animava os mais persistentes militantes do partido, decidiu entrar em contacto com o jornalista que a efectuara e comprar o texto original por bom preço. Fechado o negócio, o documento foi fechado a sete chaves nos arquivos do partido.

Melhor fora que o queimassem, porque acabou por ser roubado por um agente do SIS infiltrado no Comité Central. O que leu pareceu-lhe, no entanto, um chorrilho de tolices sem sentido. O seu chefe concordou que não se podia fazer nada com aquilo, de modo que o homem levou os papéis para casa. De vez em quando lia umas passagens aos amigos enquanto emborcavam uns copos, e riam-se todos muito. Ora um desses amigos era primo da minha mulher a dias, a qual, sabendo que eu me interesso por estes assuntos, falou-me um dia do caso. Para abreviar, direi apenas que, após algumas diligências, conseguiu arranjar-me uma cópia.

Desde então conservei-a em meu poder como um tesouro precioso do meu gabinete privado de curiosidades, sem nunca me passar pela cabeça publicá-la. Acontece, porém, que há três meses a revista britânica Prospect tomou a iniciativa de dar à estampa uma pretensa entrevista com Karl Marx. Estou em condições de declarar que se trata sem margem para dúvidas de um texto apócrifo, de uma rasteira manobra de propaganda tendente a fazer crer que Marx se converteu às teses da Terceira Via de Tony Blair e dos seus amigos, como se ele fosse uma espécie de incipiente precursor de Anthony Giddens.

Ora eu não posso suportar isto em silêncio. Longe de ter abjurado dos seus princípios, Marx está mais comunista do que nunca, como se pode verificar pelo registo da entrevista concedida há cinco anos e que agora, pela primeira vez, vê a luz dos écrãs.

Amanhã será afixada aqui a primeira parte deste notável documento. O espectro do comunismo está de volta.


29.1.04



Willem de Kooning: Composição, 1955.

Pensamento

Não nada mais perigoso que um ignorante armado de uma doutrina.

Rangel e os taxistas

Depois de escutar mais uma daquelas crónicas exaltadas, inflamadas e super-indignadas do Emídio Rangel, ocorreu-me que já encontrei chóferes de taxi mais ponderados.

Se calhar é porque não sintonizam a TSF às quartas feiras.

28.1.04

Só uma

No seu primeiro post que me desapontou desde que o leio, Pedro Lomba diz que «há ideias feitas lindas, profundas, irrefutáveis».

Importa-se de citar uma, só uma, para a minha alma ter descanso?



Vieira da Silva: Biblioteca em chamas, 1974.

Em resumo

«As coisas são o que são» -- a isto se resume o pensamento político da direita.

O partido que nunca aprende

Há uma excelente razão para o tema da insegurança dever permanecer um monopólio da direita. É que, ao contrário do que ela pretende, as estatísticas sugerem que, na generalidade dos países, Portugal incluido, a criminalidade mais grave tem vindo a diminuir, não a aumentar.

O discurso da insegurança tem por principal objectivo fomentar o medo, o qual cria um terreno naturalmente mais receptivo a políticas securitárias, xenófobas, repressivas, etc. Para o conseguir a direita não necessita de se apoiar em factos, apenas de alimentar preconceitos.

Se a esquerda acha que também é sua obrigação contribuir para assustar os cidadãos, estamos feitos.

Toda a gente entende isso. O PS é que, ao que parece, nunca aprende.

27.1.04

Homenagem a Miki Féher



De Stael: Futebolistas, 1952.

26.1.04

Necrofilia



Não deve haver muitas televisões por esse mundo fora que se deliciem tanto como as portuguesas a escarafunchar imagens de cadáveres queimados, esventrados ou estropiados em virtude de acções de guerra ou actos de terrorismo.

Hoje, os abutres tiveram uma noite em grande. As imagens de Féher a cair morto sobre o relvado foram repetidas literalmente centenas de vezes, durante horas a fio -- até à nausea. Estou certo que nunca um golo do Eusébio teve tais honras.

Isto é, obviamente, doentio.

Quando vi no telejornal da SIC as imagens (suponho que em directo) do carro funerário que transportava o jogador na auto-estrada a caminho de Lisboa, percebi logo que estavam a tentar mobilizar uma multidão para o estádio da Luz, certos de que, desse modo, estaria o circo montado para um directo baratinho e de grande audiência.

A manipulação dos sentimentos alheios atingiu um novo patamar de falta de senso e de gosto. Parece que não há nada a fazer.


Entrevista a Karl Marx



Farto de ouvir asneiras a seu propósito, Karl Marx rompe um silêncio de mais de um século numa entrevista ao ...Blogo Existo. Esta semana. Não perca.

Engalfinhados



Asger Jorn: L'accrochage, 1958.

Ferocidade infantil



Karel Appel: Hip, hip, hurra!, 1949.

Conjectura

O mais chocante nessa ginástica desesperada que dá pelo nome de cinema pornográfico é a sua desarmante ingenuidade.

Imagino que o sexo no Paraíso deveria ser assim, antes de Adão e Eva serem expulsos e começarem, de facto, a fazer porcarias.

Produtividade

Quanta mais chata a reunião, mais ideias para posts ela gera.

Ontem e hoje

A ideia segundo a qual a curiosidade é uma fonte do mal não é assim tão arcaica. Heidegger pensava a mesma coisa.

Outra vez Mystic River

Curioso como se pode interpretar um mesmo filme de formas tão opostas. Para Pacheco Pereira, Mystic River exprime o sentimento de culpa. Para mim, a (quase demasiado) evidente metáfora do rio, o tom fatalista de tragédia grega que impregna todo o filme e o implacável encadeamento de causas e efeitos despoletado por um único acontecimento insinuam precisamente o absurdo desse sentimento.

Subitamente

Hoje, sentimo-nos todos surpreendidos por ainda estarmos vivos.

É um dia diferente e estranho, este, em que os pensamentos de todos tendem momentaneamente a alinhar uns pelos outros.

O espanto, essa ocorrência tão espantosamente rara porque metodicamente reprimida, é, de facto, a matéria-prima da filosofia.

E o pretexto para o soltar também pode ser o futebol.

24.1.04

Karl Marx no ...Blogo Existo

Para a semana, será publicada no ...Blogo Existo uma entrevista de Karl Marx em rigoroso exclusivo. Não saia daí.

O último impressionista



Bonnard: Modelo em contra-luz, 1907.

Ninguém como ele fez cantar a luz.

Bonnard permaneceu fiel ao impressionismo muito depois de essa corrente ter passado de moda. Essa persistência faz-me pensar em Rachmaninoff, outro artista que, como ele, indiferente às tendências dominantes do século, prosseguiu imperturbavelmente o seu caminho. Mostrando que, indo por ali, também ainda havia coisas a descobrir.


23.1.04

Prémio laconismo

Falar pouco e bem. Não abusar da paciência alheia. Respeitar a inteligência. Escrever nas entre-linhas. Dar a palavra a quem escuta. Deixar falar o silêncio. Tudo boas ideias: aqui.

Confissão

Acho o palombella rossa um blogue fascinante.

Aprecio «esta maneira de ser contra a maneira do tempo, esta maneira de ver o que o tempo tem por dentro».

Desmarquei a consulta do oftalmologista

Parabéns ao O País Relativo por, finalmente, ter adoptado uma linha gráfica que não dá cabo da vista aos seus leitores.


Pierre Soulages: Sem título, 1968.

A economia de meios é uma atitude que eu valorizo em extremo. Fazer muito com pouco revela respeito pela natureza, pela sociedade e, acima de tudo, pelo próximo.

Soulages faz muito com o preto. Basta-lhe acrescentar um bocadinho de azul, vermelho ou castanho aqui ou acolá para construir a partir dessa pobreza de meios um universo de sugestões que depois me fazem meditar durante décadas na coisas que este homem sabe.

Além disso, ele também se coibe de invocar a realidade em vão. Deixa as coisas e os homens em paz e investe directamente com o seu pincel outras dimensões da existência.

22.1.04

No centenário de Berlioz



Berlioz (1803-1869)


Berlioz é ainda hoje um compositor sub-valorizado, em parte por se afastar dos cânones dominantes da música abstracta (ou, se quiserem, da música pela música).

É evidente que um abismo separa o rigor ascético de Bach do quase figurativismo de Berlioz. Mas eu não acho que para amar o mestre alemão seja preciso detestar o francês.

Berlioz era não só músico, mas também literato. A escrita não era o seu violino de Ingres, mas uma verdadeira e genuína vocação. Num país de grandes escritores ele conseguiu ainda assim ser um grande estilista em part-time.

Algumas das suas principais obras musicais foram concebidas como comentários e desenvolvimentos de textos literários. É o caso da sua Sinfonia Fantástica. Chama-se a isso música de programa, um género que também Lizst cultivou assídua e brilhantemente. Essas peças foram feitas para serem ouvidas em conjugação com a leitura de certos textos de carácter poético.

É evidentemente inaceitável que a Sinfonia Fantástica seja entendida como uma simples ilustração musical de uma narrativa. Mas não é menos inaceitável que, violando a intenção original dos compositores de música programática, esses textos sejam hoje ocultados ao público ouvinte como se não existissem, a tal ponto que nem sequer são habitualmente incluídos nas notas que acompanham os CDs.

É como se alguém arranjasse uma maneira de nos mostrar a Última Ceia de Leonardo da Vinci escondendo-nos que as personagens que ali estão são Jesus e os apóstolos, sob o pretexto de que isso não teria qualquer relevância para a fruição estética do quadro.

O problema é que as referências ao programa estão em toda a Sinfonia, e podem até parecer ridículas se não entendermos a intenção de Berlioz. Quase toda a sua música é cénica, no sentido em que tem um valor teatral, espectacular, antecipando algumas técnicas da composição para bandas sonoras de filmes. Berlioz não hesita em agarrar bocados de música ouvida na rua ou num baile popular e inseri-los no meio da partitura, e fá-lo sem cair no mau gosto porque desenvolveu ao mesmo tempo técnicas de orquestração que asseguram o sucesso do efeito.

Noutras situações, ele usa a música de uma forma que só podemos classificar de onomatopaica, como quando, na Sinfonia Fantástica, ouvimos os sinos da igreja tocarem a finados pela morte do poeta, vindos de fora da cena onde se encontra a orquestra. Ou como quando, de forma mais sofisticada,numa cena da ópera Os Troianos, a música nos dá a ver a tempestade interrompendo uma caçada real e forçando Dido e Eneias a refugiarem-se numa gruta.



Paul Klee: Flora sobre areia, 1927.

Klee nunca foi um pintor abstracto, nem mesmo em trabalhos como este, à primeira vista parece não mais do que uma composição de quadrados de vários tamanhos e cores (aliás poucas). O que lhe interessa não é o livre jogo das formas, mas um modo mais exigente de dar a ver a realidade.

O título, que em Klee frequentemente comenta e completa a pintura, deixa claro que se trata de uma representação estilizada de uma realidade relativamente banal: plantas que crescem sobre a areia. O artista procura identificar os ritmos e padrões que um olhar distraído é incapaz de captar. O seu trabalho pode ser encarado com uma paciente pedagogia do olhar.

Como ele dizia: não se trata de mostrar o visível, mas de tornar visível. Ou seja, de revelar ao olhar preguiçoso o que está para além do visível. Um olhar assim é escravo da realidade a um ponto que o figurativismo banal jamais pode aspirar.

Descubra as diferenças



Ontem aconteceu-me sintonizar a Dois. Reparei que mudaram o logotipo.

21.1.04

Uma fábula



Há uma dúzia anos, quando o conheci, era um jovem e brilhante investigador que projectava criar uma empresa de base biotecnológica a partir de algumas descobertas que fizera.

Encontro-o casualmente ao virar de uma esquina. Está feliz e próspero. Desistiu dos seus planos, comprou uma farmácia e leva uma vida sem chatices.

Esta é uma fábula do país em que vivemos extraída da vida real, e estou certo que escuso de explicitar a moral da história.


Jean Dubuffet, Paris Montparnasse, 1961.

19.1.04

TV Marcelo

Um pequeno programa de duas horas ao domingo é pouco, muito pouco mesmo, para Marcelo Rebelo de Sousa.

O que ele devia era ter um canal -- TV Marcelo -- só para ele.

Around the clock, só com um pequeno intervalo de meia horita às cinco da madrugada para a publicidade, enquanto passa pelas brasas.

Com menos que isso carece-lhe espaço para se exprimir. Forçado a auto-conter-se desta forma tão violenta, um dia destes ainda tem uma apoplexia.

A ignorância é muito atrevida

Finalmente, li (no Expresso) um texto do mundialmente famoso João Pereira Coutinho.

E que descobri eu? Um fascistoide ignorante que confunde falar grosso com firmeza de opiniões.

Decidamente, a direita portuguesa adora tipos mal-educados.

Viva George Bush!



A conquista do espaço é, para mim, uma das dimensões mais fascinantes da aventura humana.

Por isso, sejam quais forem as suas motivações subjacentes, apoio sem restrições a decisão de George Bush ao relançar a exploração do espaço que se encontrava em banho maria há quase três décadas.

Que Deus o abençoe por isso!

17.1.04



Lucio Fontana

O fim

Sampaio ofereceu de mão beijada ao PS a possibilidade de se limpar de uma vez por todas da suspeita de que é um partido no qual o eleitorado não pode confiar em matéria de controlo orçamental.

Recorde-se que a mensagem do PR à Assembleia da República só afirmava coisas com que ninguém pode deixar de concordar: que o desemprego e a recessão são coisas más e que, para se evitarem políticas conjunturais perversas, é melhor programarem-se as contas públicas num horizonte de vários anos. A uma mensagem destas o PS só tinha que responder que sim senhor -- e lançar-se ao trabalho.

Mas trabalho é, pelos vistos, uma palavra perigosa. Em vez disso, o PS começou por tentar usar a mensagem do PR como um argumento de pequena política destinado a provar que «o PS tinha razão nas críticas que tem feito ao governo».

Em seguida, propôs a criação de um grupo de trabalho para analisar a sugestão do Presidente, como se não existisse já uma Comissão Parlamentar de Economia e Finanças. O que ao PS competia era avançar rapidamente com propostas concretas mas, como não fez nem quer fazer o trabalho de casa, tornou-se evidente que não tem nada de relevante a adiantar sobre o assunto.

A concluir, Ferro decidiu hoje condicionar um acordo sobre as linhas gerais do controlo das contas públicas a um outro acordo sobre o conteúdo da política orçamental. E isto, de facto, é o cúmulo dos absurdos, designadamente porque o essencial da proposta de Sampaio consiste precisamente em sugerir que o acordo sobre o controlo do déficite orçamental não impede, bem pelo contrário, o desacordo sobre o conteúdo das políticas económicas e sociais a prosseguir.

Sobre esse conteúdo não pode nem deve haver acordos «de regime», porque eles só serviriam para esbater as diferenças de orientação partidária que, saudavelmente, devem persistir.

A inabilidade política com que a direcção socialista conduziu mais este processo prova que o tempo de Ferro Rodrigues chegou, sem margem para dúvidas, ao fim.

Only a Movie?



A ideia, expressa num folheto da Cinemateca e citada pelo Ivan, segundo a qual a arte abstracta e a música são destituídas de qualquer significado é absurda e não resiste a uma análise séria. Prometo que hei-de explicar porque penso assim.

Entretanto, esclareço que também eu sou um fã incondicional do North by Northwest (Intriga Internacional em português) em geral, e, em particular, da cena em que o Cary Grant é atacado por uma avioneta que lança insecticida sobre os campos de milho enquanto ele aguarda o autocarro na encruzilhada de duas estradas numa planície deserta do Midwest.

Mas o que é que Hitchcock tem a ver com Tarantino? Aonde é que Tarantino fez algo que se compare com a intrigante beleza dessa cena?

16.1.04

«Quais os sintomas de um motor após uma rectificação»

Na sua incansável busca da Verdade, uma Alma inquieta que não conheço veio parar ao BlogoExisto por ter introduzido a frase em título num motor de pesquisa, obviamente não devidamente rectificado.

A gente procura ajuda nos mais modernos artefactos, mas a frustração resultante só agrava o desespero da nossa condição e confirma a pequenez do Homem face aos insondáveis mistérios do Universo.

15.1.04




Sam Francis: Hurrah for the Red, White and Blue, 1961.

Até ao fim da noite



Que bem escreve Céline! E que repelente o seu estilo que degrada tudo aquilo em que toca!

As pessoas, as coisas e as situações são aviltadas por esta escrita, espécie de niilismo metódico que só se realiza na destruição.

É um mundo sem esperança o seu, todo ele maldade e estupidez, de que o próprio narrador participa sem resistência. A única redenção possível que reconhece parece residir nessa forma particular do riso que é a paródia apocalíptica.

Certamente, está implícita nesta escrita uma atitude reflexiva, dado que Céline se distancia do mundo pelo artifício de uma gélida objectividade aparentemente despida de todo e qualquer sentimentalismo.

Mas o autor-narrador não se distancia do mundo pelos seus actos. Por isso, o diagnóstico confunde-se com a prescrição. Ao nonsense do mundo responde ele com o nonsense. À brutalidade com a brutalidade. Ao sórdido com o sórdido. Céline é uma instância quase única de niilismo literário.

Por tudo isso, entende-se a fascinação do autor pela força como vontade de poder e pelo anti-semitismo, bem como a sua repulsa pela «normalidade burguesa». Hannah Arendt mostrou de modo convincente como o fascínio de certos intelectuais pela ralé contribuiu para tornar respeitável o nazismo. Essa estética da degradação permanece aliás muito popular nos dias que correm.

Há, não duvidemos, uma ética do estilo, bem visível pela negativa no caso, reconhecidamente extremo, de Céline.

A palavra aos incompetentes

Somos um país de mau ensino e maus professores, por esta ordem.

Contam-se pelos dedos da mão de um maneta os bons professores que tive na faculdade. O célebre Alfredo de Sousa, por exemplo, limitava-se a abrir as folhas e a lê-las em voz alta (vá lá, que não lia em voz baixa). O que sei pelos meus filhos revela-me que as coisas não evoluiram muito.

O curioso é que as opiniões dos professores incompetentes, esses que detestam a pedagogia, odeiam as ciências da educação e bradam por mais e mais autoridade nas salas de aura (onde autoridade, aliás, é muitas vezes a única coisa que há), têm uma grande aceitação nos nossos media.

A ideia deles, a única ideia deles, a ideia fixa deles, a monomania deles é que o defeito capital do nosso ensino é o chamado facilitismo. Aliás, facilitar a vida ao povo tem sido o pecado reincidente da modernidade, com o seu desprezível cortejo de perniciosas ilusões democráticas, libertárias, igualitárias e socialistas.

Mas alguém acreditará verdadeiramente que as competências matemáticas dos nossos estudantes melhorarão por milagre se os professores reprovarem uma maior proporção deles?

Não sei se já repararam que o «facilitismo» para os alunos é o «dificilitismo» para os professores, e vice-versa. Ou seja, facilitar o processo de aprendizagem é precisamente a forma de aumentar a sua produtividade, mas exige mais capacidade e mais esforço da parte dos professores e das escolas.

Por isso, esses professores que tanto bradam contra as pedagogias que têm em vista motivar e aliciar os alunos para o estudo parecem-me ser, afinal, os verdadeiros facilitistas, porque querem facilidades para si mesmos e não para os outros.

O nosso ensino é uma tristeza, mas o mais deprimente de tudo é o tempo de antena de que disfrutam pessoas que, apesar de não terem a mínima competência para se pronunciarem sobre estes assuntos, não se cansam de incensar em tom empolado o reino da estupidez.

14.1.04



Nicolas de Stael, Futebol no Parque dos Príncipes, 1952.

Modesta proposta

Diz-se que as pessoas não se interessam por política. Mas as pessoas também não gostam de futebol e, apesar disso, vêem futebol e discutem futebol.

Que quero eu dizer com isto? Cá para mim, os portugueses não gostam de futebol, gostam da conflitualidade associada ao futebol.

Quando a tv transmite um jogo, o realizador está muito mais interessado em repetir as imagens das entradas a matar, das cabeçadas nos adversários ou das agressões dos adeptos nas bancadas do que as jogadas mais bonitas do desafio. É claro que também repetem os golos, mas repetem-nos muito mais se forem marcados em fora de jogo ou se resultarem de um penalty mal assinalado.

Depois, durante a semana, começa-se por discutir as cuspidelas e as arbitragens da última jornada, para depois se mudar para as cuspidelas e as arbitragens da próxima. Os jogadores têm muito pouca importância no meio disto, e mesmo os dirigentes desempenham um papel manifestamente secundário. Por isso, os debates estão usualmente entregues a políticos do PSD como Santana Lopes, Fernando Seara ou Pôncio Monteiro.

Os jornais desportivos seguem o mesmo figurino. Os jornalistas desportivos são unânimes em considerar que o futebol está de rastos e que a última jornada foi a pior de sempre. Segundo eles, os jogos são um longo bocejo que deve acabar o mais rapidamente possível para poder começar a algazarra que verdadeiramente entusiasma o público.

É claro que eles nunca diriam isso se o público gostasse mesmo de futebol. Mas não há azar, porque o público gosta é de odiar o futebol e os seus intervenientes; e embora odeie acima de tudo os adversários, também não deixa de odiar em certa medida o seu próprio clube.

O que é indiscutível, porém, é que a indústria do futebol é um sucesso, dá dinheiro a ganhar a muita gente e traz todo o país satisfeito.

Se a política imitasse a estratégia e a táctica do futebol, também ela poderia transformar-se num negócio competitivo. A primeira coisa a fazer é entender que a sua missão não é resolver os problemas do país ou promover reformas, balelas em que de facto ninguém acredita, mas promover o ódio.

Os nossos políticos democráticos acomodaram-se muito nos últimos 30 anos. Tornaram-se cordatos e educados, senhor doutor para aqui, senhor doutor para ali, uma conversa demasiado sofisticada que o povo não entende. O que faz falta é mais vida, mais animação, mais animosidade, mais arreganho, mais insultos, mais destempero. Às tantas, talvez nem fosse má ideia uns murros na mesa e uns empurrões, enquanto se prepara o terreno para as cotoveladas e as cuspidelas.

Os entrevistadores, em vez de moderarem o debate, deveriam antes acirrá-lo, contabilizar os golpes assestados, valorizar especialmente os baixos e organizar votações por SMS para saber quem tinha arrasado quem.

Além disso, é um erro pôr os políticos a discutirem política. Os políticos, já se viu, são mais eficazes a discutir futebol, razão pela qual a política deveria ser discutida pelos futebolistas, gente com um linguagem mais próxima da do povo.

Eu poderia (e deveria) continuar; mas, por agora, talvez baste. A minha intenção era apenas demonstrar que não temos de resignar-nos perante o desinteresse dos portugueses pela política. Há muito trabalho a fazer e eu limitei-me a deixar aqui a minha modesta proposta.


Frank Stella: Abra Variation I.

Estranha forma de vida

Às vezes, a obsessão produtivista toma conta de mim.

Carrego repetidamente no botão do elevador para ver se a porta se fecha mais depressa. Impaciento-me com o tempo que o coxo demora a atravessar a passadeira de peões. Desespero porque o tipo que está à minha frente para pagar o estacionamento só começa a procurar os trocos quando chega a vez dele. Vou aos arames quando o empregado se esquece de me tirar a bica. Espumo ao ouvir Vivaldi enquanto espero para ser atendido pela linha de clientes da PT. Passo-me quando se alonga a fila na caixa do supermercado.

Torno-me intolerante, vêm-me instintos sanguinários, estou capaz de desencadear uma guerra civil só para abrir caminho entre todos estes empatas que me atrapalham a vida.

Quando a coisa fica mesmo má, enervo-me porque não consegui ler o Público, porque cresce a pilha de livros amontoados na mesa de cabeceira, porque na segunda feira tenho que entregar sem falta o tal relatório, porque reparo que não ouvi ainda aquele disco que comprei há quase um ano, porque os fins de semana são quase tão ocupados como os dias íteis, porque há dias que não converso um bocado com ninguém, porque aquele post ficou por escrever.

Pois é, mas eu gosto de viver assim.

13.1.04

Robert Motherwell

É tempo de acabar com o passa-culpas

Estimulante e bem argumentado artigo de José Cutileiro no Público de hoje. Uma das suas ideias centrais, a meu ver inquestionável, é a falta de fundamento das lamúrias segundo as quais «está tudo cada vez pior». Bem pelo contrário, Portugal tem melhorado muito, embora ainda precise de melhorar muito mais.

O problema é que, ao refutar a falácia segundo a qual o povo é bom e o governo é mau, Cutileiro acaba por sustentar o erro inverso: o governo é tão bom quanto possível, o povo é que não é grande peça.

Vai daí, afirma: «Vivemos na democracia e no mercado que o dr. Soares e o prof. Cavaco, respectivamente, nos deixaram». Ora, sem negar o papel desse e doutros governantes, eu julgo que tanto a democracia como o mercado são no essencial obra deste povo que Cutileiro parece acreditar que não merece os excelsos governos que têm.

Acontece, além do mais, que é ao povo que compete eleger o governo, e não o contrário.

P.S. -- Lateralmente: também Cutileiro parece acreditar que a Grécia voltou a ultrapassar-nos em nível de desenvolvimento. Essa afirmação é, por enquanto, falsa. Medido em paridades de poder de compra, que é como se deve fazer, o PIB per capita português permanece largamente superior ao grego.

Economia fora da mão

O BdE - Blogue de Esquerda (II) chamou ontem a atenção para uma bizarra opinião expressa pelo economista francês Henri Lepage acerca dos pretensos malefícios resultantes da utilização de cintos de segurança e outros dispositivos de segurança.

Gostaria de chamar a atenção para o facto de que a opinião expressa pelo Henri Lepage (em si mesmo um personagem menor) não é um caso isolado. No influente manual Principles of Economics do Greg Mankiw (actualmente chief economist da Administração Bush), lê-se na página 7:

"Now consider how a seat belt law alters the cost-benefit calculation of a rational driver. Seat belts make accidents less costly for a driver because they reduce the probability of injury or death. Thus a seat belt law reduces the benefits to slow and careful driving. People respond to seat belts as they would to an improvement in road conditions--by faster and less careful driving.... Drivers who wear their seat belts are more likely to survive any given accident, but they are more likely to find themselves in an accident. The net effect is ambiguous.... [E]conomist Sam Peltzman showed that... [seat belt] laws produce... fewer deaths per accident and more accidents... little change in the number of driver deaths..."

Agora o que é preciso sublinhar é que a confirmação empírica desta conclusão tentada pelo aludido Sam Peltzman está cheia de problemas.

Veja-se a este propósito o post de 23 de Outubro de 2003 do site/ blog do economista Brad de Long (ver link aqui ao lado), o qual sugere que, se estes tipos acreditassem mesmo no que dizem, não deviam apenas pedir a eliminação dos cintos de segurança e dos air-bags, mas também forçar a inclusão obrigatória como equipamento standard em todos os veículos de uma faca ponteaguda cravada no volante e virada para o condutor como instrumento dissuassor do excesso de velocidade.

E deveriam começar por dar o exemplo com os seus próprios carros.

12.1.04

...e mudemos de assunto, sim?



Morris Louis, Point of Tranquillity.

Pantominices 2




Quando era Presidente do PSD, Marcello, acolitado por Portas o Pequeno, lançou uma heróica cruzada contra a regionalização que, no seu entender, iria retalhar o país aos bocados, sabotar o controlo das finanças públicas e destruir a sua autonomia face à Espanha.

Agora, o governo tenta impor, com total desfaçatez e sem debate público, uma nova regionalização anárquica, criando a correr unidades territoriais em muitos casos sem tradição nem coerência e com poderes indefinidos.

A única coisa certa--e que faz toda a diferença em relação ao projecto anterior--é que essas regiões não serão controladas democraticamente pelos cidadãos, ao contrário do que sucede em todos os restantes países da União Europeia. Chegados aqui, percebemos finalmente os fundamentos da histeria anti-regionalização de há cinco anos atrás.

Naturalmente, o professor Marcello está de acordo.


Pantominices 1



Quando era Presidente do PSD, Marcello Rebelo de Sousa lançou uma campanha sob o lema: «Pena máxima para a colecta mínima».

Agora, em 2003, o governo instituíu o pagamento excepcional por conta, que é a mesma coisa em pior. Marcello meteu a viola no saco e achou bem.

Isto não se faz



Calhou ontem eu assistir, uma vez sem exemplo, ao número semanal de Marcello no Cabaré da Coxa da TVI.

A contemplação daquele festival de trejeitos, pantominas, caretas, risinhos, piscadelas de olho e tiques diversos, daquela linguagem gestual exuberante que se orgulha do seu excesso levou-me por um momento a pensar que estava a ver um filme com aquele actor americano que dá pelo nome de Jim Carrey.

Mas o Jim Carrey não se dá aqueles arzinhos superiores de eterno menino prodígio contente consigo mesmo. Não exibe aquele verbo destravado de vendedor de feira. Não tem aquela capacidade para desfiar lugares comuns travestidos pelo tom grandiloquente do discurso em verdades profundas.

O que se passa aqui é um espectáculo cruel de psicoterapia em directo e ao vivo. O pobre professor chega ao estúdio, arrasado por anos a fio de noites mal dormidas (ao que se diz, deita-se às sete e acorda sistematicamente às seis). O médico disfarçado de apresentador convida-o a deitar-se no divã. Ele responde prontamente: «Não, deixe estar, muito obrigado, eu fico bem sentado». E, desata a expor sem peias, perante uma plateia de milhões de portugueses, todas as angústias que lhe vão na alma.

Isto é uma crueldade, isto não se faz! Expor assim os fantasmas íntimos de um homem bom ao escárnio da populaça é levar longe de mais a guerra das audiências. Preocupados como andamos com os abusos de que são vítimas os menores, não cuidamos hoje adequadamente de proteger certos adultos manifestamente fragilizados pela dureza da vida quotidiana.

(Confesso, com alguma vergonha: eu faço parte daquela minoria (aparentemente ínfima) de portugueses absolutamente insensíveis aos encantos do professor Marcello. Marcello a caminho de Belém? Não seria mais adequado o Circo Chen?)

Ninguém o agarra

Ainda mal foram concluídos o renovado Parque Mayer e o Casino de Lisboa, e eis que aí está ele já a colocar a primeira pedra da nova Catedral de Lisboa, antes mesmo de ter tido tempo de fazer sequer um telefonema a avisar o Cardeal Patriarca.

Homem ao mar

A blogoesfera convida a uma aceleração do pensamento.

Volta e meia detenho-me a olhar melhor, hesito sobre o que quero dizer, não sei se diga ou não diga--e caio fora.

Pergunta e resposta

A resposta mais óbvia à pergunta «Como é que tens tempo para escrever um blogue?» é: «De facto, não tenho. Como é que ainda não me tinha lembrado disso?»

9.1.04

Pacheco, o Luís



Acho graça ao Luis Pacheco, mas não mais do que a outros clochards que conheci. Daí até considerá-lo um escritor de algum relevo vai, porém, uma grande distância.

Não entendo, por isso, a reverência embasbacada com que são recebidas as suas ocasionais entrevistas, excepto talvez como expressão dessa perniciosa condescendência com que nos habituámos a premiar tanta mediocridade auto-satisfeita.


A nossa causa

Depois de um início algo hesitante, a Causa Nossa começou finalmente a carburar, com Vital Moreira no seu melhor estilo.

É com todo o gosto que acrescento o link aqui ao lado.

Afinal, em que ficamos?



Exortam-nos constantemente a sermos mais inovadores, mais empreendedores, mais ousados e mais confiantes.

Mas, no dia a dia, seja nas empresas seja nas escolas, o que quem manda de facto nos exige é que sejamos, apenas e só, obedientes.

8.1.04

Ellsworth Kelly

Sobre a reforma da administração pública


Burocratas assírios


Numa outra encarnação, também eu fui funcionário público e, sabem que mais?, nessa altura já havia gestão por objectivos e avaliação de mérito no organismo onde eu trabalhava.

Porque se terão então perdido pelo caminho esses bons hábitos?

O segredo é este: os partidos políticos dominantes resolveram que a administração pública não tem que ser tecnicamente capaz, mas apenas obediente. Vai daí, há coisa de uma década e meia (ou seja, no tempo de Cavaco Silva), os directores gerais prestigiados começaram a ser substituídos por criaturas inenarráveis, cuja única função é existirem. A isto se reduz o seu significado ontológico: esses são aqueles que são.

Como, apesar de tudo, é preciso que alguém trabalhe, os ministros rodearam-se de gabinetes cada vez mais numerosos de assessores que, pior ou melhor, vão dando conta do recado. (Note-se que, neste como noutros aspectos, o guterrismo foi apenas a continuação do cavaquismo por outros meios.)

O actual governo deu mais um passo no sentido da institucionalização deste sistema ao criar as Unidades de Missão. Note-se que, por vezes, estes gabinetes não só não funcionam mal como fazem muito trabalho de alta qualidade. O problema é que, não se atacando o problema de fundo--ou seja, a transformação da administração pública numa estrutura capaz e eficiente--criaram-se dois aparelhos de estado paralelos que quase não comunicam entre si, com todo o desperdício que um tal dualismo implica.

A base da pirâmide apodreceu quase por completo: a administração pública é hoje uma ficção, em cuja existência só os jornalistas e comentadores de serviço parecem acreditar.

Queixam-se os apoiantes do actual governo de que, no actual sistema que impera na função pública, não é possível premiar o mérito. Talvez, mas também ninguém os obriga a premiar a mediocridade, como todos os dias fazem.

A solução de um problema--a saber, a ineficiência da administração pública--deve começar por um correcto diagnóstico das suas causas. De outro modo, teremos apenas soluções à procura de problemas, como é esta de pôr chefes que ninguém respeita a avaliarem o mérito de pessoas dedicadas e capazes.

Diz-se que os princípios da reforma da administração pública são consensuais e que só está em causa o modo como serão aplicados, mas isso só me confirma na ideia de que nem o governo nem a oposição sabem do que está a falar.

O que eu queria era que os principais partidos se comprometessem a alterar a prática de substituir os quadros superiores da administração pública quando ganham as eleições a pretexto de que necessitam de provê-los com gente da sua confiança política.

Porque esse argumento é absolutamente indefensável e está a conduzir lenta mas seguramente à destruição do aparelho de estado, cujo prestígio e fiabilidade é condição base do funcionamento de qualquer regime democrático.

Cabala e contra-cabala



É para mim claro que Pacheco Pereira tem razão em muito do que escreve no Público de hoje («Anatomia de uma fuga...»).

Lamento apenas que a perspicácia com que identifica e desmonta a contra-cabala vinda a público nos últimos dias não o tenha ajudado a entender a cabala original. Chama-se a isso facciosismo.

Por mim, registo apenas que uma parte da defesa compreendeu finalmente que não se pode jogar limpo quando o adversário sistematicamente joga sujo. Olho por olho, dente por dente, não é só uma velha máxima babilónia: é também, segundo um moderno teorema da teoria dos jogos formulado por Axelrod, a única forma eficaz de amansar quem nos ataca de má fé. Ser-se boa pessoa não é a mesma coisa que ser-se parvo.

Já agora, esclareço que, em minha opinião, a óbvia manipulação desde o início do processo Casa Pia não teria à partida forçosamente por alvo o PS. Acabou por ser assim, mas também poderia ter sido de outro modo. E sobre isto não adianto mais nada porque, como sustentava o outro, o que não pode ser dito deve ser calado.

Só acrescento, a concluir, que aprendi há muito, ao ler O Espião que Veio do Frio, sem dúvida o melhor romance do John Le Carré, que às vezes os manipuladores também são manipulados—sem sequer terem consciência disso.

7.1.04

Frank Stella

Ben Nicholson


Hádes cá vir, hádes



O hádes é o inferno da língua portuguesa. Para os gregos, era o inferno tout court, o que só revela como eles eram sábios.


Bruxos



Isto de prever a retoma económica é só uma questão de persistência. Basta insistir que ela vem aí que, mais tarde ou mais cedo, acerta-se.

Não se esqueçam que até um relógio avariado dá as horas certas duas vezes por dia.

5.1.04

A beleza à nossa frente



Depois de Tapiès, ninguém pode ficar indiferente à beleza dos velhos muros.

Josef Albers

Rodchenko



Houve um tempo (estranho tempo) em que estas coisas estavam mesmo afixadas nas paredes.

Visão

Há dias, olhando para um daqueles mapas de Lisboa afixados nas estações do Metropolitano vi de repente a cidade como um enorme estômago a digerir um pedaço de carne chamado Monsanto.

Terei visto mal?

Descobertas de 2003

Josef Roth


Fico sempre complexado com aquelas listas dos melhores livros do ano propostas por gente conhecida, porque constato que só li velharias e que fiquei quase sempre a zero no que respeita a novas edições.

Em 2003, as minhas grandes descobertas foram Josef Roth (A Marcha de Radetzky) e Giovanni Verga (Os Malavoglia), duas surpresas absolutas vindas de dois autores há muito desaparecidos. Gostaria de dizer mais qualquer coisa sobre eles; mas, se calhar, vocês não tinham paciência.

Em contrapartida, fiquei desapontado com O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzatti, um escritor que há muito ansiava ler. Se calhar a culpa é minha, mas a verdade é que, entretanto, por puro acaso, também vi o filme na televisão e confirmei as razões do meu (relativo) desagrado.

Para compensar, eu, que durante décadas receei encontrar nas Meditações do Marco Aurélio mais uma chumbada de bons sentimentos (era o que sugeriam muitas apreciações críticas superficiais que tinha lido), encontrei ali um precursor do Montaigne, um homem livre que se analisa a si mesmo com total franqueza e perspicácia.

Imaginem só: um volume comprado na Feira do Livro por 1 euro! E ainda dizem que a vida está cara!

Eu não acredito em conspirações (continuação)



Na entrevista que Pacheco Pereira deu ao Público e que foi publicada ontem, é-lhe a dada altura perguntado:

«Não acha que o facto de aparecerem exclusivamente nomes de pessoas ligadas ao Partido Socialista dá mais algum sentido à famosa tese da cabala? »

Pacheco Pereira responde prontamente: «Não, não acho.»

Mais adiante, porém, aparentemente sem notar a contradição, afirma o seguinte:

«Devo dizer que quantos mais nomes saírem do PS, mais o PS fica salvo do processo. É óbvio que isto funciona ao contrário: se só aparecem nomes do PS, todos os membros da direcção do PS, todos os responsáveis do PS, deixa de ser credível.»

Para quê mais comentários?

Vaidade

Ena, pá! Acabo de reparar que o Blogo Existo regista uma média de 2,2 page views por visita, uma marca muito superior à de qualquer outro blogue de que eu tenha conhecimento: o que mais se aproxima está 18,2% abaixo.

Como dizia aquele jingle velhinho da Rádio Vitória: «Quem lá vai é bem servido e sai sempre bem disposto».

Não façam prisioneiros

Comprei por curiosidade uma nova publicação de economia e gestão e pus-me a ler o editorial.

Constatei que, na opinião do articulista, o aço é uma matéria-prima e o atum Ramirez um «emblema do sector primário». Saberá ele o que é o aço, como se fabrica e a que partir de que matérias-primas? E julgará que as sardinhas são pescadas já enlatadas, única justificação para classificar no sector primário uma actividade industrial?

Leio mais um bocadinho e apercebo-me também de que, para ele, «mítico» e «místico» querem dizer a mesma coisa. Cada cavadela, cada asneira.

Como é possível que quem não domina sequer a língua portuguesa se permita opinar sobre assuntos de elevada complexidade? Se esta situação fosse excepcional, ainda vá: a gente deixava de comprar a publicação prevaricadora, e estava o caso resolvido.

O problema é que a ignorância não só é endémica como não pára de crescer. Como diria o outros, temos de preparar-nos para combatê-la nas nossas praias, nas nossas ruas, nas nossas casas.

2.1.04

El Lissitzky (2)


Não vi e não gostei



Quando fui para ver o Kill Bill do Tarantino já o filme não estava em exibição. Não fiquei muito ralado, porque, para mim, seria apenas mais uma oportunidade para confrontar o vazio deste autor, que não aprecio, com a espessura do cinema do Clint Eastwood, bem patente no seu recente Mystic River.

O Tarantino é um tipo absolutamente oco, um esteta blasé que apenas se preocupa em «fazer bonito», nem que seja com a matéria-prima mais repugnante que se possa imaginar. Trata-se de um cinema irresponsável e amoral, emblemático do pior que hoje se faz em qualquer área.

Estava eu mergulhado nestes pensamentos, quando, a propósito do mesmíssimo Kill Bill, li o seguinte na última New York Review of Books:

«(It's) not the violence but the emptiness, the passivity, the sense that you're in the presence not of a creator but a member of the audience--one who's incapable of saying anything about real life because everything he knows comes from the movies».

Quem quiser ler o resto deste magnífico e penetrante artigo de Daniel Mendelsohn pode encontrá-lo aqui.

El Lissitzky