10.4.04

Post pascal

Se a violência gratuita devidamente esteticizada vende bem, que ideia melhor do que encenar duas horas e tal de murros, pontapés, cotoveladas, chibatadas e o mais que se conseguir inventar sobre o próprio símbolo da inocência, sobre o homem que oferecia a face direita a quem lhe batesse na direita, ou seja, sobre Jesus, o Cristo, em pessoa?

Diz-se -- mas talvez seja propaganda -- que João Paulo II tem em grande estima o último filme de Mel Gibson. Verdade ou mentira, o facto é que A Paixão de Jesus Cristo foi geralmente muito bem recebido pelos círculos católicos, o que, junto aos elogios ainda recentemente dirigidos pelos mesmos meios ao Senhor dos Anéis, só confirma o vazio de ideais que se instalou no Vaticano e que granjeia tanto apoio entre os seus seguidores.

Deixemos de lado o anti-semitismo implícito, talvez imperceptível para quem não foi educado no ódio de princípio aos assassinos de Deus. O fundamental é que esta descontextualização da morte de Cristo é um evidente instrumento de absolutização da crença religiosa. Isso consegue-se desligadando-a tanto dos seus pressupostos como dos seus ensinamentos, o que facilita a mobilização incondicional dos cristãos contra o mal absoluto incarnado pelos adversários (ou simplesmente não partidários) dessa seita particular.

Os maus não são maus porque se oponham a certos princípios éticos recomendáveis ou porque defendam concepções ou comportamentos inaceitáveis. São maus porque são maus, ou, melhor dizendo, porque não são dos nossos. É a isto que se convencionou chamar fanatismo ou, mais modernamente, fundamentalismo religioso.

Historicamente, esta versão da morte de Cristo que tenta desviar a responsabilidade de Pilatos para os dirigentes religiosos e políticos judeus é insustentável. Não parece hoje haver grandes dúvidas de que Jesus foi executado por, de mera ameaça aos sacerdotes do Templo, ter passado em certo momento a ser considerado por Pilatos uma ameaça séria à Pax Romana naquelas partes do mundo.

Dois mil anos transcorridos sobre a Paixão de Cristo, todos os anos pela Páscoa somos castigados com a passagem nos canais de televisão com uma interminável série de séries e filmes históricos medíocres que glosam o tema nos mais variados registos. O efeito de todos eles é uma estranha normalização do maior escândalo de todos os tempos, um acontecimento cujas incalculáveis consequências ainda hoje estamos longe de ter integralmente incompreendido.

Muitos homens se haviam proclamado deuses, mas a nenhum deus lhe ocorrera proclamar-se homem, ainda por cima para em seguida se deixar matar pelas suas criaturas. Estranha, sem dúvida, quase blasfemo, esta nova religião criada por Paulo, que, ao degradar a divindade ao nível dos mortais, deixa no ar uma insuportável sugestão de ateísmo. A morte de Deus, solenemente proclamada por Nietzsche em pleno século XIX, começou de facto aí.

«Creio, porque é absurdo», escreveu com toda a lógica Tertuliano. Na verdade, se não fosse absurdo, não seria preciso crer – bastaria constatar.

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