11.12.04

No desaniversário de Mário Soares

Deve ser bom chegar-se aos 80 anos com a consciência compreensivelmente tranquila. Sobretudo quando essa consciência não é excessivamente tolerante com as culpas próprias. Sobretudo quando o envolvimento pessoal em acontecimentos de importância transcendente impôs a tomada de decisões que, pelo seu impacto na vida de muitas pessoas, submeteu a dura prova a capacidade de distinguir entre o bem e o mal. Sobretudo quando o curso da história vindicou no essencial as opções essenciais da sua vida.

Convém não esquecer, porém, que a actual unanimidade em torno de Soares envolve uma boa dose de saudosismo por uma Idade de Ouro que nunca existiu, fruto da nossa humana tendência para idolatrar o passado e desprezar o presente. Há vinte anos, mesmo em vésperas de ser eleito Presidente pela primeira vez, ele era seguramente uma das figuras políticas mais detestadas do país.

Hoje, como no passado, não me impressionam especialmente as opiniões particulares de Soares sobre muitos assuntos. Mas a força dele resulta de que, embora errando muito nos detalhes, é raro equivocar-se quanto ao essencial. Por isso lhe chamam intuitivo.

Diz-se que o seu sucesso deve muito ao facto de ele ser o português típico: extrovertido, despreocupado, convivial e desenrascado, mas também pouco metódico, oportunista, superficial e improvisador. Mas há outras formas de se ser um português típico. Estou a pensar, por exemplo, em Zenha, o alter-ego de Soares, praticamente o seu oposto tanto nas qualidades como nos defeitos. A amizade e a cooperação entre ambos, ao longo de quase quarenta anos, embora desfeita nas circunstâncias que se conhecem, é, para mim, a maior prova da grandeza de Soares. Só alguém profundamente humano e tolerante consegue conceber uma amizade tão profunda por uma pessoa tão diferente dele.

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