1. Por razões profissionais, visito com frequência empresas dos mais variados sectores de actividade. Por toda a parte, só vejo mulheres a trabalhar, a tal ponto que já me perguntei: onde param os homens? Os homens estão ocupados a mandar, pois há mulheres em toda a parte, menos nos centros nucleares do poder. Reparem, por exemplo, que não há mulheres nos postos do comando dos sítios que verdadeiramente interessam: não há mulheres nem na Política, nem nos Media, nem na Banca, nem no Exército, nem na Polícia, nem no Futebol, nem na Igreja.
2. Aqueles a quem estas coisas não ralam, dizem-nos que é só uma questão de tempo, porque a evolução natural, por si mesma, há-de resolver esse assunto. Ora a evolução natural transformou o macaco em homo sapiens. Mas foi a evolução artificial que nos trouxe da tribo até à sociedade moderna demo-liberal. O Afeganistão é tão ou mais natural do que a Suécia, mas lá as mulheres não têm direitos alguns. Não há nada de natural na igualdade de direitos entre os dois sexos.
3. É curioso notar que os que argumentam que a igualdade virá "naturalmente" são muitas vezes os mesmos que ainda há dias achavam "natural" que Larry Summers, o reitor de Harvard recém-deposto, tivesse reduzido drasticamente a proporção de mulheres contratadas para ensinar naquela universidade.
4. Uma mulher que afirma nunca se ter sentido discriminada ou é distraída, ou é inocente, ou é mentirosa. A qual dessas categorias pertencerá a deputada Regina Bastos do PSD?
5. Afirmar que as mulheres têm hoje direitos e oportunidades iguais aos dos homens e que, por conseguinte, os cargos políticos estarão, se assim o desejarem, ao seu alcance, é desconhecer como e quando se formam os grupos que competem pelo poder. Basta estar-se atento para se perceber que as solidariedades entre os homens se formam muito cedo na vida, às vezes desde os bancos da escola, e que as mulheres são prematuramente excluídas desses pactos não escritos. Numa sociedade como a nossa, onde a lealdade pessoal se sobrepõe a todas as restantes, esse é um facto marcante.
6. Já nem preciso recordar, como muito bem o fez a deputada Teresa Caeiro do PP, que toda a organização da política está feita sem ter em conta as responsabilidades familiares e sociais que as mulheres são forçadas a assumir em virtude do arcaismo social vigente. Toda a gente sabe que, em igualdade de habilitações para um cargo, as mulheres são usualmente preteridas em favor dos homens.
7. Segundo José Manuel Fernandes, as quotas de mulheres nas listas de deputados são uma forma de "engenharia social" equivalente ao genocídio organizado por Pol Pot e explica-nos que esse "pecado" consiste em "tentar mudar a sociedade por via legislativa". Ora a tentativa de mudar a sociedade por via legislativa deu-nos coisas pavorosas como, por exemplo, a obrigatoriedade de conduzir à direita. Se acham que essa lei não mudou a sociedade, tentem imaginar como seria ela se tal regra não existisse. Devia haver limites para o disparate quando se pretende discutir um assunto com um mínimo de seriedade.
8. A direita moderna, de cariz agressivamente revolucionário, não tem o direito de criticar a "engenharia social" - um tradicional e respeitável argumento conservador contra as transformações radicais da sociedade - porque ela mesma não defende outra coisa. Pois o que é a tentativa de construir nações e impor regimes pretensamente democráticos em países como o Iraque senão "engenharia social" da mais cega e absurda? E que outro nome poderemos dar ao programa de desmantelamento do Estado social que ela propõe?
9. Do que eu gostava era de ver esses mesmos políticos do PSD e do PP que se opõem às quotas parlamentares para as mulheres combaterem com a mesma veemência as quotas de nacionalidades para comissários e funcionários da Comissão Europeia. Porque será que nesse caso não se aplica o argumento segundo o qual o único critério de escolha deve ser o da competência?
10. Há dias, um destacado jornalista do Público escreveu que "discriminação positiva" é uma expressão que encerra uma contradição nos termos. Se me permite, sugiro-lhe que consulte um dicionário para saber o que quer dizer "discriminação" e, já agora, também o que quer dizer "positivo". A isto chegámos!
31.3.06
29.3.06
Diga 333
Se me tivessem perguntado a minha opinião, eu teria sugerido que, em vez de 333 medidas de desburocratização, o Governo anunciasse antes 365. Pela razão de que as reformas são uma coisa que se deve fazer aos poucos e poucos mas continuamente - todos os dias do ano.
Árbitro comprado
São onze e meia da noite. Na SIC Notícias, uma luzida companhia analisa com o ar mais sério deste mundo a arbitragem do jogo que terá lugar dentro de duas semanas em Camp Nou. Tendo em conta que está em causa o Benfica, essa realidade fantasmática cuja grandeza se alimenta de jogos que não serão jogados, de jogadores que nunca serão contratados e de golos que jamais serão marcados, não há nisto nada de estranho.
Não vi o desafio desta noite. Fico a saber que o árbitro terá deixado por marcar um penalty contra o Barcelona. (Só um? Pelos padrões habituais quando há jogo na Luz, parece-me coisa pouca.) A confirmar-se o erro do juiz, não duvido que ele estava comprado pelo SLB. É que nada, absolutamente nada, gera tão esfuziante alegria por aquelas bandas como um eventual penalty não assinalado. Remoer pérfidas arbitragens ou imaginar sórdidas conspirações é o maior prazer que o futebol encerra para os da águia ao peito.
Depois desta real ou imaginária espoliação, o Benfica já pode ser eliminado da Liga dos Campeões com a satisfação do dever cumprido - e, enfim, descansar em paz.
Não vi o desafio desta noite. Fico a saber que o árbitro terá deixado por marcar um penalty contra o Barcelona. (Só um? Pelos padrões habituais quando há jogo na Luz, parece-me coisa pouca.) A confirmar-se o erro do juiz, não duvido que ele estava comprado pelo SLB. É que nada, absolutamente nada, gera tão esfuziante alegria por aquelas bandas como um eventual penalty não assinalado. Remoer pérfidas arbitragens ou imaginar sórdidas conspirações é o maior prazer que o futebol encerra para os da águia ao peito.
Depois desta real ou imaginária espoliação, o Benfica já pode ser eliminado da Liga dos Campeões com a satisfação do dever cumprido - e, enfim, descansar em paz.
23.3.06
21.3.06
Durão Barroso e a Guerra do Iraque
"A ambição, o interesse, o desejo de fazer falar de mim triunfaram; e a guerra foi decidida." Assim explicou Frederico da Prússia a guerra contra Maria Teresa, rainha da Boémia e da Hungria.
20.3.06
Louvor da Brandoa
Pouco depois de se ter transferido para a Fiorentina, Rui Costa foi entrevistado por um jornal desportivo português que o questionou sobre a sua adaptação a Itália. O jogador admitiu que, embora gostasse de Florença, sentia saudades da Brandoa.
Moral da história: eu lembro-me de cada coisa...
Moral da história: eu lembro-me de cada coisa...
16.3.06
Tempos interessantes
Ainda a propósito do caso Profumo, recordo que, quando ele saltou para as primeiras páginas dos jornais, Kennedy ainda teria mais oito meses de vida. Foi nesse mesmo ano de 1963 que De Gaulle, recém escapado ao atentado do Petit-Clamart, vetou a entrada do Reino Unido na Comunidade Europeia. A União Soviética aceitou retirar os seus militares de Cuba. A Indonésia abandonou a Federação Malaia. O Concílio Vaticano decretou que a missa podia passar a ser dita nas línguas vernáculas. João XXIII publicou a encíclica "Pacem in Terris" poucos meses antes de falecer. O agente duplo Kim Philby refugiou-se em Moscovo. O grande assalto ao comboio correio rendeu a astronómica quantia de 2,5 milhões de libras. Kennedy dirigiu-se ao Congresso em defesa dos direitos cívicos. A grande marcha sobre Washington culminou com o celebrado discurso de Martin Luther King "I have a dream". Foi proposta a construção do Túnel sob a Mancha. Os Beatles chegaram ao Top 1 e lançaram o seu primeiro LP. Dylan triunfou no festival de Newport. Estreou "O Leopardo" de Visconti.
Começou a guerra na Guiné Bissau. Teve lugar no Terreiro do Paço uma gigantesca manifestação de apoio a Salazar. As manifestações do 1º de Maio em Lisboa saldaram-se por um morto e numerosos feridos. As notas do Katanga foram impressas numa tipografia de Lisboa perto da Avenida de Roma. O Benfica perdeu a final da Taça dos Campeoes Europeus contra o Milan. Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vasco Pulido Valente, Nuno Brederode Santos e João Cravinho, entre outros, criaram o Movimento de Acção Revolucionária. Francisco Martins Rodrigues e Pulido Valente abandonaram o Partido Comunista para fundar a primeira organização maoista portuguesa. Alçada Baptista fundou "O Tempo e o Modo". Poucos meses depois, já em 1964, Mário Soares fundaria a Acção Socialista.
Mas o facto essencial de 1963 foi, segundo Philip Larkin, a invenção do sexo, que ele assinalou nestes termos:
Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(Which was rather late for me) -
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.
Louvor do Barreiro
Contou-me um amigo, à época Vice-Presidente do Benfica, que um dia o Filipovic, recém-chegado a Portugal e provisoriamente instalado num hotel com a mulher (lembram-se dela?), lhe veio perguntar como se ia para o Barreiro.
- Para o Barreiro? E o que vais tu fazer ao Barreiro?
- Vou procurar casa...
- Procurar casa no Barreiro? De onde é que te veio essa ideia?
- O Carlos Manuel diz que é o melhor sítio para se morar..
Moral da história: não há terra como a nossa.
- Para o Barreiro? E o que vais tu fazer ao Barreiro?
- Vou procurar casa...
- Procurar casa no Barreiro? De onde é que te veio essa ideia?
- O Carlos Manuel diz que é o melhor sítio para se morar..
Moral da história: não há terra como a nossa.
O Cartão de Satanás
A anunciada introdução do maléfico Cartão Único pelo Governo tem sido objecto das mais aflitas maldições.
Dizem-nos que, munido dessa terrível arma de perseguição massiva, o Estado vai ficar a saber tudo sobre as nossas vidas privadas - como se a generalidade das pessoas tivessem uma! -, que vai espiolhar ao mais ínfimo pormenor a nossa intimidade, que vai fiscalizar os nossos mínimos passos.
E apontam como exemplo alternativo a Inglaterra, onde, recordam-nos, nem sequer Bilhete de Identidade existe. Ora a Inglaterra, meus senhores, não tem Bilhete de Identidade pela mesma razão que não tem Constituição, conduz à esquerda e resistiu por tanto tempo ao sistema métrico. Ou seja, por excentricidade ou saloice, ao vosso gosto.
Em contrapartida, no Reino de Sua Majestade (como nos EUA e ao contrário da Europa Continental), são mínimas as restrições legais à constituição de bases de dados com toda a informação imaginável sobre o pensam, preferem, fazem e compram os cidadãos. Qualquer pessoa com capacidade financeira para tal - e, por conseguinte, também a polícia, designadamente a secreta - pode adquiri-la e usá-la para o que quiser, incluindo para seguir a par e passo o trajecto de um indivíduo.
A finalizar, caros liberais da treta, reparem que, mesmo em Portugal, o cartão de crédito que trazem na carteira permite ao banco que o emite saber mais sobre a vossa vida privada do que o Estado português alguma vez poderá sonhar.
Dizem-nos que, munido dessa terrível arma de perseguição massiva, o Estado vai ficar a saber tudo sobre as nossas vidas privadas - como se a generalidade das pessoas tivessem uma! -, que vai espiolhar ao mais ínfimo pormenor a nossa intimidade, que vai fiscalizar os nossos mínimos passos.
E apontam como exemplo alternativo a Inglaterra, onde, recordam-nos, nem sequer Bilhete de Identidade existe. Ora a Inglaterra, meus senhores, não tem Bilhete de Identidade pela mesma razão que não tem Constituição, conduz à esquerda e resistiu por tanto tempo ao sistema métrico. Ou seja, por excentricidade ou saloice, ao vosso gosto.
Em contrapartida, no Reino de Sua Majestade (como nos EUA e ao contrário da Europa Continental), são mínimas as restrições legais à constituição de bases de dados com toda a informação imaginável sobre o pensam, preferem, fazem e compram os cidadãos. Qualquer pessoa com capacidade financeira para tal - e, por conseguinte, também a polícia, designadamente a secreta - pode adquiri-la e usá-la para o que quiser, incluindo para seguir a par e passo o trajecto de um indivíduo.
A finalizar, caros liberais da treta, reparem que, mesmo em Portugal, o cartão de crédito que trazem na carteira permite ao banco que o emite saber mais sobre a vossa vida privada do que o Estado português alguma vez poderá sonhar.
15.3.06
John Profumo, in memoriam
Depois de Christine Keeler, a política nunca mais voltou a ser a mesma coisa. Em suma, um momento alto da história do conservadorismo britânico, que deu ao mundo, e especialmente aos trabalhistas, uma lição de bom gosto. Só nos anos 60 havia casos sexuais com este nível. A guerra fria também tinha o seu glamour.
14.3.06
Que fazer com tanto dinheiro?
Helena Garrido interroga-se muito a propósito no DN de hoje sobre a lógica empresarial da OPA do Millennium BCP sobre o BPI.
Por mim, ponho-me a imaginar que o caso é o seguinte: com lucros tão elevados no exercício de 2005, os nossos bancos têm um problema muito real e muito prosaico que consiste nisto: que fazer com tanto dinheiro?
Se abundassem projectos empresariais inovadores - digamos, coisas que contribuissem para reduzir o déficite das transacções correntes - , a pergunta teria uma resposta simples. Como isso é o que mais falta, e nem se vislumbram grandiosas oportunidades de privatização no horizonte, não resta outra alternativa senão a de os bancos se comprarem uns aos outros. (De passagem, note-se, reduz-se ainda mais a já tão escassa concorrência no sector financeiro.)
Manifestamente, estas movimentações bolsistas são um sintoma, não uma solução.
Por outro lado, convém lembrar que, do ponto de vista macroeconómico, a compra de um banco português por outro banco português não implica investimento nenhum: o que uns gastam é o que os outros recebem. As coisas já seriam diferentes se o comprador fosse, digamos, espanhol.
De modo que ainda fica a faltar saber o que farão com o dinheiro os accionistas que venderem (se venderem) a sua parte do BPI. Como não podem gastá-lo todo a comer, a beber e a passear, forçoso é que acabem por investi-lo em qualquer coisa. E aí reside a nossa esperança: mais ou mais cedo alguém terá que aplicar o dinheiro em algo útil para a competitividade da economia portuguesa. A não ser, é claro, que opte por aplicá-lo na China, no Cazaquistão ou na Bielorússia...
Por mim, ponho-me a imaginar que o caso é o seguinte: com lucros tão elevados no exercício de 2005, os nossos bancos têm um problema muito real e muito prosaico que consiste nisto: que fazer com tanto dinheiro?
Se abundassem projectos empresariais inovadores - digamos, coisas que contribuissem para reduzir o déficite das transacções correntes - , a pergunta teria uma resposta simples. Como isso é o que mais falta, e nem se vislumbram grandiosas oportunidades de privatização no horizonte, não resta outra alternativa senão a de os bancos se comprarem uns aos outros. (De passagem, note-se, reduz-se ainda mais a já tão escassa concorrência no sector financeiro.)
Manifestamente, estas movimentações bolsistas são um sintoma, não uma solução.
Por outro lado, convém lembrar que, do ponto de vista macroeconómico, a compra de um banco português por outro banco português não implica investimento nenhum: o que uns gastam é o que os outros recebem. As coisas já seriam diferentes se o comprador fosse, digamos, espanhol.
De modo que ainda fica a faltar saber o que farão com o dinheiro os accionistas que venderem (se venderem) a sua parte do BPI. Como não podem gastá-lo todo a comer, a beber e a passear, forçoso é que acabem por investi-lo em qualquer coisa. E aí reside a nossa esperança: mais ou mais cedo alguém terá que aplicar o dinheiro em algo útil para a competitividade da economia portuguesa. A não ser, é claro, que opte por aplicá-lo na China, no Cazaquistão ou na Bielorússia...
12.3.06
O capital não tem pátria, excepto quando é estrangeiro (2)
Foi pouco notado que, ainda antes de o Governo espanhol optar por dificultar a compra da Endesa pela alemã E.On e de o executivo francês decidir promover a fusão da EDF com o grupo Suez para prevenir a tomada de controlo por um grupo estrangeiro, já a Presidente da Comunidade Autonómica de Madrid manifestara o seu alarme por a Endesa poder vir a ficar sob a alçada de uma empresa estrangeira. A "empresa estrangeira" era, neste caso, a catalã Gas Natural.
Estas indignações nacionalistas são, no essencial, absurdas. Em geral, nenhum interesse respeitável é ferido quando uma empresa de um país compra uma empresa de outro país. É claro que, nisto como em tudo, há excepções, mas não creio que seja este o caso.
Dito isto, é perfeitamente possível que, paradoxalmente, a Europa nada perca com estes entraves à mobilidade dos capitais no sector da energia. As anunciadas OPAs trans-europeias são justificadas pelos ganhos resultantes das consequentes economias de escala. Todavia, é muito duvidoso que esses ganhos existam. O mais provável é que a consolidação do sector da energia à escala europeia visasse antes de mais colocar entraves à concorrência no próprio momento em que ela pela primeira vez ameaçava tornar-se real.
Por conseguinte, embora absurdo, o proteccionismo nacionalista poderá por esta vez ajudar a promover a concorrência em vez de condicioná-la e de, por esse motivo, beneficiar os consumidores e as empresas que actualmente pagam, na Europa, preços excessivamente elevados pela energia que compram.
5.3.06
Wolfowitz no Banco Mundial
Lido no The Economist desta semana:
Em resumo, a asneira continua.
"[Wolfowitz] relies heavily on a small group of advisers he brought with him, none of whom are development experts. Bank insiders complain that the newcomers have no idea how to run the organization and that their corruption drive is aimed more at impressing America's Congress than at helping the world's poor. Several top veterans have left."
Em resumo, a asneira continua.
Mau começo
Finalmente, Cavaco decide-se a revelar as suas opinioes sobre politica internacional. Preocupantes, como seria de esperar de quem tanto se esforcou por esconde-las dos eleitores e que, mesmo agora, acha mais adequado comecar por da-las a conhecer aos espanhois.
4.3.06
O jornalista que perdeu a agenda
A proposito de double standards, eis uma observaçao que me parece altamente apropriada. Este comportamento, vindo do mesmissimo jornalista impoluto que lançou uma cruzada contra as agendas mediaticas ocultas, e de facto notavel.
Nova recaída
O artigo de hoje do VPV no Público, onde invoca uma alegada permissividade do Estado salazarista em relação aos comportamentos individuais ("não regulava, não fiscalizava, não espremia o imposto até ao último tostão"), fez-me pensar que ele deve andar um bocadinho esquecido.
Apenas três exemplos:
a) Será que o Vasco nunca pagou o "imposto de isqueiro"?
b) Será que já não se recorda da interdição de "atravessar em diagonal", um conceito tão absurdo que é hoje difícil acreditar que alguma vez tenha existido?
c) Será que nunca foi interpelado pela polícia por beijar a namorada na rua? (Eu fui.)
Eu sei, eu sei que é complicado ter uma pessoa que dizer qualquer coisa todos os dias. Mas - por amor de Deus! - há limites.
Apenas três exemplos:
a) Será que o Vasco nunca pagou o "imposto de isqueiro"?
b) Será que já não se recorda da interdição de "atravessar em diagonal", um conceito tão absurdo que é hoje difícil acreditar que alguma vez tenha existido?
c) Será que nunca foi interpelado pela polícia por beijar a namorada na rua? (Eu fui.)
Eu sei, eu sei que é complicado ter uma pessoa que dizer qualquer coisa todos os dias. Mas - por amor de Deus! - há limites.
3.3.06
1.3.06
Che Guevara, Parte II - O Regresso do Herói
Um post de Valter Hugo Mãe sobre atrocidades diversas alegadamente cometidas pelo Che suscitou algumas reacções de aplauso (aqui e aqui) e outras críticas (aqui e aqui). Vai daí, lembrei-me de ir ao baú repescar este artigo que, ligeiramente condensado, publiquei no Expresso de 9.8.97, pouco depois da descoberta das ossadas de Guevara. Quanto à polémica que agora agita as mentes, escreverei quando me passar a preguiça e se me sair alguma coisa de jeito.
Subitamente, sem aviso prévio, uma equipa de cientistas argentinos, bolivianos e cubanos desenterrou um mito que lentamente resvalara para o esquecimento ao longo do último quarto de século.
Não menos surpreendente, porém, foi a extensão do sobressalto que percorreu os media nas últimas semanas a propósito da alegada descoberta das ossadas de Ernesto Che Guevara. Pois que interesse podem ter para o grande público os restos mortais de um combatente de uma causa mais morta do que ele? Mais: que importa que eles pertençam a quem se diz pertencerem, se daí não resulta nenhum esclarecimento adicional significativo das circunstâncias do seu martírio?
Uma estranha comoção
Se a magnitude da cobertura jornalística do evento me apanhou de surpresa a mim, obsoleto quarentão, imagine-se o pasmo das novas gerações. Como poderão elas compreender esta comoção que ousa competir pela atenção do público com as últimas fotografias chegadas fresquinhas de Marte?
Desde logo, é preciso lembrar que o Che não era um revolucionário como os outros. Jovens razoavelmente indiferentes não só ao marxismo, como também às lutas anti-imperialistas latino-americanas adornaram nos anos sessenta os seus quartos adolescentes, para irritação dos progenitores, com um orgulhoso poster do Che, não raro partilhando a mesma parede com Marylin ou James Dean.
Guevara foi, nessa época, um verdadeiro fenómeno pop, rivalizando em popularidade com ídolos rock como Lennon e Hendrix. Integrou, assim, esse estranho movimento cultural planetário envolvendo toda uma geração que acreditava ter vindo ao mundo com a missão expressa de virá-lo de pernas para o ar.
Uma vida e a sua transposição mítica
Quem era, de facto, Che Guevara? Nasceu em Rosário, Argentina, em 1928. (É quase obsceno recordar que, se ainda fosse vivo, teria completado no passado dia 14 de Junho 69 anos de idade.) Formou-se em medicina em Buenos Aires, mas não se resignou a essa profissão. Em 1956, meses depois de conhecer Fidel, integrou-se no grupo de exilados que desembarcou em Cuba, iniciando a luta armada contra a ditadura sanguinária de Baptista suportada pelos EUA. Formou e dirigiu então o lendário grupo guerrilheiro da Sierra Maestra.
Após a vitória da revolução, foi sucessivamente Director do Instituto Nacional da Reforma Agrária e do Banco Nacional de Cuba, e depois Ministro da Indústria. Ignoramos com que competência desempenhou esses cargos, mas é de admitir que não tenha sido excessiva.
Em 1965, porém, é o golpe de teatro, algo embaraçoso para Fidel: Guevara abandona os seus cargos e parte em demanda de novas revoluções, como convém aos irrequietos cavaleiros andantes. Propunha-se, dizia ele, criar “um, dois, três, muitos Vietnames”. Para quem ache que um Vietname já era horror que bastasse, tiradas destas não abonam muito em favor do seu juízo.
O semeador de revoluções
Seja como for, a verdade é que, em vez de se deixar ficar em Cuba a bebericar rum, a fumar havanos e a dançar a rumba com as companheiras, decidiu jogar tudo de novo num lance radical de ruptura com o acomodamento aos rituais do poder revolucionário triunfante, digno de um Tintim existencialista. Mesmo descontando todas as possíveis e imagináveis motivações menos altruístas, é indisputável a grandeza do gesto. E foi de facto essa desprendida abdicação que ficou a marcar decisivamente a nossa memória da personagem.
Após abandonar Cuba, Guevara tentou primeiro fazer o seu Vietname privado no Congo, sem grandes resultados. Em 1967, acompanhado por Régis Debray, um filósofo de boulevard em busca de metafísica aplicada, mudou-se para a Bolívia, onde as coisas não lhe correram melhor, talvez porque os camponeses pobres não tinham comprado os seus posters nem lido Camus.
Um dia, os jornais de todo o mundo confirmaram o desastre adivinhado: o Che fora capturado e sumariamente executado pelo exército boliviano. Apesar das fotografias do Che, já cadáver, distribuídas pelas agências noticiosas, a dúvida sobre a veracidade da notícia persistiu durante alguns dias. Até que, por fim, a breve esperança deu lugar à longa resignação.
Che Guevara Superstar
Ernesto Che Guevara foi nem mais nem menos do que o primeiro revolucionário a ser acolhido no seio do star-system - essa forma particular, moderna, do culto da personalidade.
Logo à partida, a matéria-prima para a construção do mito era de estupenda qualidade. A coragem física e moral da personagem eram evidentes. A beleza física e a fotogenia só podiam ajudar à imagem de um guerrilheiro que frequentava indiscriminadamente as páginas da Time, da Flama ou do Salut les Copains. De origem burguesa e pendor intelectual, preferira, apesar disso, misturar-se com o povo e partilhar as suas agruras. E, no entanto, ele não era, obviamente, um populista: nada havia nele de vulgar, as suas maneiras respiravam nobreza.
Do ponto de vista da juventude da época, posicionava-se inequivocamente do lado dos bons, não só pela manifesta oposição ao imperialismo americano, como pela insinuada (mas nunca plenamente confirmada) independência em relação ao comunismo soviético. Essa suposta independência, peça chave da imagem guevarista, adivinhava-se antes de mais na manifesta informalidade de atitudes e maneiras, pouco compatível com a rigidez doutrinária do partido de Lenine e Estaline.
Em resumo, tudo em Guevara o tornava particularmente indicado para simbolizar o revolucionário puro, destituído de ambição pessoal ou de apego ao poder, o romântico combatente da liberdade disposto a levar até ao supremo sacrifício pessoal a sua entrega absoluta à causa da emancipação dos fracos e oprimidos. Noutro século, teria seguramente sido aclamado como santo. No nosso, é possível que tenha inspirado os modernos Cristos de Pasolini ou Andrew Lloyd Weber.
Filho de Marx e do telejornal das 8
Encontramos, assim, reunidos na pessoa de Guevara em alto grau todos os ingredientes essenciais de que o star-system necessita para produzir um semi-deus: alta visibilidade, traços físicos ou de carácter apelativos, vida aventurosa, aura de mistério, imprevisibilidade, independência de espírito, carácter. A partir daqui, iniciou-se o anónimo e persistente labor de efabulação dos media; até que, a dada altura, se tornou impossível distinguir à vista desarmada entre a personagem real e a ficcionada.
A imagem projectada pelos media difundiu-se, em seguida, através da parafernália dos artigos de merchandising: posters, tee-shirts, pins, discos, etc. A um nível mais primário, penetrou no quotidiano juvenil por via da imitação do penteado ou da barba, do blusão camuflado, do lenço vermelho, da bóina preta ou da aplicação da estrela vermelha no vestuário.
Foi aqui, nesta apropriação de um dos seus heróis pela cultura pop, que o comunismo começou de facto a ser derrotado. Pois que maior humilhação poderia o socialismo revolucionário sofrer do que essa de ser transmutado em bem de consumo de massas, os seus ícones convertidos em objectos de merchandising, a sua ideologia transformada num mero emblema do segmento jovem do mercado global? Tudo isto antes, muito antes, de a Coca-Cola e os McDonald’s ocuparem pacificamente a União Soviética e de os sovietes serem reduzidos à condição de uma marca de jeans.
Morrem jovens os favoritos dos deuses
No star-system, tudo se passa como se a pessoa que suporta o mito fosse apenas o pretexto para a construção de um semi-deus com pouca ou nenhuma relação com a personagem real.
A morte prematura do herói, de preferência em condições trágicas, só pode ajudar ao mito, porque afasta para sempre a possibilidade da sua queda, impedindo-o compulsivamente de caír em tentações susceptíveis de ameaçarem a sua própria credibilidade. Proibindo-o de continuar a ser homem como nós, a morte imobiliza-o eternamente na pose de semi-deus, congelado para a eternidade como uma fotografia instantânea que só mostra o seu lado mais favorável.
Do mesmo passo, fica a populaça definitivamente impedida de praticar o seu segundo desporto favorito a seguir à adoração dos ídolos, a saber, a demolição dos ídolos que ela mesma promoveu.
De Alexandre Magno a Byron são inúmeros os ungidos dos deuses que, ainda jovens, escaparam pela pouco invejável porta da morte à cruel inversão do julgamento da opinião pública uma vez passado o apogeu da sua glória. Morrem novos os favoritos dos deuses, porque estes, mau grado os seus poderes sobrenaturais, não têm outra forma de poupá-los à humilhação que não essa de furtá-los mais cedo ao convívio dos humanos.
O horizonte é rosa pálido
Tal como os baby-boomers ansiavam, o mundo foi mesmo virado de pernas para o ar, mas não exactamente da forma prevista.
É certo que o muro de Berlim ruíu e que a União Soviética se desintegrou. É certo que os regimes autoritários foram varridos da face da Europa, e que, na própria América Latina, as ditaduras militares são hoje uma raridade. É certo que o apartheid foi abolido na África do Sul, e que a segregação racial regrediu rapidamente nos EUA. É certo que o autoritarismo deixou de pautar as relações sociais e que, por toda a parte, os costumes se tornaram mais informais e menos repressivos. É certo finalmente, que o modelo de realização das mulheres deixou de ser o da fada do lar.
E, no entanto... No entanto, não era bem isto que haviam imaginado. A substituição do marxismo-leninismo-pensamento Mao Tsé-tung pela social-democracia-pensamento Mário Soares não é propriamente uma evolução muito exaltante.
Os baby-boomers estão hoje no poder em toda a parte: nas escolas, nas artes, nas empresas, nos media e, como é natural, também no aparelho de Estado. Para eles, Guevara é uma memória impoluta e, portanto, um objecto ideal de nostalgia. Ao contrário deles, morreu mesmo a tempo de evitar assistir à bancarrota dos seus sonhos. Se acaso Deus existe, e se o Céu é a recompensa dos justos, então Guevara é o supremo bem-aventurado.
Ao levá-lo, a morte livrou-o de apodrecer lentamente como Fidel Castro, ou de ser forçado a renegar, como milhões de outros, as “ilusões da juventude”.
É claro que é muito mais fácil permanecer fiel aos ideais quando se está morto, mas este argumento eminentemente razoável contra o endeusamento do Che dificilmente será escutado.
P.S. - Do que ficou escrito pode também concluir-se quão injusto é acusar o marketing político de tratar os candidatos eleitorais como detergentes. Como vimos, as técnicas de posicionamento e construção de imagem foram largamente aplicadas com grande sucesso na política revolucionária antes de triunfarem na guerra comercial pela ocupação das prateleiras dos supermercados. Por conseguinte, não foram os políticos que imitaram os detergentes - foram os detergentes que imitaram os políticos.
Subitamente, sem aviso prévio, uma equipa de cientistas argentinos, bolivianos e cubanos desenterrou um mito que lentamente resvalara para o esquecimento ao longo do último quarto de século.
Não menos surpreendente, porém, foi a extensão do sobressalto que percorreu os media nas últimas semanas a propósito da alegada descoberta das ossadas de Ernesto Che Guevara. Pois que interesse podem ter para o grande público os restos mortais de um combatente de uma causa mais morta do que ele? Mais: que importa que eles pertençam a quem se diz pertencerem, se daí não resulta nenhum esclarecimento adicional significativo das circunstâncias do seu martírio?
Uma estranha comoção
Se a magnitude da cobertura jornalística do evento me apanhou de surpresa a mim, obsoleto quarentão, imagine-se o pasmo das novas gerações. Como poderão elas compreender esta comoção que ousa competir pela atenção do público com as últimas fotografias chegadas fresquinhas de Marte?
Desde logo, é preciso lembrar que o Che não era um revolucionário como os outros. Jovens razoavelmente indiferentes não só ao marxismo, como também às lutas anti-imperialistas latino-americanas adornaram nos anos sessenta os seus quartos adolescentes, para irritação dos progenitores, com um orgulhoso poster do Che, não raro partilhando a mesma parede com Marylin ou James Dean.
Guevara foi, nessa época, um verdadeiro fenómeno pop, rivalizando em popularidade com ídolos rock como Lennon e Hendrix. Integrou, assim, esse estranho movimento cultural planetário envolvendo toda uma geração que acreditava ter vindo ao mundo com a missão expressa de virá-lo de pernas para o ar.
Uma vida e a sua transposição mítica
Quem era, de facto, Che Guevara? Nasceu em Rosário, Argentina, em 1928. (É quase obsceno recordar que, se ainda fosse vivo, teria completado no passado dia 14 de Junho 69 anos de idade.) Formou-se em medicina em Buenos Aires, mas não se resignou a essa profissão. Em 1956, meses depois de conhecer Fidel, integrou-se no grupo de exilados que desembarcou em Cuba, iniciando a luta armada contra a ditadura sanguinária de Baptista suportada pelos EUA. Formou e dirigiu então o lendário grupo guerrilheiro da Sierra Maestra.
Após a vitória da revolução, foi sucessivamente Director do Instituto Nacional da Reforma Agrária e do Banco Nacional de Cuba, e depois Ministro da Indústria. Ignoramos com que competência desempenhou esses cargos, mas é de admitir que não tenha sido excessiva.
Em 1965, porém, é o golpe de teatro, algo embaraçoso para Fidel: Guevara abandona os seus cargos e parte em demanda de novas revoluções, como convém aos irrequietos cavaleiros andantes. Propunha-se, dizia ele, criar “um, dois, três, muitos Vietnames”. Para quem ache que um Vietname já era horror que bastasse, tiradas destas não abonam muito em favor do seu juízo.
O semeador de revoluções
Seja como for, a verdade é que, em vez de se deixar ficar em Cuba a bebericar rum, a fumar havanos e a dançar a rumba com as companheiras, decidiu jogar tudo de novo num lance radical de ruptura com o acomodamento aos rituais do poder revolucionário triunfante, digno de um Tintim existencialista. Mesmo descontando todas as possíveis e imagináveis motivações menos altruístas, é indisputável a grandeza do gesto. E foi de facto essa desprendida abdicação que ficou a marcar decisivamente a nossa memória da personagem.
Após abandonar Cuba, Guevara tentou primeiro fazer o seu Vietname privado no Congo, sem grandes resultados. Em 1967, acompanhado por Régis Debray, um filósofo de boulevard em busca de metafísica aplicada, mudou-se para a Bolívia, onde as coisas não lhe correram melhor, talvez porque os camponeses pobres não tinham comprado os seus posters nem lido Camus.
Um dia, os jornais de todo o mundo confirmaram o desastre adivinhado: o Che fora capturado e sumariamente executado pelo exército boliviano. Apesar das fotografias do Che, já cadáver, distribuídas pelas agências noticiosas, a dúvida sobre a veracidade da notícia persistiu durante alguns dias. Até que, por fim, a breve esperança deu lugar à longa resignação.
Che Guevara Superstar
Ernesto Che Guevara foi nem mais nem menos do que o primeiro revolucionário a ser acolhido no seio do star-system - essa forma particular, moderna, do culto da personalidade.
Logo à partida, a matéria-prima para a construção do mito era de estupenda qualidade. A coragem física e moral da personagem eram evidentes. A beleza física e a fotogenia só podiam ajudar à imagem de um guerrilheiro que frequentava indiscriminadamente as páginas da Time, da Flama ou do Salut les Copains. De origem burguesa e pendor intelectual, preferira, apesar disso, misturar-se com o povo e partilhar as suas agruras. E, no entanto, ele não era, obviamente, um populista: nada havia nele de vulgar, as suas maneiras respiravam nobreza.
Do ponto de vista da juventude da época, posicionava-se inequivocamente do lado dos bons, não só pela manifesta oposição ao imperialismo americano, como pela insinuada (mas nunca plenamente confirmada) independência em relação ao comunismo soviético. Essa suposta independência, peça chave da imagem guevarista, adivinhava-se antes de mais na manifesta informalidade de atitudes e maneiras, pouco compatível com a rigidez doutrinária do partido de Lenine e Estaline.
Em resumo, tudo em Guevara o tornava particularmente indicado para simbolizar o revolucionário puro, destituído de ambição pessoal ou de apego ao poder, o romântico combatente da liberdade disposto a levar até ao supremo sacrifício pessoal a sua entrega absoluta à causa da emancipação dos fracos e oprimidos. Noutro século, teria seguramente sido aclamado como santo. No nosso, é possível que tenha inspirado os modernos Cristos de Pasolini ou Andrew Lloyd Weber.
Filho de Marx e do telejornal das 8
Encontramos, assim, reunidos na pessoa de Guevara em alto grau todos os ingredientes essenciais de que o star-system necessita para produzir um semi-deus: alta visibilidade, traços físicos ou de carácter apelativos, vida aventurosa, aura de mistério, imprevisibilidade, independência de espírito, carácter. A partir daqui, iniciou-se o anónimo e persistente labor de efabulação dos media; até que, a dada altura, se tornou impossível distinguir à vista desarmada entre a personagem real e a ficcionada.
A imagem projectada pelos media difundiu-se, em seguida, através da parafernália dos artigos de merchandising: posters, tee-shirts, pins, discos, etc. A um nível mais primário, penetrou no quotidiano juvenil por via da imitação do penteado ou da barba, do blusão camuflado, do lenço vermelho, da bóina preta ou da aplicação da estrela vermelha no vestuário.
Foi aqui, nesta apropriação de um dos seus heróis pela cultura pop, que o comunismo começou de facto a ser derrotado. Pois que maior humilhação poderia o socialismo revolucionário sofrer do que essa de ser transmutado em bem de consumo de massas, os seus ícones convertidos em objectos de merchandising, a sua ideologia transformada num mero emblema do segmento jovem do mercado global? Tudo isto antes, muito antes, de a Coca-Cola e os McDonald’s ocuparem pacificamente a União Soviética e de os sovietes serem reduzidos à condição de uma marca de jeans.
Morrem jovens os favoritos dos deuses
No star-system, tudo se passa como se a pessoa que suporta o mito fosse apenas o pretexto para a construção de um semi-deus com pouca ou nenhuma relação com a personagem real.
A morte prematura do herói, de preferência em condições trágicas, só pode ajudar ao mito, porque afasta para sempre a possibilidade da sua queda, impedindo-o compulsivamente de caír em tentações susceptíveis de ameaçarem a sua própria credibilidade. Proibindo-o de continuar a ser homem como nós, a morte imobiliza-o eternamente na pose de semi-deus, congelado para a eternidade como uma fotografia instantânea que só mostra o seu lado mais favorável.
Do mesmo passo, fica a populaça definitivamente impedida de praticar o seu segundo desporto favorito a seguir à adoração dos ídolos, a saber, a demolição dos ídolos que ela mesma promoveu.
De Alexandre Magno a Byron são inúmeros os ungidos dos deuses que, ainda jovens, escaparam pela pouco invejável porta da morte à cruel inversão do julgamento da opinião pública uma vez passado o apogeu da sua glória. Morrem novos os favoritos dos deuses, porque estes, mau grado os seus poderes sobrenaturais, não têm outra forma de poupá-los à humilhação que não essa de furtá-los mais cedo ao convívio dos humanos.
O horizonte é rosa pálido
Tal como os baby-boomers ansiavam, o mundo foi mesmo virado de pernas para o ar, mas não exactamente da forma prevista.
É certo que o muro de Berlim ruíu e que a União Soviética se desintegrou. É certo que os regimes autoritários foram varridos da face da Europa, e que, na própria América Latina, as ditaduras militares são hoje uma raridade. É certo que o apartheid foi abolido na África do Sul, e que a segregação racial regrediu rapidamente nos EUA. É certo que o autoritarismo deixou de pautar as relações sociais e que, por toda a parte, os costumes se tornaram mais informais e menos repressivos. É certo finalmente, que o modelo de realização das mulheres deixou de ser o da fada do lar.
E, no entanto... No entanto, não era bem isto que haviam imaginado. A substituição do marxismo-leninismo-pensamento Mao Tsé-tung pela social-democracia-pensamento Mário Soares não é propriamente uma evolução muito exaltante.
Os baby-boomers estão hoje no poder em toda a parte: nas escolas, nas artes, nas empresas, nos media e, como é natural, também no aparelho de Estado. Para eles, Guevara é uma memória impoluta e, portanto, um objecto ideal de nostalgia. Ao contrário deles, morreu mesmo a tempo de evitar assistir à bancarrota dos seus sonhos. Se acaso Deus existe, e se o Céu é a recompensa dos justos, então Guevara é o supremo bem-aventurado.
Ao levá-lo, a morte livrou-o de apodrecer lentamente como Fidel Castro, ou de ser forçado a renegar, como milhões de outros, as “ilusões da juventude”.
É claro que é muito mais fácil permanecer fiel aos ideais quando se está morto, mas este argumento eminentemente razoável contra o endeusamento do Che dificilmente será escutado.
P.S. - Do que ficou escrito pode também concluir-se quão injusto é acusar o marketing político de tratar os candidatos eleitorais como detergentes. Como vimos, as técnicas de posicionamento e construção de imagem foram largamente aplicadas com grande sucesso na política revolucionária antes de triunfarem na guerra comercial pela ocupação das prateleiras dos supermercados. Por conseguinte, não foram os políticos que imitaram os detergentes - foram os detergentes que imitaram os políticos.
O significado de ser gay
Daniel Mendelsohn foi desencantar no "San Francisco Chronicle" estas impagáveis linhas da autoria do crítico Mick LaSalle acerca do filme "Brokeback Mountain":
O comentário de Mendelsohn não poderia ser mais certeiro:
The film is about two men who are in love, and it makes no sense. It makes no sense in terms of who they are, where they are, how they live and how they see themselves. It makes no sense in terms of what they do for a living or how they would probably vote in a national election....
The situation carries a lot of emotional power, largely because it's so specific and yet undefined. The two guys - cowboys - are in love with each other, but we don't ever quite know if they're in love with each other because they're gay, or if they're gay because they're in love with each other.
It's possible that if these fellows had never met, one or both would have gone through life straight.
O comentário de Mendelsohn não poderia ser mais certeiro:
Criticisms like LaSalle's, and those of the many other critics trying to persuade you that Brokeback isn't "really" gay, that Jack and Ennis's love "makes no sense" because they're Wyoming ranch hands who are likely to vote Republican, only work if you believe that being gay means having a certain look, or lifestyle (urban, say), or politics; that it's anything other than the bare fact of being erotically attached primarily to members of your own sex.
Subscrever:
Mensagens (Atom)