27.8.06
A glória militar
"A lança acertou-lhe entre a cabeça e o pescoço,
na vértebra mais alta da coluna, e cortou ambos os tendões.
A cabeça, a boca e o nariz chegaram muito mais depressa
ao chão enquanto tombava do que as pernas e os joelhos."
"Foi então em Ilioneu que Peneleu enterrou a lança,
debaixo do sobrolho, nas raízes dos olhos,
ejectando o próprio olho: a ponta penetrou direita
através do olho e da garganta; tombou para trás,
esticando ambos os braços. Mas Peneleu desembainhou
a espada afiada e desferiu-lhe um golpe no pescoço,
decapitando-lhe a cabeça com o elmo. No olho estava
ainda a lança potente; e levantando-a como uma papoila
mostrou-a aos Troianos e proferiu uma palavra ufanosa."
"Idomeneu estocou Erimante na boca com o bronze renitente.
Trespassou-lhe completamente o cérebro a lança de bronze,
Estilhaçando-lhe os brancos ossos. Para fora, sacudidos,
Saltaram os dentes e ambos os olhos se encheram de sangue.
Cuspiu através da boca e das narinas com expressão de pasmo
No semblante, mas depois veio encobri-lo a nuvem negra da morte."
"(...) mas Pátroclo aproximou-se
e deu-lhe uma estocada com a lança no maxilar direito
e fê-la trespassar os dentes; depois agarrou na lança
e levantou-o por cima do rebordo do carro, como o pescador
sentado num promontório do mar arrasta para a terra
um peixe sagrado com linha e anzol brilhante de bronze -
assim a lança brilhante o arrastou, embasbacado, do carro; e de cara
para baixo atirou-o ao chão. A vida deixou-o quando caíu."
"(...) Depois dele Aquiles matou Demoleonte,
valente baluarte da batalha, filho de Antenor,
penetrando-lhe a testa através do elmo com bocetes de bronze.
Porém o elmo de bronze não reteve a lança, mas através dele
penetrou a ponta e estilhaçou o osso. Os miolos por dentro
ficaram todos borrifados; e assim subjugou quem contra ele arremetia."
"(...) Mas Aquiles enterrou-lhe a espada no fígado.
Para fora lhe deslizou o fígado e o negro sangue que dele provinha
Encheu-lhe o peito."
"(...) Porém Aquiles aproximou-se de Múlio
e golpeou-o no ouvido. Através do outro ouvido atravessou
a ponta de bronze."
"A Deucalião, seguidamente, onde se juntam os tendões
do cotovelo, foi aí que o penetrou através do braço
com a ponte de bronze. Mas ele aguentou de braço pesado,
olhando a morte de frente. Aquiles desferiu-lhe no pescoço
um golpe com a espada, atirando para longe a cabeça com o elmo.
O tutano jorrou da coluna vertebral, o corpo estatelado no chão."
(Extractos de A Ilíada, tradução de Frederico Lourenço, Livros Cotovia)
26.8.06
Vindicação do terror
No Abrupto, Pacheco Pereira faz o favor de explicitar a estratégia do "quanto pior, melhor" que eu, há dois dias, atribuí à administração Bush:
Sobre este mesmo assunto, ler também Rui Tavares.
"Isto vai durar sempre? As minhas últimas reservas de optimismo alimentam debilmente a esperança de que não, em grande parte por um argumento ad terrorem: as coisas ainda vão piorar muito, muito mesmo, e pode ser que a catástrofe possa ser salvadora. Não é garantido, mas é uma esperança. Entretanto a tribo dos últimos moicanos continuará a ser dos últimos moicanos. Até ao último."
Sobre este mesmo assunto, ler também Rui Tavares.
Crimes de guerra
Na última edição da "London Review of Books", Michael Byers discute em detalhe os crimes de guerra cometidos por ambas as partes durante a recente guerra do Líbano.
Eis a sua conclusão geral:
Eis a sua conclusão geral:
"The absence of a reliable mechanism for prosecuting Hizbullah and Israeli leaders is less serious, however, than the support that Bush and Blair have given to clear violations of international law and the Geneva Conventions. The long term viability of these rules depends on the willingness of politicians - and the general public - to speak out in defence of international law."
Questões pertinentes
Nas últimas semanas, mais ou menos a propósito da guerra do Líbano, certos comentadores levantaram questões altamente pertinentes a que nenhuma pessoa inteligente e responsável pode esquivar-se. A lista que se segue inclui, a par de interrogações alheias, mais umas quantas da minha lavra:
Respostas a este apartado.
Porque é que se fala mais de Jean Charles, o imigrante brasileiro sumariamente executado pela polícia britânica, do que das vítimas dos ataques terroristas de Londres em 7 de Julho de 2005?
Porque é que se fala mais das centenas de vítimas libanesas dos bombardeamentos israelitas do que dos milhares de civis mortos pelos russos na Tchechénia?
Porque é que se fala mais dos dois soldados israelitas raptados pelo Hizbolá do que das 500 vítimas das bombas dos partidários da independência da Caxemira em Bombaím há dois meses atrás?
Porque é que se fala mais das 200 mortes causadas pelos atentados de Madrid em Março do ano passado do que do milhão de pessoas que todos os anos são vitimadas em África pela malária?
Porque é que se fala mais dos 2.500 mortos do 11 de Setembro do que das 40.000 vítimas que anualmente perecem em acidentes de viação nos EUA?
Porque é que se fala mais da hipotética transferência do Simão do que dos civis israelitas ceifados pelos rockets do Hizbolá?
Respostas a este apartado.
24.8.06
Por falar nisso...
Não sei porquê, o artigo de hoje de José Manuel Fernandes em defesa de Eduardo Cintra Torres fez-me lembrar que, onze meses passados, continuamos a aguardar que O Público revele quem foram os dois membros do secretariado nacional do PS que terão mantido conversações com Fátima Felgueiras com vista à preparação do seu regresso.
Ver mais longe
Não tencionava escrever mais de momento sobre este assunto. Mas este comentário força-me a explicar a minha posição.
1. Recapitulando. Israel entendeu oportuno bombardear e invadir o Sul do Líbano, sem dúvida embalado pela doce ilusão de que outrém se encarregaria depois de concluir o trabalho ocupando o território e desarmando o Hizbolá. Não estou ainda convencido de que Israel e os EUA tenham planeado com antecedência a operação, mas é evidente que, após ela ter sido desencadeada, Bush e Condoleeza tentaram forçar os acontecimentos nesse sentido.
2. Curiosamente, nem os EUA nem o Reino Unido, os únicos apoiantes de peso de Israel nesta ocorrência, estavam ou estão disponíveis para colocar tropas no terreno. Logo, o seu plano, para ser exequível, precisava da cumplicidade da União Europeia. Vai daí, falhou. Ainda assim, o direito de veto dos EUA permitiu-lhe boicotar o cessar-fogo enquanto a resolução a votar pelo Conselho de Segurança não mencionasse explicitamente a constituição da força de interposição e não lhe atribuísse a missão de desarmar o Hizbolá.
3. Convém, por isso, sublinhar que a resolução aprovada reflecte, antes de mais, o ponto de vista e a estratégia dos EUA, e que visa obter por novos meios aquilo que os bombardeamentos não conseguiram. Por conseguinte, nos termos em que se encontra redigida, a resolução é, também ela, mais uma patente tolice congeminada pelo Eixo da Estupidez. Porque não é crível que a força de interposição tenha condições para fazer aquilo que nem o exército israelita durante mais de uma década nem o libanês na última meia dúzia de anos lograram atingir, ou seja, o desarmamento do Hizbolá numa região esmagadoramente xiita e em cooperação com um exército de que 40% dos efectivos são xiitas.
4. Acresce que as partes que acordaram o cessar-fogo não merecem confiança. Israel traíu a sua má fé violando-o logo nos primeiros dias, e o Hizbolá fá-lo-á também logo que o considerar oportuno.
5. A famosa força de interposição corre, por conseguinte, o risco de se ver envolvida no Líbano num combate sem princípios nem saída, a exemplo do que se passa com os americanos e os ingleses no Iraque. É essa a razão pela qual estou contra o envolvimento dos países europeus em geral, e de Portugal em particular.
6. Com os combates de Julho, começou a guerra entre os EUA e o Irão. Devemos apoiar ou opormo-nos a essa via? E queremos ou não que a União Europeia se comprometa com a política belicista da administração americana? A meu ver, é isto que está em causa nesta altura. É preciso ver mais longe, além, muito além, da protecção das fronteiras de Israel ou do desarmamento do Hizbolá.
7. Antes desta guerra, as coisas estavam a correr de feição para Israel no Líbano. Mas o governo israelita, em manifesta divergência com o mandato que recebera nas eleições de há apenas três meses, por razões ainda não inteiramente claras, entendeu trocar a política e a diplomacia pela força das armas. Terá Israel o direito, agora que a sua opção se revelou errada, de colocar a Europa sob chantagem, exigindo-lhe que pague os custos do seu despautério?
8. Repito: cabe aos EUA e ao Reino Unido, que incentivaram Israel a avançar, enviarem agora tropas para o local, porque essa é a consequência lógica da sua política. Se não o fizerem, o mais que posso desejar a Israel nestas circunstâncias é que tenha boa sorte, e que para a próxima vez escolha melhor os seus aliados.
9. Para quem, como eu, não nutre a mínima simpatia pelo Hizbolá e só deseja o melhor ao Estado de Israel, tudo isto é trágico e prenuncia tempos difíceis. Não é essa, porém, a posição dos EUA, que definitivamente seguem no Médio Oriente a política do quanto pior, melhor. Que se amanhem, pois.
1. Recapitulando. Israel entendeu oportuno bombardear e invadir o Sul do Líbano, sem dúvida embalado pela doce ilusão de que outrém se encarregaria depois de concluir o trabalho ocupando o território e desarmando o Hizbolá. Não estou ainda convencido de que Israel e os EUA tenham planeado com antecedência a operação, mas é evidente que, após ela ter sido desencadeada, Bush e Condoleeza tentaram forçar os acontecimentos nesse sentido.
2. Curiosamente, nem os EUA nem o Reino Unido, os únicos apoiantes de peso de Israel nesta ocorrência, estavam ou estão disponíveis para colocar tropas no terreno. Logo, o seu plano, para ser exequível, precisava da cumplicidade da União Europeia. Vai daí, falhou. Ainda assim, o direito de veto dos EUA permitiu-lhe boicotar o cessar-fogo enquanto a resolução a votar pelo Conselho de Segurança não mencionasse explicitamente a constituição da força de interposição e não lhe atribuísse a missão de desarmar o Hizbolá.
3. Convém, por isso, sublinhar que a resolução aprovada reflecte, antes de mais, o ponto de vista e a estratégia dos EUA, e que visa obter por novos meios aquilo que os bombardeamentos não conseguiram. Por conseguinte, nos termos em que se encontra redigida, a resolução é, também ela, mais uma patente tolice congeminada pelo Eixo da Estupidez. Porque não é crível que a força de interposição tenha condições para fazer aquilo que nem o exército israelita durante mais de uma década nem o libanês na última meia dúzia de anos lograram atingir, ou seja, o desarmamento do Hizbolá numa região esmagadoramente xiita e em cooperação com um exército de que 40% dos efectivos são xiitas.
4. Acresce que as partes que acordaram o cessar-fogo não merecem confiança. Israel traíu a sua má fé violando-o logo nos primeiros dias, e o Hizbolá fá-lo-á também logo que o considerar oportuno.
5. A famosa força de interposição corre, por conseguinte, o risco de se ver envolvida no Líbano num combate sem princípios nem saída, a exemplo do que se passa com os americanos e os ingleses no Iraque. É essa a razão pela qual estou contra o envolvimento dos países europeus em geral, e de Portugal em particular.
6. Com os combates de Julho, começou a guerra entre os EUA e o Irão. Devemos apoiar ou opormo-nos a essa via? E queremos ou não que a União Europeia se comprometa com a política belicista da administração americana? A meu ver, é isto que está em causa nesta altura. É preciso ver mais longe, além, muito além, da protecção das fronteiras de Israel ou do desarmamento do Hizbolá.
7. Antes desta guerra, as coisas estavam a correr de feição para Israel no Líbano. Mas o governo israelita, em manifesta divergência com o mandato que recebera nas eleições de há apenas três meses, por razões ainda não inteiramente claras, entendeu trocar a política e a diplomacia pela força das armas. Terá Israel o direito, agora que a sua opção se revelou errada, de colocar a Europa sob chantagem, exigindo-lhe que pague os custos do seu despautério?
8. Repito: cabe aos EUA e ao Reino Unido, que incentivaram Israel a avançar, enviarem agora tropas para o local, porque essa é a consequência lógica da sua política. Se não o fizerem, o mais que posso desejar a Israel nestas circunstâncias é que tenha boa sorte, e que para a próxima vez escolha melhor os seus aliados.
9. Para quem, como eu, não nutre a mínima simpatia pelo Hizbolá e só deseja o melhor ao Estado de Israel, tudo isto é trágico e prenuncia tempos difíceis. Não é essa, porém, a posição dos EUA, que definitivamente seguem no Médio Oriente a política do quanto pior, melhor. Que se amanhem, pois.
23.8.06
Tudo como dantes
Há aqui uma grande confusão. Quem exigiu uma força de interposição no Líbano foi os EUA, razão pela qual a resolução da ONU demorou tanto tempo a ser adoptada, permitindo a continuação da ofensiva israelita. Todos os outros países - exceptuando Israel e o Reino Unido - pediram o cessar-fogo imediato e incondicional.
Vê-se hoje que a resolução foi principalmente uma maneira de os EUA salvarem a face. Na prática, não há condições para que Israel obtenha a solução que procurou forçar - uma coisa boa, dado que, para a próxima vez, terá que ponderar com mais cuidado as consequências dos seus actos.
Após um mês de guerra e centenas de vítimas de parte a parte, ficou tudo como dantes, senão pior. O que confirma, a meu ver, o absurdo da política do governo israelita.
Vê-se hoje que a resolução foi principalmente uma maneira de os EUA salvarem a face. Na prática, não há condições para que Israel obtenha a solução que procurou forçar - uma coisa boa, dado que, para a próxima vez, terá que ponderar com mais cuidado as consequências dos seus actos.
Após um mês de guerra e centenas de vítimas de parte a parte, ficou tudo como dantes, senão pior. O que confirma, a meu ver, o absurdo da política do governo israelita.
3.8.06
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