1.3.06

Che Guevara, Parte II - O Regresso do Herói

Um post de Valter Hugo Mãe sobre atrocidades diversas alegadamente cometidas pelo Che suscitou algumas reacções de aplauso (aqui e aqui) e outras críticas (aqui e aqui). Vai daí, lembrei-me de ir ao baú repescar este artigo que, ligeiramente condensado, publiquei no Expresso de 9.8.97, pouco depois da descoberta das ossadas de Guevara. Quanto à polémica que agora agita as mentes, escreverei quando me passar a preguiça e se me sair alguma coisa de jeito.

Subitamente, sem aviso prévio, uma equipa de cientistas argentinos, bolivianos e cubanos desenterrou um mito que lentamente resvalara para o esquecimento ao longo do último quarto de século.

Não menos surpreendente, porém, foi a extensão do sobressalto que percorreu os media nas últimas semanas a propósito da alegada descoberta das ossadas de Ernesto Che Guevara. Pois que interesse podem ter para o grande público os restos mortais de um combatente de uma causa mais morta do que ele? Mais: que importa que eles pertençam a quem se diz pertencerem, se daí não resulta nenhum esclarecimento adicional significativo das circunstâncias do seu martírio?

Uma estranha comoção

Se a magnitude da cobertura jornalística do evento me apanhou de surpresa a mim, obsoleto quarentão, imagine-se o pasmo das novas gerações. Como poderão elas compreender esta comoção que ousa competir pela atenção do público com as últimas fotografias chegadas fresquinhas de Marte?

Desde logo, é preciso lembrar que o Che não era um revolucionário como os outros. Jovens razoavelmente indiferentes não só ao marxismo, como também às lutas anti-imperialistas latino-americanas adornaram nos anos sessenta os seus quartos adolescentes, para irritação dos progenitores, com um orgulhoso poster do Che, não raro partilhando a mesma parede com Marylin ou James Dean.

Guevara foi, nessa época, um verdadeiro fenómeno pop, rivalizando em popularidade com ídolos rock como Lennon e Hendrix. Integrou, assim, esse estranho movimento cultural planetário envolvendo toda uma geração que acreditava ter vindo ao mundo com a missão expressa de virá-lo de pernas para o ar.

Uma vida e a sua transposição mítica

Quem era, de facto, Che Guevara? Nasceu em Rosário, Argentina, em 1928. (É quase obsceno recordar que, se ainda fosse vivo, teria completado no passado dia 14 de Junho 69 anos de idade.) Formou-se em medicina em Buenos Aires, mas não se resignou a essa profissão. Em 1956, meses depois de conhecer Fidel, integrou-se no grupo de exilados que desembarcou em Cuba, iniciando a luta armada contra a ditadura sanguinária de Baptista suportada pelos EUA. Formou e dirigiu então o lendário grupo guerrilheiro da Sierra Maestra.

Após a vitória da revolução, foi sucessivamente Director do Instituto Nacional da Reforma Agrária e do Banco Nacional de Cuba, e depois Ministro da Indústria. Ignoramos com que competência desempenhou esses cargos, mas é de admitir que não tenha sido excessiva.

Em 1965, porém, é o golpe de teatro, algo embaraçoso para Fidel: Guevara abandona os seus cargos e parte em demanda de novas revoluções, como convém aos irrequietos cavaleiros andantes. Propunha-se, dizia ele, criar “um, dois, três, muitos Vietnames”. Para quem ache que um Vietname já era horror que bastasse, tiradas destas não abonam muito em favor do seu juízo.

O semeador de revoluções

Seja como for, a verdade é que, em vez de se deixar ficar em Cuba a bebericar rum, a fumar havanos e a dançar a rumba com as companheiras, decidiu jogar tudo de novo num lance radical de ruptura com o acomodamento aos rituais do poder revolucionário triunfante, digno de um Tintim existencialista. Mesmo descontando todas as possíveis e imagináveis motivações menos altruístas, é indisputável a grandeza do gesto. E foi de facto essa desprendida abdicação que ficou a marcar decisivamente a nossa memória da personagem.

Após abandonar Cuba, Guevara tentou primeiro fazer o seu Vietname privado no Congo, sem grandes resultados. Em 1967, acompanhado por Régis Debray, um filósofo de boulevard em busca de metafísica aplicada, mudou-se para a Bolívia, onde as coisas não lhe correram melhor, talvez porque os camponeses pobres não tinham comprado os seus posters nem lido Camus.

Um dia, os jornais de todo o mundo confirmaram o desastre adivinhado: o Che fora capturado e sumariamente executado pelo exército boliviano. Apesar das fotografias do Che, já cadáver, distribuídas pelas agências noticiosas, a dúvida sobre a veracidade da notícia persistiu durante alguns dias. Até que, por fim, a breve esperança deu lugar à longa resignação.

Che Guevara Superstar

Ernesto Che Guevara foi nem mais nem menos do que o primeiro revolucionário a ser acolhido no seio do star-system - essa forma particular, moderna, do culto da personalidade.

Logo à partida, a matéria-prima para a construção do mito era de estupenda qualidade. A coragem física e moral da personagem eram evidentes. A beleza física e a fotogenia só podiam ajudar à imagem de um guerrilheiro que frequentava indiscriminadamente as páginas da Time, da Flama ou do Salut les Copains. De origem burguesa e pendor intelectual, preferira, apesar disso, misturar-se com o povo e partilhar as suas agruras. E, no entanto, ele não era, obviamente, um populista: nada havia nele de vulgar, as suas maneiras respiravam nobreza.

Do ponto de vista da juventude da época, posicionava-se inequivocamente do lado dos bons, não só pela manifesta oposição ao imperialismo americano, como pela insinuada (mas nunca plenamente confirmada) independência em relação ao comunismo soviético. Essa suposta independência, peça chave da imagem guevarista, adivinhava-se antes de mais na manifesta informalidade de atitudes e maneiras, pouco compatível com a rigidez doutrinária do partido de Lenine e Estaline.

Em resumo, tudo em Guevara o tornava particularmente indicado para simbolizar o revolucionário puro, destituído de ambição pessoal ou de apego ao poder, o romântico combatente da liberdade disposto a levar até ao supremo sacrifício pessoal a sua entrega absoluta à causa da emancipação dos fracos e oprimidos. Noutro século, teria seguramente sido aclamado como santo. No nosso, é possível que tenha inspirado os modernos Cristos de Pasolini ou Andrew Lloyd Weber.

Filho de Marx e do telejornal das 8

Encontramos, assim, reunidos na pessoa de Guevara em alto grau todos os ingredientes essenciais de que o star-system necessita para produzir um semi-deus: alta visibilidade, traços físicos ou de carácter apelativos, vida aventurosa, aura de mistério, imprevisibilidade, independência de espírito, carácter. A partir daqui, iniciou-se o anónimo e persistente labor de efabulação dos media; até que, a dada altura, se tornou impossível distinguir à vista desarmada entre a personagem real e a ficcionada.

A imagem projectada pelos media difundiu-se, em seguida, através da parafernália dos artigos de merchandising: posters, tee-shirts, pins, discos, etc. A um nível mais primário, penetrou no quotidiano juvenil por via da imitação do penteado ou da barba, do blusão camuflado, do lenço vermelho, da bóina preta ou da aplicação da estrela vermelha no vestuário.

Foi aqui, nesta apropriação de um dos seus heróis pela cultura pop, que o comunismo começou de facto a ser derrotado. Pois que maior humilhação poderia o socialismo revolucionário sofrer do que essa de ser transmutado em bem de consumo de massas, os seus ícones convertidos em objectos de merchandising, a sua ideologia transformada num mero emblema do segmento jovem do mercado global? Tudo isto antes, muito antes, de a Coca-Cola e os McDonald’s ocuparem pacificamente a União Soviética e de os sovietes serem reduzidos à condição de uma marca de jeans.

Morrem jovens os favoritos dos deuses

No star-system, tudo se passa como se a pessoa que suporta o mito fosse apenas o pretexto para a construção de um semi-deus com pouca ou nenhuma relação com a personagem real.

A morte prematura do herói, de preferência em condições trágicas, só pode ajudar ao mito, porque afasta para sempre a possibilidade da sua queda, impedindo-o compulsivamente de caír em tentações susceptíveis de ameaçarem a sua própria credibilidade. Proibindo-o de continuar a ser homem como nós, a morte imobiliza-o eternamente na pose de semi-deus, congelado para a eternidade como uma fotografia instantânea que só mostra o seu lado mais favorável.

Do mesmo passo, fica a populaça definitivamente impedida de praticar o seu segundo desporto favorito a seguir à adoração dos ídolos, a saber, a demolição dos ídolos que ela mesma promoveu.

De Alexandre Magno a Byron são inúmeros os ungidos dos deuses que, ainda jovens, escaparam pela pouco invejável porta da morte à cruel inversão do julgamento da opinião pública uma vez passado o apogeu da sua glória. Morrem novos os favoritos dos deuses, porque estes, mau grado os seus poderes sobrenaturais, não têm outra forma de poupá-los à humilhação que não essa de furtá-los mais cedo ao convívio dos humanos.

O horizonte é rosa pálido

Tal como os baby-boomers ansiavam, o mundo foi mesmo virado de pernas para o ar, mas não exactamente da forma prevista.

É certo que o muro de Berlim ruíu e que a União Soviética se desintegrou. É certo que os regimes autoritários foram varridos da face da Europa, e que, na própria América Latina, as ditaduras militares são hoje uma raridade. É certo que o apartheid foi abolido na África do Sul, e que a segregação racial regrediu rapidamente nos EUA. É certo que o autoritarismo deixou de pautar as relações sociais e que, por toda a parte, os costumes se tornaram mais informais e menos repressivos. É certo finalmente, que o modelo de realização das mulheres deixou de ser o da fada do lar.

E, no entanto... No entanto, não era bem isto que haviam imaginado. A substituição do marxismo-leninismo-pensamento Mao Tsé-tung pela social-democracia-pensamento Mário Soares não é propriamente uma evolução muito exaltante.

Os baby-boomers estão hoje no poder em toda a parte: nas escolas, nas artes, nas empresas, nos media e, como é natural, também no aparelho de Estado. Para eles, Guevara é uma memória impoluta e, portanto, um objecto ideal de nostalgia. Ao contrário deles, morreu mesmo a tempo de evitar assistir à bancarrota dos seus sonhos. Se acaso Deus existe, e se o Céu é a recompensa dos justos, então Guevara é o supremo bem-aventurado.

Ao levá-lo, a morte livrou-o de apodrecer lentamente como Fidel Castro, ou de ser forçado a renegar, como milhões de outros, as “ilusões da juventude”.

É claro que é muito mais fácil permanecer fiel aos ideais quando se está morto, mas este argumento eminentemente razoável contra o endeusamento do Che dificilmente será escutado.

P.S. - Do que ficou escrito pode também concluir-se quão injusto é acusar o marketing político de tratar os candidatos eleitorais como detergentes. Como vimos, as técnicas de posicionamento e construção de imagem foram largamente aplicadas com grande sucesso na política revolucionária antes de triunfarem na guerra comercial pela ocupação das prateleiras dos supermercados. Por conseguinte, não foram os políticos que imitaram os detergentes - foram os detergentes que imitaram os políticos.

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