28.2.06



Alex Raymond.

Eleições não! Casting sim!

Em vez de eleger um dirigente, o PSD deveria antes organizar um casting. Reparem bem no resultadão que esse método deu no caso do PCP!

O Leopardo



Quando, quase chegado aos sessenta anos, lhe deu a Tommasi, Príncipe de Lampedusa, para tentar a literatura, não estavam já na moda os romances históricos. Terá sido essa uma das razões para todas as editoras contactadas lhe haverem recusado o manuscrito, que só viria a ser publicado com ele já morto.

Hoje, apesar de uma ilustre linhagem que inclui, entre outros, "A Cartuxa de Parma" e "Nostromo", o gosto dominante também aborrece, além de romances históricos, a ficção de tema político.

Quem não se deixa impressionar por tais preconceitos tem agora a oportunidade de rever o sumptuoso e delicado filme de Visconti no Nimas. Já revisitar o livro vai ser mais difícil, porque, que eu saiba, está há muito esgotada a tradução portuguesa.


Alex Raymond.

25.2.06

Ódios à solta

Isto é para ler e reler com toda a atenção.

Os negócios do Sr. Wolfgang



Ao abandonar o serviço do Arcebispo de Salzburgo e partir à aventura para Viena, Mozart tornou-se num dos primeiros artistas a tomar a ousada decisão de prescindir de um patrono, correndo o risco de confiar a sua subsistência ao livre jogo da oferta e da procura.

E que tal se deu ele com o sistema? Uma lenda persistente insiste em retratá-lo como um artista incompreendido em vida e abandonado na morte, ao ponto de o seu enterro só ter sido acompanhado por um cão que naquele dia não tinha mais nada que fazer. Mozart teria, pois, vivido e morrido na pobreza.

Mozart aprendeu com o pai Leopoldo a queixar-se constantemente da sua sorte, mas também a não perder uma oportunidade de abichar uns cobres.

Pouco depois de chegar a Viena, Mozart fez as suas contas e concluiu que uma família poderia viver confortavelmente com 1.200 florins por ano. O seu cargo de Kammersmusicus da corte do Imperador rendia-lhe apenas 800 florins por ano, mas em contrapartida apenas lhe exigia que compusesse algumas danças para um baile anual. O resto do tempo ficava disponível para o que quisesse.

Ora Mozart tinha permanentemente quatro alunos. O resto do plano de produção era assim: "Posso escrever pelo menos uma ópera por ano, posso dar uma ‘academia’ [um concerto em seu próprio benefício] uma vez por ano, posso publicar algumas peças, posso vender outras por assinatura". A venda por assinatura de conjuntos de quartetos de cordas ou de sonatas para piano para amadores era muito comum na altura - Haydn era um mestre nessa arte. Além disso, Mozart dava frequentemente concertos em casas de famílias aristocráticas. Acresce que trazia sempre no bolso da casaca alguma peça musical para o caso de encontrar alguém interessado em comprar uma dedicatória. Como se vê, sentido comercial não lhe faltava.

Os registos mostram que, de facto, Mozart facturou sempre bastante mais do que os 1.200 florins que estimara necessários para fazer face às despesas. Na verdade, em 1784 ganhou 3.700 florins, e em 1787 chegou aos 3.300.

Há quem diga que a excessiva dispersão de esforços o impediu de aumentar ainda mais as receitas. (Na linguagem de hoje, dir-se-ia que a sua estratégia de negócio era insuficientemente focalizada.) Mas é claro que o problema essencial nunca foi esse.

Mozart ganhava muito dinheiro, mas gastava ainda mais - razão pela qual passava o tempo endividado. Era um gestor ousado - mas não prudente - da sua própria carreira. O pai, cuja reputação de unhas de fome atravessou os séculos, ficou horrorizado ao visitar o apartamento de luxo onde o filho escolhera viver, pelo qual pagava 480 florins anuais. Mas o "status anxiety" de Mozart não ficava por aí. Investiu uma soma considerável na encomenda de um piano fabricado especialmente para si; gastava fortunas em roupas e sapatos da moda que exibia nas tournées; possuía uma carruagem própria, bem como um cavalo para os momentos de lazer; instalou uma mesa de bilhar na sua casa; e a sua mulher passava grandes temporadas nos spas frequentadas pela alta sociedade.

As leis do mercado podem nem sempre ser muito favoráveis ao desenvolvimento da cultura. No caso de Mozart, porém, não há nada que se possa apontar-lhes.

24.2.06



Bilal.

Semana Desportiva ou Consolação da Filosofia

1. Eu gosto de quase todos os jogos de futebol, mas, neste caso, sinto-me tentado a dizer qualquer coisa do género: "o desafio esteve ao nível dos comentários do Gabriel Alves".

2. Em circunstâncias normais eu torceria pelo Liverpool, o único clube inglês suficientemente grande para não padecer dos maneirismos paroquiais que caracterizam o futebol daquelas terras. Mas os Reds de 3ª feira entretiveram-se tanto a jogar para o umbigo que se esqueceram de que havia duas balizas em campo.

3. Os três jogadores que construíram o golo do Benfica (Karagounis, Petit e Luisão) foram as únicas pessoas, 65 mil espectadores incluídos, que, talvez por sofrerem de insónias, ainda não tinham conseguido pregar olho àquela hora da noite. Daí a contingência do resultado.

4. O jornal que li no dia seguinte conseguiu contar sete remates do Benfica à baliza. Tem graça, eu só vi um.

5. Uma vitória do Barcelona é para mim sempre uma má notícia. Que querem? Eu embirro com os culés (a propósito, sabem a origem do nome?).

6. Quando uma equipa como o Chelsea, que faz da posse de bola o seu maior trunfo, chega ao fim do jogo com 35% de posse de bola, isso é sinal de que sofreu uma derrota esmagadora, uma derrota que fez mossa lá por dentro.

7. O Mourinho esteve desta vez muito mal, principalmente nos comentários no fim do jogo. O Del Horno foi expulso porque quis evitar continuar a ser tangueado pelo Misse, como até então sucedera ininterruptamente. Podemos chamar-lhe um cartão vermelho a pedido.

8. A expulsão também deu jeito ao Mourinho, que assim não terá que explicar como foi ingénuo ao ponto de pensar que, cercando o Ronaldinho e o Eto'o, o Barcelona ficaria desarmadilhado.

9. Se, como parece provável, o Chelsea for este ano eliminado pelo Barcelona, poder-se-á começar a pensar que, sendo verdade que o Porto nunca mais fez nada de jeito sem o Mourinho, não o é menos que o Mourinho também nunca mais fez nada de jeito sem o Porto. Os adeptos do Chelsea, rapidamente esquecidos do jejum de décadas na Liga, em breve murmurarão que, afinal, ao cabo de dois anos, o clube ainda nem chegou perto do título de campeão europeu.

10. Embora o meu coração tenha uma só cor - que no caso até são duas - olho para o jogo do próximo domingo com o distanciamento que resulta de não confiar nem um pouquinho no discernimento do holandês que este ano nos calhou em sorte. É a consolação da filosofia.


Bilal.

A decisão que está mais à mão

- Qual mão preferes?

- A direita.

De um golpe, o outro cortou-lhe a mão esquerda.

Muitas das escolhas que hoje nos querem impingir são tão absurdas como esta. Parece que a ninguém ocorre perguntar-nos primeiro se preferimos as duas mãos ou uma só.

23.2.06

Os 38 estratagemas da blogoesfera

Ao contrário do que parece pensar Pacheco Pereira, inclino-me a acreditar que as leis do debate na blogoesfera são idênticas às leis do debate em qualquer outro sítio.

Schopenhauer, inspirando-se em Aristóteles, contou 38 estratagemas, e não creio que de há século e meio para cá tenha sido descoberto algum novo.

Eis um resumo, extraído daqui:
1. Generalization - interpret your opponent’s view very broadly, exaggerate it - it makes it more vulnerable to attacks.
2. Homonymy - extend your opponent's pronouncement onto the things which share the same name, but are in fact a different thing altogether.
3. Take in the general sense a pronouncement made in a relative sense; or at least take it from a different angle.
4. Make your opponent gradually and without their noticing accept your premises.
5. Use false premises (for the cause you think is "right") if your opponent won’t accept the right premises.
6. Hidden "petitio principii" - propose something that should be yet proven.
7. Socratic method - ask many broad questions and in your own argument use the points where your opponent’s agreement or concession is convenient to you.
8. Make your opponent angry.
9. Ask questions in unexpected order.
10. If your opponent answers in negative to the questions which would be useful for proving your thesis, ask questions about the reverse of your thesis.
11. If you use induction, i.e. show many specific examples to prove a general theory, and your opponent agrees about the examples, treat it as if he agreed on the theory.
12. If you discuss the subject that can be described in various terms, choose the vocabulary that suits you, especially the words that are not neutral but carry emotional meaning close to your point of view.
13. Present your thesis in moderate, reasonable form and exaggerate the antithesis - then make your opponent choose.
14. Brazenly behave as if your opponent’s answers to your questions proved your point, while they didn’t.
15. If you have problems with defending some paradoxical statement, follow it with some statement that it would be hard to oppose.
16. Argumenta ad hominem or ex concessis - examine if what your opponent says agrees with his earlier statements, rules of his school, sect etc. or his behaviour. For example, if your opponent defends suicide, shout: "Why then you don’t go and hang yourself?"
17. Make subtle distinctions in your earlier statements.
18. Change the subject when you’re losing.
19. At your opponent’s demand for some concrete arguments against his thesis, be general and talk about fallibility of human knowledge (on examples).
20. If you agreed with your opponent on the premises, draw the conclusion yourself even if the premises aren’t sufficient (fallacia not causae ut causae).
21. If your opponent presents a sophistic and fallacious argument, don’t waste your time with proving it is so; counter him with a similar argument. "It’s not about the truth, it is about the victory."
22. If your opponent wants you to agree on something from which directly results the problem, decline, claiming it petitio principii.
23. Make your opponent exaggerate.
24. Fabricate consequences (fallacia not causae ut causae).
25. Examine if your opponent’s examples really disprove your thesis. [Well, this one isn’t an unfair trick, I think.]
26. Retorsio argumenti - use your opponent’s argument against them. For example, if your opponent says "It’s just a child, one has to take allowances" you can use retorsio: "But exactly because he’s a child, one has to punish him, so that his bad habits don’t get to hard to eradicate".
27. Concentrate on the points that make your opponent angry.
28. Argumentum ad auditores - make an unfair charge, but the unfairness should be visible only to the expert in the field - and the general audience isn’t. If you make the audience laugh, all the better.
29. Diversion - if you’re losing, start talking about something else (see # 18...)
30. Argumentum ad verecundiam – instead of arguments you name authorities that support your position, preferably those which your opponent really respects. You can quote out of context or even fabricate quotes.
31. If you can’t find the reply to the opponent’s thesis, you can, with the subtle irony, announce your incompetence. Thus you insinuate to the audience who respect you that your opponent’s views are sheer nonsense expressed in an unintelligible way. This trick can be used only if you know that the audience respects you more than your opponent.
32. Labelling - if some of your opponent’s arguments are causing you problems, try to attribute them to some unpopular school of thought, sect etc., even if the likeness is only superficial.
33. Say: "Maybe it works in theory; in practice it’s false."
34. Attack your opponents on those points where he’s most vague and indirect. Most likely you’ve discovered their weak spots.
35. Übertrick according to Schopenhauer - instead of appealing with arguments to your opponent’s intellect, weaken his will. Try to convince your opponent that winning the discussion is against their interest.
36. Flood your opponent with a stream of nonsensical words.
37. If the opponent’s cause is right, but he chose the wrong arguments, beat the arguments and pretend you proved the whole cause wrong.
38. As Schopenhauer says, the last means - if you’re totally losing, attack the opponent personally with the insults. Argumentum ad personam.

Agora, é só escolher aquele que vos convier mais. Take your pick!

A selecção dos razoáveis

Scolari anunciou ter decidido convocar Quaresma porque ele tem jogado "razoavelmente bem". A mim parece-me essa uma excelente razão para não convocar um jogador.


Bilal.

O Inglês a quem o trabalha

Notando que, ao mesmo tempo que o Inglês progride como língua franca internacional, regride inexoravelmente enquanto língua mãe em confronto com o Espanhol, o Hindú e o Mandarim, interroga-se John Kay na sua crónica desta semana no FT:
Will global, second-language English differ from local, first-language English? And will the economic advantages enjoyed by English native speakers grow or decline? The financial services industry, the most global of all, points to the answers. Native English speakers are now less internationally useful than their bilingual French, German or Spanish colleagues, and British firms have similarly lost a source of advantage.

A resposta à primeira pergunta é obviamente, sim: é claro que não só esses dois "Ingleses" se tornaram muito diferentes, como os falantes do Inglês1 não compreendem os do Inglês2. É por isso que nós, com o nosso inglês perfeito, não entendemos aquela língua absurda que os nativos falam nas ruas quando vamos a Inglaterra!

Chamar os bois pelos nomes



A propósito das auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral de Finanças ao Metro do Porto, disse ontem Oliveira Marques, o seu Presidente, que os relatórios produzidos são "tecnicamente medíocres e eticamente deploráveis".

Oliveira Marques fez saber que os técnicos do Tribunal de Contas faltaram a uma reunião agendada com a Administração da empresa. Além disso, notou que a emissão de "opinião, juízos de valor e apreciações qualitativas sobre actos de gestão", como frequentemente acontece nos relatórios daquela instituição, nem sequer faz parte das suas atribuições.

A propósito das críticas dirigidas aos vencimentos da Administração, profetizou que "não faltará muito tempo para vermos no Metro do Porto gestores mais baratos".

E concluiu: "No dia em que acharem que é caro, digam-me. Mas não me aborreçam. Nem pela via directa, nem pela via indirecta, seja o intermediário o Público, o Expresso, o Jornal de Notícias ou o raio que os parta."

Quem já leu os pareceres do Tribunal Constitucional ou teve conhecimento directo do comportamento habitual dos seus técnicos sabe que é verdade o que diz Oliveira Marques. Os pareceres que emitem sobre a gestão das empresas públicas não passam habitualmente de um chorrilho de tolices de amanuenses que nada entendem sobre os assuntos acerca dos quais se pronunciam.

Acontece que, achando-lhes a imprensa muito graça, esses dislates são puxados para as primeiras páginas e, atemorizando governantes inseguros, acabam por ter consequências políticas, as mais das vezes nefastas. Trata-se de uma autêntica conspiração de estúpidos.

Diz quem o conhece que o Presidente do Metro do Porto é uma pessoa notável. Ao falar onde tantos, por medo, se calam, fez-me pensar que têm razão aqueles que assim o louvam.

19.2.06

Pequenos terrores



Tibet.

Crescimento e propaganda

O Economist desta semana faz notar, num artigo intitulado "A numbers racket" inserido na sua secção "Finance and economics" que a informação económica divulgada pelos media tem sistematicamente iludido o público acerca da alegada disparidade entre o crescimento dos EUA e da zona Euro em favor dos primeiros.

Segundo as primeiras estimativas publicadas, os EUA cresceram 3,1 % ao ano entre 1999 e 2004, contra apenas 1,5% na Europa. Mas os dados finais, após revisões, revelam um quadro muito diferente: afinal, os EUA apenas cresceram 2,8%, ao passo que a Europa cresceu 2%. Além disso, o diferencial positivo a favor da América é inteiramente devido à distinta dinâmica populacional das duas regiões. Logo, o PIB per capita terá crescido exactamente ao mesmo ritmo na Europa e nos EUA.

Mas há mais: como os EUA usam uma metodologia de cálculo do produto (o chamado índice dos "preços hedonistas") que tende a sobrestimar o seu valor em relação ao europeu, estima-se que o PIB per capita da zona euro deverá na realidade ter crescido mais 0,5% do que o americano.

Estes factos são conhecidos há muito tempo. Eu próprio já aqui os mencionei. A novidade consiste no facto de uma publicação como o Economist, usualmente tão empenhada en gabar a superioridade do sistema americano, se decidir finalmente a prestar-lhes alguma atenção.


Tardi.

17.2.06

Imperialismo cinematográfico



A quem confessa dificuldade em entender um determinado trecho de música contemporânea, aconteceu-me sugerir-lhe que tente ouvi-la como se fosse a banda sonora de um filme.

Funciona: como os espectadores estão habituados a associar certos sons a certas imagens, aceitam nas salas de cinema aquilo que rejeitam nas salas de concerto.

O cinema de tal modo se tornou na arte dominante do nosso tempo, que as outras são frequentemente interpretadas ou reinterpretadas em função das chaves de descodificação que ele nos propõe.

"Morte em Veneza" fez muito pela voga de Mahler iniciada há quarenta anos. "Amadeus" despoletou a mais recente reabilitação de Mozart. "O pianista" lançou uma nova luz sobre Chopin.

Mas nem só o gosto musical é assim determinado. "Apocalypse Now" atraiu-me ao universo literário de Conrad. O medíocre "Tróia" estimulou-me a reler a Ilíada. "Le Temps Retrouvé", de Raoul Ruiz, fez-me conceber o projecto de pela primeira vez ler de seguida do primeiro ao último os sete volumes de Proust. Imagino que experiências semelhantes poderão ter ocorrido com muitas outras pessoas.

Manuela

Espero que isto não tenha passado despercebido a ninguém.

Combat, Depression, and Rock n' Roll

A não perder

Um interessantíssimo conjunto de resultados de sondagens sobre a guerra dos cartoons realizadas na Dinamarca, em França, no Reino Unido, nos EUA e na Palestina. No sítio do costume.

War Music



Whatever caught and brought and kept them here,
Under Troy's ocre wall for ten burnt years,
Is lost: and for a while they join a terrible equality;
Are virtuous, self-sacrificing, free;
And so insidious is this liberty
That those surviving it will bear
An even greater servitude to its root;
Believing they were whole, while they were brave,
That they were rich, because their loot was great;
That war was meaningful, because they lost their friends.

Christopher Logue: Extracto de "War Music", adaptação livre da Ilíada.

14.2.06



Tardi.

Freitas deve sair

Não estão em causa em si mesmas as opiniões expressas, mais ou menos aceitáveis, mais ou menos adequadas, todas elas discutíveis.

Mas Freitas está farto de saber que, quando alguém aceita ser nomeado para um cargo público, não é livre de divulgar os seus estados de alma, nem sequer de ensaiar sábias prelecções sobre os assuntos que o apoquentam. Um Ministro dos Negócios tem menos liberdade de expressão do que um cartunista, se é que me faço entender.

Acontece que o país se integra num sistema de alianças internacionais, que tem por força que respeitar. Acontece que o primeiro-ministro e o governo se comprometeram perante todos nós a consolidar e a reforçar uma determinada linha de política externa. Acontece que essas coisas não podem ser questionadas de ânimo leve. A menos que algo de excepcionalmente grave aconteça, esperamos legitimamente que esse rumo não seja alterado, e o mesmo esperam de nós os nossos aliados.

Se alguém diverge seriamente da política do governo em matérias de tal gravidade, esse alguém deve, sejam quais forem as razões que lhe assistem, pôr o lugar à disposição do primeiro-ministro e afastar-se.

Freitas do Amaral dessolidarizou-se repetidamente da Dinamarca, da União Europeia e, mais genericamente, dos nossos aliados ocidentais, a propósito dos acontecimentos das últimas semanas. Nem ele nem Sócrates podem continuar a fingir que nada se passou. Ou Sócrates concorda, ou Sócrates discorda.

Repito: talvez - apenas talvez - ele tenha razão, mas o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal não é o lugar certo para ele dizer o que disse.

Grass



Pile the bodies high at Austerlitz and Waterloo.
Shovel them under and let me work.

I am the grass; I cover all.

And pile them high at Gettysburg
And pile them high at Ypres and Verdun.
Shovel them under and let me work.
Two years, ten years, and passengers ask the conductor:
What place is this?
Where are we now?

I am the grass.
Let me work.

Carl Sandburg

O choque das civilizações

Como aqui mais uma vez se prova, a análise empírica dos factos continua a ser, mau-grado todas as suas limitações, a única forma segura de distinguir a verdade da ficção.

13.2.06

Grandes ideias do século XX

Bertrand Russell, que poucos anos depois se tornaria num destacado activista do movimento pró-desarmamento nuclear, escreveu o seguinte em 1945, no Glasgow Forward, em defesa da guerra preventiva:
A Rússia aprenderá seguramente a fabricar a bomba atómica. Penso que Estaline herdou a ambição de Hitler de ser o ditador do mundo. Pode suceder que haja guerra, e que ela comece com a destruição total de Londres. Penso que a guerra durará trinta anos, deixando atrás de si um mundo sem civilização, no qual teremos que começar tudo de novo - um processo que poderá levar uns quinhentos anos. Só uma coisa permitirá salvar o mundo, e é algo que nunca na minha vida pensei defender. Consiste em a América envolver-se em guerra com a Rússia nos próximos dois anos, e em estabelecer o domínio mundial estribada no poder da bomba atómica. Mas não acredito que isso vá acontecer.

Esclarecimento

Eu não sou pacifista, mas tenho pena.

Boletim de guerra

Eis algumas balas de papel disparadas n'O Público nos últimos dias:

"Estamos em guerra e estamos a perder. Estamos a perder, antes de tudo, porque ainda não percebemos que estamos em guerra."
(J. Pacheco Pereira, 9.2.06)

"Por isso, por brutal que pareça, não basta neste momento dizer que se consideram soluções militares: é preciso começar a prepará-las."
(J. M. Fernandes, 13.2.06)

"A intervenção deve ser cirúrgica, sobre os centros nucleares, não nuclear e sem mortos."
(L. Salgado de Matos, 13.2.06)

Definição

"A guerra é um pedaço de metal a perfurar um pedaço de carne."

Godard

A guerra, higiene do mundo

"Noi vogliamo glorificare la guerra, sola igene del mondo, il militarismo, il pattriottismo, il gesto distruttore dei libertari, le belle idee per cui si muore."

Marinetti (1915).

12.2.06

"Exterminate all the brutes!"



"He began with the argument that we whites, from the point of development we had arrived at, 'must necessarily appear to them [savages] in the nature of supernatural beings - we approach them with the might of a deity,' and so on, and so on. 'By the simple exercise of our will we can exert a power for good practically unbounded,' etc., etc. From that point he soared and took me with him. The peroration was magnificent, though difficult to remember, you know. It gave me the notion of an exotic Immensity ruled by an august Benevolence. It made me tingle with enthusiasm. This was the unbounded power of eloquence - of words - of burning noble words. There were no practical hints to interrupt the magic current of phrases, unless a kind of note at the foot of the last page, scrawled evidently much later, in an unsteady hand, may be regarded as the exposition of a method. It was very simple, and at the end of that moving appeal to every altruistic sentiment it blazed at you, luminous and terrifying, like a flash of lightning in a serene sky: 'Exterminate all the brutes!' "

Joseph Conrad: The Heart of Darkeness.

11.2.06

10.2.06

A alegria de guerrear

There's no sound like to swords swords opposing,
No cry like the battle's rejoicing
When our elbows and swords drip the crimson
And our charges 'gainst 'The Leopard's' rush clash.
May God damn for ever all who cry 'Peace'!

(Extracto do poema "Sestina: Altaforte" de Ezra Pound. 'The Leopard' designa o brasão de Ricardo Coração de Leão.)

Pontos nos is

Ana Sá Lopes sai hoje bravamente em defesa de Freitas do Amaral no DN. Deus a abençoe pela coragem.

Mas, embora concorde com a sua preocupação essencial - não deitar achas para a fogueira quando os pescadores de águas turvas debitam exaltadas proclamações guerreiras - eu acho que, precisamente, Freitas errou porque o que disse teve o efeito contrário.

Sendo a situação complexa como de facto é, reduzir o caso às suas proporções sem todavia ignorá-lo implica que os dirigentes europeus deveriam fazer uma (e só uma) coisa: reafirmar que a liberdade de expressão não é negociável. Ponto final.

Envolvendo-se na discussão política e ideológica dos cartoons, derrapam para terreno perigoso, criam expectativas aos radicais islâmicos e prolongam a polémica. Foi por isso que também eu condenei as declarações do ministro.

Quando ao resto, Timothy Garton-Ash diz o que penso muito melhor do que eu alguma vez seria capaz de explicar:
This is not a war, and it's not going to be won or lost by the west. It's an argument inside Islam and inside Europe, where millions of Muslims already live. If reason prevails over hate, it will be because most British, French, German, Spanish, Italian, Dutch, Danish and altogether European Muslims prevail over their own extremist minorities. We non-Muslim Europeans can contribute to that outcome, by our policies abroad, towards Iraq, Iran, Israel and Palestine, and at home, on immigration, education, jobs and so forth. We can also contribute by cultural sensitivity and self-restraint, but we cannot compromise on the essentials of a free society. (...)

O cuco

O cuco deposita os seus ovos nos ninhos dos outros pássaros para que os choquem em vez dele.

Quem será o cuco cujos ovos Marques Mendes está a chocar?

Outras vozes

Quando "toda a gente" está de acordo, o mais natural é que "toda a gente" esteja errada. De pouco serve a liberdade de expressão se "toda a gente" exprime a mesma ideia.

Para variar, vale a pena escutar o que dizem, por exemplo, Paulo Varela Gomes ou Timothy Garton-Ash.

9.2.06

Fados

Dizem: "É o mercado" como quem diz: "É o destino".

De guerra em guerra

Às vezes até parece que estão ansiosos por transformar a guerra de civilizações em guerra civil.

Dinamarca

Quando os ocupantes nazis decretaram que os judeus deveriam usar uma estrela de David, o rei da Dinamarca saíu à rua com uma na lapela e os seus súbditos imitaram-no.

Tempos depois, começou a deportação dos judeus. Os dinamarqueses esconderam-nos nas suas casas, onde eles permaneceram até ao dia da libertação. Ao todo apenas 500 foram capturados e enviados para os campos de extermínio.

Possivelmente, os dinamarqueses não precisarão da nossa ajuda para defenderem a liberdade de expressão. Pelo contrário, são eles que financiam o nosso trôpego apego à democracia com os impostos que para cá mandam por via dos fundos comunitários.


Milton Caniff.

Os cangalheiros do costume

Está na moda o cíclico enterro ritual do Ocidente de cada vez que se agitam as bandeiras do fanatismo que cercam a Europa.

Hoje quem toca a finados nas páginas do DN é Luciano Amaral. Até aqui, nada de inusual. Mas eis que de repente se solta esta espantosa frase:

"Quando quadrilhas de radicais islamitas, orquestradas por Estados autocráticos, fizeram um chinfrim disparatado a propósito dos cartoons, era de esperar que o Ocidente se unisse na afirmação daqueles princípios."

Imagino que esta ideia de que o Ocidente se deveria "unir em torno de princípios" não fará espécie a muita gente.

O mesmo se gritou há milénios quando, perante a iminência da invasão Persa, os Gregos continuavam, para gaudio de Xerxes, entretidos nas suas disputas estéreis e particularistas. Depois, foi o que se sabe.

Uma das ideias fundadoras do Ocidente é precisamente essa de que há um valor e uma força na divisão. Dessa crença paradoxal nasceu esta Europa de que tantos continuam a troçar.

O povo unido jamais será vencido? Ora, ora... Esperava-se mais de um liberal! O dia em que os europeus se unirem em torno dos seus princípios será, esse sim, o dia em que o Ocidente estará morto.

8.2.06



Georgia O'Keeffe: Oriental poppies.

Aos vindouros



As novas gerações, que só conhecem o Clapton na versão caquética, tendem a fazer como o cão da foto anterior. Para se compreender o que ia na cabeça do autor do graffiti, deve-se começar por ouvir este disco.

Dupla blasfémia

Mais um que perdeu uma oportunidade única de estar calado

7.2.06

Maomé ao vivo e a cores



A primeira razão para reproduzir aqui esta gravura persa é ela ser, a meu ver, belíssima. A segunda é ela representar Maomé pregando aos seus seguidores. Como esta e outras imagens se encontram em museus ocidentais, não correm o risco de ter a mesma sorte que os Budas do Afeganistão.


Takashi Murakami.

A guerra do cartoon

Um jornal dinamarquês muito dado a provocações chauvinistas e que trata usualmente os imigrantes como lixo acendeu o rastilho. Uma minoria de fanáticos islâmicos reagiu como seria de esperar, organizando manifestações pouco concorridas mas violentas e vistosas.

Coisas de grupelhos isolados, dir-se-ia. Mas não: gente que se esperaria mais ponderada entreteve-se a espalhar gasolina sobre as chamas.

Os governos europeus deveriam limitar-se a reafirmar que a liberdade de expressão não é negociável. A polícia britânica deveria prender e entregar à justiça os manifestantes londrinos que incitaram à "chacina" (butchering) dos europeus e à repetição dos atentados de 7 de Julho. A Síria deveria ser chamada à pedra pela destruição que causou nas embaixadas escandinavas de Amã e Beirute. Os dinamarqueses deveriam discutir entre si se querem fomentar o terrorismo no bairro ao lado. A Europa deveria ponderar se faz sentido continuar a deixar entrar imigrantes islâmicos que não sabe como integrar. Os líderes muçulmanos europeus deveriam ter tornado claro de que lado estão. A Turquia e a Igreja Católica deveriam ter ficado caladas.

Tudo o mais esteve a mais.

Os nossos neocons domésticos - uma espécie de ornitorrinco do reino humano - zangaram-se com George W. Bush pelas atitudes apaziguadoras da administração americana. (Pudera, quer retirar do Iraque até ao Natal!)

O problema é que muita gente, a Leste como a Oeste, já não satisfaz os seus instintos guerreiros com rituais de pancadaria nos campos de futebol e trocas de insultos entre dirigentes desportivos à segunda feira. Em vez de se demarcar de comportamentos marginais minoritários, a maioria deixa-se arrastar por eles para uma escalada de consequências imprevisiveis. Quer guerra, e, por conseguinte, há-de tê-la - nem que seja por causa de uns cartoons.

Louvor da paciência

Jogou bem contra o Braga, o Porto? Foi um desafio agradável, com a equipa muito solta, a fazer circular a bola com rapidez e a rematar muito à baliza. Uma grande melhoria em relação ao passado recente.

É verdade que quando uma equipa não ganha é porque, no fundo, jogou mal? Não necessariamente. Às vezes - não muitas, acho eu - joga-se bem e perde-se.

Então, afinal, Adriaanse tem razão? Ele está de facto a construir uma grande equipa? Não. Aquele futebolzinho serve para consumo doméstico, mas não tem futuro.

Sem desfazer no Braga, qualquer equipa de nível internacional teria derrotado ontem um Porto destituído de inteligência colectiva, tão macio e ligeiro na atitude perante o adversário. O penalty foi mal assinalado, mas estava-se mesmo a ver que, se não fosse assim, poderia sofrer um golo de outra maneira.

Em dois anos, mudou completamente a filosofia da equipa. A ideia de futebol do Mourinho resumia-se (e resume-se) a isto: o adversário não tem direito a nada. Não tem direito a atacar, não tem direito a defender, não tem sequer direito a ter a bola.

Com Adriaanse, como o próprio já explicou, é o contrário: a equipa não se preocupa com o adversário, joga sempre da mesma maneira, seja ele qual for. Quando Adriaanse se for embora, será preciso refazer tudo do início. Até lá, é preciso ter paciência.

6.2.06

Relatório e Contas do Lugar Comum (2006)

Número de sites em língua portuguesa contendo a expressão entre aspas, segundo o Google:

«De mal a pior» - 44.200 (14.600 há um ano)

«Cada vez pior» - 32.400 (11.900 há um ano)

«Falta de vontade política» - 21.400 (6.900 há um ano)

«Pobre país» - 29.300 (3.390 há um ano)

«Não vamos a lado nenhum» - 916 (1.090 há um ano)

«Desprestígio dos políticos» - 37 (17 há um ano)

«É uma vergonha» - 87.000 (novo)

«Cauda da Europa» - 27.000 (novo)

«Ninguém faz nada» - 19.800 (novo)

«A saúde está doente» - 1.330 (novo)

«Falta de auto-estima» - 989 (novo)

«Quem se lixa é o mexilhão" - 655 (novo)

«O sistema está podre» - 604 (novo)

«Cambada de corruptos» - 524 (novo)

«Assim não vamos lá» - 410 (novo)

«O que eles querem sei eu» - 212 (novo)

«A política está podre» - 7 (novo)

"De mal a pior" e "Cada vez pior" continuam a vender-se muito bem. "É uma vergonha" entrou directamente para o topo das preferências do público. "Cauda da Europa", "Ninguém faz nada" e "Pobre país" permanecem valores seguros. "Não vamos a lado nenhum", "Assim não vamos lá", "A saúde está doente" e "O sistema está podre" têm muito potencial para continuar a crescer. "Desprestígio dos políticos" continua a desiludir as esperanças nele depositadas.

1.2.06

Bill Gates, biografia não autorizada

Para grande desgosto da família, Bill Gates abandonou o curso a meio, porque o que verdadeiramente lhe interessava era ser mais rico do que o pai.

Anos depois, comprou por tuta e meia uma versão primitiva do MS-DOS a um infeliz que desconhecia que ele ia revendê-la à IBM.

Mas a equipa da IBM encarregada do desenvolvimento do primeiro PC não tinha orçamento para pagar um sistema operativo. Caridosamente, Gates aceitou receber apenas uma certa verba por cada computador vendido.

O MS-DOS era uma coisa básica, complicada e repelente para os utilizadores. Só em 1995 é que a Micrososft conseguiu finalmente oferecer um interface equivalente ao que o Apple Macintosh pusera no mercado 11 anos antes.

A Microsoft não inventou nem o processador de texto, nem a folha de cálculo, nem... nem nada. Limitou-se a fazer produtos idênticos aos existentes, a embrulhá-los no Office e a colocá-los dentro de cada PC vendido.

Depois, foi só ver o dinheiro a pingar.

Gates visionário? Em 1994, a primeira edição do seu livro "The Road Ahead" não menciona sequer a internet. No ano seguinte, ela explodiria. Como a Microsoft não tinha um browser, limitou-se a copiar o Navigator da Netscape, a chamar-lhe Internet Explorer e a juntá-lo ao Windows.

A falta de perspicácia da IBM no início dos anos 80 ofereceu de bandeja à Microsoft o monopólio virtual no mercado de sistemas operativos para computadores pessoais.

É claro que o monopólio da Microsoft facilitou em certa medida a vida aos consumidores, na medida em que os dispensou de fazerem escolhas para as quais não estavam preparados. Mas muita gente acredita que, no longo prazo, essa situação retardou a inovação.

Um dos aspectos mais absurdos da informática actual consiste no facto de ser mais fácil procurar um documento na internet do que dentro do nosso computador. Essa simples constatação dá-nos a medida do que está errado com o Windows.

Em conclusão, Bill Gates deve a sua fortuna ao facto de ser um hábil e duro negociador com um apurado sentido da oportunidade. O seu forte nunca foi a inovação, mas a capacidade de tirar partido comercial das inovações criadas por outros.


Rouault: Nazaré.

As delícias da reforma

Dá-se como subentendido que as pessoas anseiam pela reforma para deixarem de trabalhar. Mas não fazer nada não é coisa que se faça. E, mesmo que não se morra de tédio, todos sabemos que a passagem à reforma é um indício seguro de que a vida de um sujeito entrou na sua fase terminal.

Que há então de tão excitante na reforma, para tantos se revoltarem quando vêem ameaçado esse direito adquirido?

Muito simples: a reforma é a única fase da vida em que os pobres são iguais aos ricos num aspecto decisivo: aconteça o que acontecer, o seu sustento está garantido.

Sob escuta

Fiquei inibido desde que o DN colocou os blogues sob escuta.

Novidades

Regresso após seis breves dias de ausência e constato como passam depressa as águas sob esta ponte. Acima de tudo, agora que o VPV também anda por aqui, apetece-me dizer que o Maradona tem finalmente concorrência à altura.