21.4.04

Empreendedorismo e cleptocracia

Tanto quanto consigo avaliar, uma parte dos quadros técnicos portugueses dos sectores público e privado passam o seu tempo em seminários, conferências e mesas redondas.

Por muito insignificante que seja o tema, a afluência é sempre enorme, e ninguém arreda pé durante o dia todo. Quem sou para os criticar? Normalmente conhece-se gente interessante e, em termos práticos, também não se produz menos do que no escritório.

Há dias assisti a um pow-wow sobre o momentoso problema do empreendedorismo. Como não podia deixar de ser, um professor universitário presente sugeriu que se lançassem iniciativas destinadas a - adivinharam! - sensibilizar os jovens para a importância do empreendedorismo e motivá-los para correrem riscos.

Mas será preciso? Sempre ouvi dizer que, nas mais variadas sociedades, as pessoas com perfil empreendedor representam uma proporção aproximadamente constante da população. Essa percentagem só aumenta significativamente nos países com uma elevada taxa de imigração.

Logo, o grande problema não é fomentar o empreendedorismo, mas assegurar que os seus efeitos são úteis para a sociedade.

Eu explico. Após a queda da União Soviética constatou-se que os russos têm um fortíssimo instinto empreendedor; lamentavelmente, porém, canalizam-no principalmente para actividades ilícitas. O resultado foi a criação em pouco mais de uma década de uma poderosa e tentacular cleptocracia que, não tarda muito, atacará a mafia americana -- instalada, abúlica e pouco competitiva -- no seu próprio terreno.

Passa-se algo semelhante entre nós, visto que os portugueses revelam um notável espírito de iniciativa. Todavia, preferem aplicá-lo em actividades anti-sociais: fuga aos impostos, contrabando de tabaco, caça organizada a todo o género de subsídios, suborno de autarcas para obter autorizações para construir em zonas protegidas, etc., etc., etc.

Alguns dos casos de corrupção revelados nos últimos tempos revelam mesmo uma notável aliança entre imaginação e alta tecnologia, como por exemplo a fraude nas portagens da Brisa.

Apetece-me recordar mais uma vez a inutilidade dos sermões: as pessoas comportam-se consoante os incentivos que recebem. O que os jovens vêm é que, em Portugal, raramente se triunfa na vida por meios legítimos. As grandes fortunas portuguesas são as mesmas de há 30 anos, de há 100 anos ou de há 200 anos e, na maioria dos casos, têm origem em negócios de algum modo ligados à escravatura.

As alternativas válidas são, pois, nascer na família certa, arranjar um bom padrinho e fazer carreira à sua sombra ou, quando essas alternativas falham, encarar a lei de forma descontraída.

O empreendedorismo não é necessariamente uma coisa boa para a sociedade. Depende do que ela for capaz de fazer com ele.

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