15.4.04

Osama e Bush

Arnaldo Jabor na Globo online de 3ª feira:

Estamos num tempo em que as «soluções» não existem mais. Não há solução para o terrorismo, graças às tarefas que Osama encomendou a Bush e que ele executou, obedientemente. “«Osama-Bush» é um veneno duplo. Osama é um dos maiores estrategistas da História: sozinho, desestabilizou o planeta, usando as armas do inimigo. Assim como usou os aviões da United para o WTC, usou o presidente dos USA contra os USA e o mundo. Mesmo que Osama morra, sua obra já está feita. Ele semeou o terrorismo e Bush legitimou-o para sempre.

Osama criou Bush como um lugar-tenente para destruir tudo que o Ocidente criou no século XX, tudo que foi conquista democrática, valores ecológicos, sexuais, culturais.

Bush não é uma pessoa; é um resultado. São séculos de uma ideologia religiosa que começa puritana, com humildade bíblica, mas que a complexidade do progresso social poluiu de rancor e boçalidade fanática. Bush é o porta-voz de uma «gangue» da América silenciosa que odeia a democracia. Como Osama odeia.

Bush e sua gangue não querem pouco; querem mudar a face do mundo e da América. Eles acham que nós, democratas, somos «cães infiéis», exatamente como a al Qaeda. Assim como há Osama, há Bush, na mesma moeda.

O que nos choca nisso tudo é a inatualidade do fenômeno. Eles, as gangues do Bush e do Osama, ambas negam a existência do seculo XX, da arte, da política, da filosofia. Negam Marx, Freud, Picasso, renegam Darwin e seus macacos. Na gangue americana, temos Karl Rove, Perle, Rumsfeld, Wolfwitz — iguais aos fanáticos de Osama. Eles odeiam a Europa (principalmente a França) por ser mais culta, mais sábia, mais chique. Estão ainda no século XIX; são colonialistas, não isolacionistas. Eles não querem se isolar; querem nos isolar. Como Osama.

A gangue de Osama nos odeia desde 1492. A gangue de Bush tenta o poder desde o Watergate, desde o fim da Guerra Fria, desde a primeira guerra do Golfo, feita pelo papai em 91. Bush-Osama nos aparecem justamente na hora em que a América nos prometia uma multilateralidade política sedutora. Bush veio para acabar com todas as conquistas liberais dos anos 60. Só faltava um pretexto; Osama deu-o. Bush é um detergente; ele acha que problemas se «lavam mais branco», se raspam, ele acha que dissidências se esmagam, que complexidades devem ser achatadas, que o múltiplo tem de virar «um», que tudo tem um princípio, meio e um fim, e que o fim deve ser igual ao início, realizando o pensamento dos milhões de idiotas que jazem entre o hambúrguer e o sofá, diante da TV. Como Osama, ele também quer nos raspar da face da Terra.

Bush está arrasando com a esperança da Europa, que, depois de um século de brutalidades, de duas guerras mundiais, estava no caminho de uma solução pacífica de convivência. A gangue Bush sempre odiou os europeus afrescalhados, que falam em coisas profundas, humanistas, metidos a «superiores». A América republicana acha que esse papo de multiculturalismo é coisa de fracos. Como Osama. Há algo de conjunção astral maligna, algo que houve nos anos 30, quando Hitler crescia. Há períodos históricos em que parecemos desejar a morte. Surge uma fome de irracionalismo, como que uma libertação animalesca dos freios da civilização. Osama-Bush fizeram o inconsciente bárbaro irromper de novo entre nós. A partir de agora, sob o comando de Bush, só vamos errar. É como se o Bush e sua turma apavorante dissessem: «Chega de frescuras de democracia, de bom senso europeu. Vamos botar pra quebrar!» Como Osama.

Bush usa o nome de Cristo em vão. Osama usa o nome de Alá em vão. Ambos rezam antes de agir. E ambos, unidos, acabaram com o sonho de se alcançar uma harmonia política futura. Mixou a idéia platônica de «futuro redentor». Outro dia, o Baudrillard disse: «Acabou o universal; só há o singular contra o mundial». Perfeito. A genialidade de Osama consistiu em atacar isso: o sonho universal da civilização.

Os fanáticos só têm certezas — tanto Bush quanto Osama; só que um continua a acertar. O outro, a errar. Nós achávamos que chegaríamos a um futuro sem perigos. Os fanáticos já chegaram lá, no «futuro». O futuro deles é hoje. Os fanáticos do Islã querem o imóvel, a verdade incontestável. Osama acha que somos o mal. Ele é o bem. O Bush pensa igual, do outro lado. A América tem uma ideologia. Eles têm a teologia (ou não, pois Bush também é teologia).
Espanta-me muito que Clinton tenha quase sido impeached porque papou uma mulherzinha e, no entanto, Bush suja o nome da América, mata centenas de jovens no deserto do absurdo, arrasa o Ocidente e ninguém fala em impeachment, o que prova o horror moralista da direita cristã e a caretice da América.

Osama traçou um destino para o século XXI, que Bush executa. O terrível é que tenha sido tão fácil, tão imaginoso. Ele (Osama ou Bush?) acabou com nossa idéia de «finalidade». O projeto do Ocidente agora é localizar bueiros com bombas e cartas venenosas. Osama acabou com nosso mito de tudo controlar, a busca do destino sem acontecimentos, sem sustos. Ele não quer nada de nós; só a tecnologia para «suicidá-la» contra nós. Ele está nos fazendo viajar no tempo. Estamos de volta ao século VII, na Idade Média, quando Maomé cria as bases de uma religião obsessiva, desértica, que louva o martírio e a exclusão dos «infiéis».
Uma coisa é certa: a idéia de «vencer» não existe mais, não há vitórias para nós; vamos ter de incluir a morte em nosso dia-a-dia, como fazem os islâmicos. Não poderemos esquecê-la jamais. Neste sentido, ficaremos mais «orientais», fatalistas. Consolo ridículo: «Isso pode até ser útil para o Ocidente consumista». Achávamos também que Osama amava a morte e o Bush amava a vida. Engano. Bush também ama a morte. A única diferença é que Osama é inteligente e Bush é burro.

(Com os meus agradecimentos ao Gilson que me fez chegar este magnífico texto.)

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