26.4.04

Ensaio sobre a lucidez

Fez ontem 30 anos que Vasco Pulido Valente nos inflige periodicamente os seus ensaios sobre o 25 de Abril. Para comemorar a efeméride, publicou mais um no DN.

O mundo é confuso e o ser humano não é boa peça. Armado destas surpreendentes trivialidades, o valente Pulido está sempre pronto para dissertar sabiamente sobre todo e qualquer assunto sem correr grandes riscos de se enganar. Com a condição, obviamente, de jamais se deixar envolver por qualquer acontecimento ou influenciar por qualquer personagem real.

Apesar de todo o tempo que já teve para meditar sobre o assunto, a mensagem permanece pobre e a análise superficial. Mas escreve muito bem -- oh que bem que ele escreve! -- e, no país de iletrados que nós somos, a forma pesa muito mais do que a substância.

Vasco é mais um desses talentos indisciplinados em que somos férteis, como a Agustina ou o Luís Pacheco. Incapazes de trabalho sólido e pertinaz, não deixam nada de substancial atrás de si, excepto ruído e fúria -- e a inabalável convicção do seu próprio génio. Português, demasiado português.

De resto, tudo o que ele escreve sobre o 25 de Abril poderia sê-lo por alguém que apenas dele teve conhecimento num país distante pela leitura dos jornais. Único entre todos os portugueses, ele jamais se comoveu ou deixou iludir. Porque, ao contrário de todos nós, ele é essencialmente lúcido.

Mais um que nunca se enganou e raramente teve dúvidas -- ou será ao contrário?

O seu assunto pouco interessa, porque ao fim e ao cabo se limita a falar de si mesmo, ou melhor, da sua auto-imagem, sem suspeitar um momento que isso só lhe importa a ele.

(O melhor exemplo do que digo foi a descomposta nota que há poucos meses teve a infeliz ideia de enviar da cama do hospital a «arrasar» o best-seller de Miguel Sousa Tavares, como se disso dependesse a salvação do mundo.)

Todos os autênticos estalinistas que conheci eram assim. Para eles, o mundo divide-se em duas partes incomunicáveis: de um lado estão os outros, pobres tolos fantasistas que interminavelmente perseguem as abomináveis ilusões a que dão o nome de felicidade, sem recuarem perante a estupidez ou o crime; do outro lado estão eles, só eles e eles sós, irredutíveis na sua lucidez, na sua recusa da emoção, na sua lógica fria e incorruptível.

Eles são os guardiões da verdade, são puros, incorruptíveis no raciocínio e inabaláveis nos princípios. O preço que pagam para conservarem o respeito por si próprios é o cinismo.

Falta todavia explicar o mistério da extraordinária aceitação de que as suas doentias elucubrações disfruta nos nossos círculos dirigentes.

Desde a mais remota antiguidade, as cortes sempre tiveram um personagem estranho cujos comportamentos e ideias excêntricas serviam para exorcizar os demónios -- jester, chamavam-lhes os ingleses. Conjecturo eu que uma sociedade atrasada e supersticiosa como a nossa também não pode dispensar uma figura assim.

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