14.6.04

Como governar com uma picareta

Vê-se que Durão Barroso tem feito um bocado de media training. Assim, as suas primeiras palavras de ontem, após a divulgação dos resultados eleitorais, foram invulgarmente sensatas: «Nós ouvimos a mensagem», disse ele, mais ou menos por estas palavras.

Logo a seguir, porém, reafirmou a intenção de prosseguir, intensificar e acelerar a obra começada. Quer isto dizer que, após uma derrota destas proporções, o segundo mandato é hoje encarado pela coligação como uma miragem sem sentido, pelo que é necessário aproveitar o escasso tempo que falta para completar o trabalho de destruição a que lançou mãos.

Se esse entendimento prevalecer -- e não é impossível que isso aconteça -- vamos ter então mais do mesmo, e vamos, principalmente, assistir a uma tentativa desesperada de manipulação dos media directa ou indirectamente controlados para apoiar o governo.

As forças vivas que apoiam a coligação vão entrar em parafuso. Vão insistir na perseguição aos adversários políticos por meio de inquéritos, sindicâncias e o mais que adiante se verá. Vão desencantar mais affaires Casa Pia.

Entretanto, o porta-voz do PS diz que a colugação tem toda a legitimidade para governar e que não pede o seu derrube porque respeita as regras do jogo.

Muita gente não sabe, aparentemente, o que quer dizer legitimidade. Se soubesse, entenderia que a legitimidade do governo se reduziu drasticamente com estes resultados eleitorais e que, para o bem e para o mal -- repito: para o bem e para o mal -- todas as forças sociais e políticas que se lhe opoem por boas e más razões ganharam alento para lhe fazerem frente.

É claro que um governo assim isolado e enfraquecido não tem condições para prosseguir nenhuma espécie de acção reformista. Mas o confronto entre uma oposição fortalecida e um governo desnorteado auguram um período de grande agitação em todos os planos.

Quanto às «regras do jogo»... Vieira da Silva parece desconhecer que o derrube de um governo antes do final da legislatura pode ser considerado prejudicial para o país, mas está certamente previsto nas regras do jogo.

Um governo pode caír por falta de apoio parlamentar, em resultado, por exemplo, da ruptura da coligação. Ou pode ruir por impossibilidade de resistir aos ataques conjugados dos seus adversários, como sucedeu com o último executivo de António Guterres. Ou pode ser deposto pelo Presidente da República se a situação se lhe afigurar insustentável.

Tudo isso pode vir a acontecer nos próximos dois anos. Pela minha parte, parece-me muito pouco provável, nas circunstâncias actuais, que o governo PSD/PP resista até ao fim da legislatura.

E engana-se quem pensa que Durão Barroso pode vir a ser salvo in extremis por uma inversão da conjuntura económica. O que o dilúvio eleitoral de ontem revelou (a direita coligada teve pouco mais de um terço dos votos!) é que o país em geral, e os apoiantes do PSD em particular, perderam definitivamente a confiança nele.

Nestas circunstâncias, a recusa de afastar-se não demonstra coragem, mas mera falta de senso político. É muito ténue a linha que separa a persistência louvável da obstinação neurótica.

Em vez de se contentar com discursos de circunstância, o PS deveria começar imediatamente a preparar a alternativa. Porque e verdade é que, se por acaso a responsabilidade governativa lhe caísse amanhã ao colo, não saberia o que fazer com ela...

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