5.7.06

Fome de bola

É difícil imaginarem-se duas atitudes mais opostas do que "andar de cabeça no ar" e "ter os pés bem assentes na terra". A cabeça simboliza o nosso lado etéreo; os pés, o material.

Não é de admirar, pois, que uma conjuntura marcada pelo anti-intelectualismo tenha desembocado na universal adoração pelo futebol. Desconfiamos hoje dos desvarios do espírito com a mesma convicção com que veneramos a autenticidade do corpo, da intuição e do sentimento. Os grandes torneios internacionais encenam novas versões do Triunfo da Vontade.

Remetidos à defensiva, os intelectuais competem na exibição pública do seu amor pelo futebol. Os mais persistentes esforçam-se por intelectualizar as discussões, esgrimindo subtilezas tácticas ou dedicando versos ao Figo.

E, de resto, que outra coisa poderiam eles fazer num contexto cultural tão adverso? Como condenar a alienação pelo futebol, se já ninguém é capaz de afirmar conhecer a essência supostamente alienada?

Estou possivelmente a exagerar. Vendo bem as coisas, não há nada de errado na dignificação do pé operada pelo futebol. Mas o pé deve ser valorizado por aquilo que ele é e por aquilo que faz, não pela sua suposta oposição à cabeça: ao fim e ao cabo ambos convivem harmoniosamente no corpo humano desde que secou o barro primordial.

Não estava certo que o pé fosse rebaixado por força dos preconceitos que tendem a diminuir tudo o que é periférico e silencioso. Nesta espécie de luta de classes não declarada, a importância do pé foi frequentemente negligenciada porque, não tendo voz, lhe carecia capacidade para marcar a agenda. Vai daí, o pé tinha má imprensa.

Em conclusão, devem conviver e dialogar mais o pé e a cabeça. Quem sabe se não acabarão por descobrir que, afinal, o que os une é muito mais forte do que o antagonismo absurdo que os traz desavindos? E não vá a cabeça pensar - que é só o que ela sabe fazer - que desse modo se rebaixa.

Nenhum assunto é indigno da filosofia. "A filosofia não se aprende a devorar resmas de livros filosóficos, nem torturando-nos com a solução dos enigmas do universo. A filosofia permanece latente em toda a existência humana e não precisa de lhe ser acrescentada como se provinda de alhures". Quem disse isto, note-se bem, foi um grande chato que, muito naturalmente, até nem gostava de futebol.

Boa noite, e bom jogo.

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