Em Portugal, há muita gente que não faz praticamente nada, sem distinção de profissões, sexo, raça ou credo religioso. Tampouco noto grandes diferenças entre sector público e privado ou entre dirigentes e dirigidos.
Certas pessoas não têm sequer ânimo para se levantarem da cama todos os dias. Mas não penso principalmente nessas, antes nas que, cumprindo embora os rituais que usualmente associamos à actividade laboral, na verdade não produzem pevas.
Um exemplo prático talvez ajude a entenderem o que eu digo:
Pergunta: Uma vitória...Fizeram mal se se concentraram nas respostas do futebolista, porque o interessante aqui são as perguntas do entrevistador.
Resposta: Estamos todos de parabéns. Temos trabalhado muito todos os dias para darmos uma satisfação aos adeptos, cumprimos as indicações do mister, e, quando assim é, estamos todos de parabéns.
Pergunta: Mas estão ainda a seis pontos do líder...
Resposta: É um facto, não vamos negá-lo. Temos que continuar a trabalhar todos os dias, a seguir o que o mister nos transmite, para agradar aos adeptos que tanto nos têm apoiado, que os resultados hão-de acabar por aparecer.
Pergunta: Hoje regressou aos golos...
Resposta: Trabalho muito para isso. Às vezes a bola não quer entrar, mas nós temos que nunca desistir. Eu sou sempre o mesmo, tenho esta ilusão de marcar golos e os golos hão-de acabar por aparecer. Enquanto o mister confiar em mim, cá estarei para dar o meu contributo.
Reparem: ele compareceu ao serviço no estádio à hora acordada, no final dirigiu-se à zona de entrevistas e falou com o jogador. Numa palavra, cumpriu o ritual. E, no entanto, é evidente que ele não prestou atenção ao jogo, nem se inteirou do que nele se passou, de modo que, a falar verdade, nem sequer fez perguntas, limitou-se a emitir alguns murmúrios vagamente assemelhados à fala humana. O resultado não seria diferente se tivesse passado o tempo que durou o jogo a emborcar umas cervejolas no bar do estádio.
Este desgraçado não tem o menor interesse por aquilo que faz, de modo que se esforça por fazê-lo o piorzinho que consegue. Para sermos justos, não parece ter a mínima ideia do que poderia ser fazer um bom trabalho.
Todos assistimos a este número semana após semana. Todos - inclusive o seu compreensivo patrão - constatamos que ele não faz o seu trabalho. Apesar disso, nada muda.
Este é, note-se, um trabalho que se faz à frente de dez milhões de potenciais espectadores, ou seja, perante o escrutínio público. Imaginemos agora o que se passa por detrás das cameras ou dos bastidores. Imaginemos o que se passa em todas aquelas profissões em que nem nós nem o patrão vemos o que um sujeito está a fazer.
Tendemos a encarar sujeitos como este que vos apresentei como doentes, mas essa opinião é talvez precipitada. É possível que eles sejam antes uma espécie de deuses que estão para além do trabalho e do lazer, da vida e da morte, do prazer e do sofrimento, habitando um mundo de tranquila e eterna beatitude que o ruído do mundo não alcança. Sabem que tudo é vão e agem em conformidade.
Inquiridos sobre a motivação do seu comportamento, olharão para nós com condescendência e, se se dignarem conceder-nos a esmola de uma resposta, será possivelmente qualquer coisa deste género: "Estás nervoso? Acalma-te que isso faz-te mal à saúde."
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