14.12.09

Tu cá, tu lá

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Reencontrei surpreendentemente o livrinho de Lindley Contra "Sobre Formas de Tratamento na Língua Portuguesa" publicado pelos Livros Horizonte em 1972, que nos diz mais sobre a nossa maneira de ser do que grossos tratados de sociologia.

O autor sustenta que a exasperante complexidade das formas de tratamento que usamos no quotidiano terá nascido no século XIV como subproduto do esforço de afirmação social dos parvenus que ascenderam ao poder após a revolução de 1385 atrelados ao Mestre de Aviz. Baseia a sua opinião sobretudo na súbita evolução que nota dos escritos de Fernão Lopes para os de Zurara.

A partir daí, nunca mais nos deixou a obsessão nacional com a utilização dos títulos e das formas de nos dirigirmos uns aos outros como sinais de demarcação social, a ponto de Filipe II e João V terem promulgado leis - sim, leis! - determinando que classes e cargos poderiam ou não ser tratado por alteza, excelência, senhoria ou reverência.

Os tempos mudaram, é claro. Cintra julgava poder identificar ao longo da década de 60 uma progressiva ampliação da utilização do "tu" e do "você" (neste último caso acompanhado da perda da conotação depreciativa) a par do acantonamento do "Excelência" a situações de particular cerimónia. Mais optimisticamente, ele acreditava estarmos a assistir ao desaparecimento de formas de tratamento acintosamente classistas.

É verdade que, hoje, tratamos a mulher a dias por "senhora" ou "senhora dona", mas parece-me que Lindley Cintra ficaria surpreendido com a utilização contemporânea do "doutor", "engenheiro" ou do "professor" como pouco mais ou menos equivalentes do tradicional "excelência". E nem é precido recordar como dizer "o" Cavaco Silva ou usar o pronome "ele" para mencionar Sócrates continua a ser considerado má educação em determinados contextos.

No que toca a gente importante, o tratamento por Tu continua reservado a Deus.
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