14.6.04

A mim não desiludem eles

«Eh, pá! Aquele Karagounis afinal joga no Inter!» «Já reparaste no grego que o Porto está a tentar contratar? Grande jogador...»

Estes e outros comentários similares mostram-nos que a empáfia e a ignorância nunca nos abandonam, nem mesmo no futebol. Os portugueses sabem que temos uns quantos futebolistas nalguns dos melhores clubes europeus, mas, sempre distraídos com o que se passa «lá fora», cuidam que os outros não têm.

Seguros de que dispomos dos melhores jogadores do mundo, esquecemo-nos de que muito poucos países europeus têm um palmarés de qualificação para os campeonatos da Europa e do Mundo tão mau como o nosso.

Ao ler e ouvir os nossos comentaristas desportivos, dir-se-ía que somos habitués da alta roda do futebol de selecções, ao contrário de coxos como os búlgaros, os romenos, os noruegueses, os dinamarqueses, os suecos, os noruegueses, os polacos, os checos ou até os russos. Ora a verdade é exactamente o contrário: somos nós que raramente nos qualificamos e eles que andam sempre por lá.

Pela amostra ninguém diria que, como agora se tornou moda afirmar, padecemos de baixa auto-estima.

Eu suporto bem as derrotas do meu clube, mas não as vitórias da nossa selecção, porque, embora raras, ainda mais raramente se devem ao mérito.

O método que preside à orientação da selecção nacional é o do «milagre de Fátima», o que, para além de não funcionar, ofende desnecessariamente os sentimentos dos católicos autênticos.

Começa tudo pela escolha do seleccionador. A opção recai usualmente sobre alguém sem as mínimas qualificações para o cargo.

Podem ser o Carlos Queirós ou o Humberto Coelho, por exemplo, que até ao momento dessa escolha nunca haviam orientado nenhuma equipa sénior de primeiro plano. (Mas com um bocadinho de sorte... quem sabe... vejam o brilharete do Humberto Coelho...) Ou pode ser o Scolari, cujo nome impressiona o público ignaro, embora o seu perfil não corresponda de modo algum ao que seria mais indicado.

Em seguida passa-se à escolha dos jogadores. Aqui há três critérios essenciais. Em primeiro lugar, chamam-se as vacas sagradas, e já está meia equipa feita: Baía, Couto, João Pinto, Rui Costa e Figo. Depois juntam-se alguns números de circo, que podem ser, por exemplo, o Quaresma ou o Cristiano Ronaldo. Finalmente, compõe-se uma linha que, para além de não irritar nenhum dos grandes clubes, satisfaça os agentes dos jogadores e as marcas patrocinadoras.

Mas é preciso pôr esta selecção de conveniência a jogar e, aí, as coisas começam a complicar-se, porque esta não é uma selecção para jogar -- é uma selecção para mostrar. Um bibelot, diria eu.

Este tipo não pode jogar, porque corre o risco de lesionar-se e o seu clube vai aborrecer-se com o seleccionador; aquele também não, porque pode fazer sombra a alguma das vacas sagradas. Chega-se assim a uma selecção de GRANDES NOMES acolitados por futebolistas de segundo plano que jogam no estrangeiro. A razão da chamada de sujeitos como o Boa-Morte é apenas que, como os seus clubes não estão filiados na Federação Portuguesa de Futebol, os seus protestos pela inoportunidade da convocatória não podem incomodar o Presidente.

As vacas sagradas não cedem o seu lugar na selecção, porque esse protagonismo impulsiona as suas carreiras, mas, super-desgastados por calendários exigentes nos clubes onde jogam e que lhes pagam, não só hesitam em pôr o pé quando correm o risco de lesionar-se como se comportam como donos da equipa que são supostos servir. (Em abono da verdade, devo dizer que o Figo é normalmente uma excepção a esta regra.)

Por isso mesmo, a selecção joga sempre mal nos jogos de qualificação. Mas há sempre a esperança de que faça um «brilharete» se por acaso conseguir chegar à fase final. Todavia, ao contrário do que os comentaristas apregoam, há mais justiça no futebol do que na vida que está para além dele.

Desta vez, os rapazes foram dispensados de se qualificarem pelo facto de sermos o país organizador. É claro que eles e o seleccionador entenderam isso como uma licença para não se ralarem desnecessariamente durante quase dois anos, gastos a fazer «experiências» irrelevantes sob o olhar condescendente dos comentaristas que se interessam mais por discutir os árbitros, o sistema, as transferências nunca concretizadas do Benfica ou as namoradas dos jogadores.

O problema, pelo menos para mim, não é que percam -- porque, enfim, no desporto isso é a coisa mais natural do mundo. O problema não é sequer que joguem mal -- porque já me habituei a considerar isso natural. O problema é que nada -- absolutamente nada -- é feito para que joguem bem, e, apesar disso, se alimente a doce ilusão de que, chegado o momento, os portuguesinhos valentes se encherão de brios e, entusiasticamente apoiados pela nação em pé de guerra, ganharão a taça para todos nós.

A derrota frente à Grécia foi a coisa mais normal do mundo, porque perder e jogar mal é a única coisa que a selecção tem feito de há dois anos a esta parte. Estranho e injusto seria que meia dúzia de rapazes talentosos mas atarantados, orientados por um treinador que continua a fazer experiências em pleno torneio, vencessem uma equipa (mediana mas, ainda assim, uma equipa) como a grega. Estranho e injusto, já agora, será que Portugal vença os russos e os espanhóis e passe à fase seguinte.

Obviamente, a revolução racionalista ainda não passou por aqui, de sorte que ninguém, nem os dirigentes, nem os técnicos, nem os jogadores, nem, acima de tudo, o público espectador entende que as mesmas causas tendem a produzir os mesmos efeitos.

A religião popular futebolística dominante tem como artigo de fé central a crença de que é tudo uma questão de adoptarmos comportamentos de sucesso. Basta que todos, do primeiro-ministro à Galp, passando pelos milhões de bandeirantes em que nos tornámos, insistam numa atitude psicológica positiva, queiram mesmo com muita força, apoiem sem restrições a selecção e o milagre acontecerá -- mais, será inevitável.

Esta gente está disponível para acreditar em tudo, menos no trabalho metódico, na disciplina e na organização. E disparam: «Se o Porto é campeão europeu, porque é que a selecção não pode sê-lo também?»

Pois, precisamente...

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