No ano lectivo de 1969-70 foi a academia portuguesa varrida
por uma vaga de contestação que ainda não vi relatada em qualquer livro de
história sobre a época. Consistia o movimento na iniciativa que muitos
estudantes de várias escolas tomaram de questionarem de viva voz o que os
mestres lhes ensinavam, designadamente no que tocava aos pressupostos
ideológicos e políticos subjacentes a esse saber.
Descontando a surpresa ou mesmo o choque de que uma coisa
assim pudesse ter lugar num país que, para todos os efeitos práticos, vivia em
ditadura, o debate processou-se durante algum tempo num clima notavelmente
civilizado, apenas ameaçado pelas pressões que o governo exercia sobre as
direcções académicas para que pusessem cobro à subversão.
Foi então que, na Faculdade de Direito de Lisboa, alguém, que
eu aliás muito bem conhecia dos bancos do Liceu, introduziu um estilo novo e
mais excitante de contestação consistente em insultar os mestres e
arremessar-lhes tomates e ovos quando o debate não evoluía a seu contento. Como
talvez fosse de esperar naquele contexto, o estilo pegou, alastrou a outras
escolas e motivou uma escalada de violência que não mais recuou até ao 25 de Abril.
Consumada a revolução, os debates em assembleias populares
começaram por decorrer num geral ambiente de fraternidade e respeito pelas
opiniões alheias, que todavia não durou mais que escassas semanas. Logo que se
tratou de eleger direcções de sindicatos, de comissões de trabalhadores ou de
comissões de moradores, os comunistas e alguns grupos esquerdistas recorreram
prontamente ao método de intimidação dos opositores, muitas vezes coadjuvados
por membros do MFA que acorriam às assembleias para impor respeito.
Os acontecimentos desta semana no ISCTE trouxeram-me de imediato
à memória essas recordações ao mesmo tempo que me confirmam na ideia de que comunistas
e esquerdistas pouco ou nada evoluíram desde então.
Como tentei mostrar, aprendi muito novo que a afirmação do nosso
direito à liberdade de expressão facilmente entra em confronto com a liberdade
de expressão dos outros. Ao contrário do que à primeira vista se poderia
pensar, a liberdade de expressão é um bem rival, na medida em que os
antagonistas entre si disputam o tempo e o espaço de que dispõem para se
manifestarem perante uma dada audiência recorrendo a um determinado medium.
É evidente que Relvas beneficia da vantagem de poder
exprimir-se recorrendo a meios muito mais poderosos do que aqueles que estão ao
alcance do comum cidadão. Vai daí, os anónimos humilhados e ofendidos sentem-se
no direito de silenciar o ministro numa situação particular sob o pretexto de
que ele tem outras oportunidades para falar.
Mas a liberdade de expressão não pode admitir tais entorses.
Relvas não tem apenas um direito genérico e abstracto a exprimir-se, ele tem o
direito a exprimir-se onde e quando entender, especialmente quando foi
expressamente convidado a fazê-lo. De outro modo, um direito genérico poderia
ser sempre negado em condições particulares – estratégia que, de resto, sempre
foi a aplicada nos países comunistas.
Entendo a revolta de quem é diariamente espezinhado da forma
mais cruel por este governo, carecendo de meios para se defender, e entendo
também que é dessa violência objectiva que por fim emerge a violência subjectiva
de grupos mais ou menos organizados. Em última análise, a responsabilidade do
que se está a passar é, pois, de Passos, Relvas e Gaspar, ou seja, da troika
interna.
Mas isso não me fará aplaudir a utilização da violência,
pelo menos enquanto houver formas civilizadas de manifestar por muitos e vários
meios a nossa oposição a este revoltante estado de coisas.
Tudo poderia ser aceitável nas manifestações das últimas
semanas – as manifestações, os discursos inflamados, as canções, mesmo os
insultos, por descabidos que sejam – tudo, menos as intimidações físicas e a
negação do direito à palavra dos adversários. No que toca aos insultos, a única
coisa que me desagrada é que sejam tantas vezes absurdos (“fascistas!” “bandidos!”
“ladrões”) quando tantos bem mais contundentes seriam na ocasião apropriados.
Se os excessos não forem atalhados a tempo, temo bem que a
resistência popular vá por mau caminho.
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