31.12.03

Mas este gajo não tem mesmo cara de pedófilo?



Tirando a da Al-Qaedah, eu não acredito em conspirações.

A malta e os utentes

Quando, há cerca de dois anos, viajei de comboio de Nova Iorque para Washington, notei que a voz que, através dos altifalantes do comboio, se dirigia aos passageiros, tratava-nos por folks (malta). Isto de uma forma natural, sem nenhuma espécie de má-educação, antes com um toque carinhoso notório em tudo o que nos dizia.

Por conseguinte, nos EUA não somos nem consumidores nem utentes: somos folks. Vejo aqui a marca de uma cultura genuinamente democrática, assente numa igualdade fundamental entre todos os cidadãos.

Tanto quanto sei, este problema, que mereceu um comentário do Abrupto e uma resposta de Vital Moreira não está bem resolvido em país nenhum da Europa.

É um facto que os utilizadores de serviços públicos não o são na qualidade de consumidores, mas na de cidadãos. Mas, como não nos sentimos confortáveis a chamar-lhes cidadãos ou camaradas, inventávamos essa coisa artificial do utente. (Digo artificial porque ninguém se considera a si próprio um utente.)

É nestas pequenas coisas que podem ser observadas profundas diferenças entre a Europa e a América. E, neste particular, a vantagem está toda do lado da América.

30.12.03

Eu sei que é para o nosso bem...



Eu sei que é para o nosso bem, mas, ainda assim, desejo a todos um Ano Novo de 2004 sem mais cortes.

29.12.03

O capital não tem pátria, excepto quando é estrangeiro

A venda da maioria do capital da Somague à espanhola Sacyr não configura nenhuma situação de conquista ou expoliação. Pura e simplesmente, a família Vaz Guedes troca capital corpóreo por capital incorpóreo; como em qualquer outra transacção, ambas as partes ficam a ganhar, porque cedem uma coisa a troco de outra que consideram mais valiosa.

Além disso, tanto os trabalhadores da Somague como os restantes cidadãos portugueses só têm a lucrar se, como é de esperar, se criarem condições para a empresa se tornar mais eficiente. Por consequência, de um ponto de vista estritamente económico, não há nada a lamentar.

Acontece que esta análise, em linha com a teoria económica dominante, esquece a questão o poder. Descontando o problema da eficiência, será a mesma coisa ter patrões portugueses ou estrangeiros? Obviamente, não é -- digo-o pela minha experiência pessoal do modo como funcionam as multinacionais.

A única razão pela qual tantas empresas americanas têm a sua sede europeia em Londres é a facilidade de entendimento com os indígenas, e não qualquer consideração de eficiência ou produtividade. Vai daí, as empresas multinacionais compreeendem muito melhor os problemas com que convivem directamente do que aqueles com que se defronta um longínquo gestor em Lisbon, Spain.

Acontece, porém, que a preservação a todo o custo dos centros de decisão nacionais não é uma solução, a menos que se esteja disposto a premiar a incompetência fomentando o proteccionismo.

Que fazer? A Volvo pertence hoje ao grupo Ford mas, apesar disso, ninguém sonha tirar a empresa da Suécia e mudá-la para os EUA. Porquê? Porque os engenheiros e os técnicos suecos detêm certas competências que não são facilmente replicáveis noutras latitudes.

O que demonstra que o essencial não é proteger centros de decisão mas estimular a emergência de centros de competência.

Tolkien meets George Bush



Aparentemente, o Senhor dos Anéis trata da luta entre o Bem e o Mal.

O conteúdo deste Bem e deste Mal é, todavia, mais estético do que ético. Além disso, não se está de um lado ou do outro por escolha, mas porque se nasceu lá. Certas pessoas nascem elvos, outras nascem orcs -- e é tudo.

Os orcs e os trolls não são maus por fazerem coisas más -- eles limitam-se a matar inimigos, tal e qual como os bons -- mas por serem feios e mostruosos, ou seja: diferentes.

A única acusação séria que podemos fazer contra estes maus é carecerem de individualidade, mas também nunca temos ocasião de saber como se relacionam com as suas mulheres, os seus filhos e os seus amigos -- será que os têm? Mas, vendo bem as coisas, isso também não interessa porque eles são apenas inimigos que devem ser abatidos sem piedade.

Pelo contrário, os bons são ecologistas e diferentes. Tão diferentes, aliás, que as diferentes castas não se misturam umas com as outras, e só algumas são predestinadas para mandar.

Diz-se que Tolkien era um católico tradicionalista. Percebo onde está o tradicionalismo, porque os temas que lhe são caros repetem o conhecido cânone anti-moderno que pode ser encontrado em Wagner, Spengler, Heidegger, Evola e outros proto-fascistas do género.

Mas o catolicismo, esse, escapa-me completamente. O que eu vejo aqui é um neo-paganismo de pacotilha, na sua essência oposto a todos os princípios essenciais do cristinianismo, que, para meu espanto, os católicos não cuidam de combater.

Tolkien busca inspiração e legitimação numa ordem natural-feudal distinta da linhagem humanista greco-romana e oposta à tradição iluminista fundadora do mundo moderno. À beira deste primarismo ideológico, o paganismo New Age da Guerra das Estrelas parece mais profundo e aceitável.

Mas este filme reflecte bem a ideologia dominante da nossa época e permite-nos entender melhor o pensamento político de George Bush e dos neo-conservadores de todo o mundo. É o perfeito filme de época para o pós 11 de Setembro.

Wunderkammer



The cabinet of curiosities, or Wunderkammer, was designed to facilitate an encyclopaedic enterprise, the aim of which was the collection and preservation of the whole of knowledge. The earliest encyclopaedic practices were set within a classical framework whereby new observations and practical experiments were seen as the continuation of work initiated by the great ancient thinkers, such as Aristotle and Pliny the Elder.

26.12.03

Nunca como neste ano houve tanta gente a desejar-me um «Santo Natal». Recrudescimento do sentimento religioso? Nalguns casos, talvez. Na maioria, não estou a imaginar.

Talvez queiram apenas dizer que, já que este Natal, pelas circunstâncias bem conhecidas, não pode ser feliz, ao menos que seja santo. E assim regressa e se insinua o estereotipo segundo o qual a santidade casa bem com a pobreza.

Cidades desertas, blogues desertos. Estranhos dias estes, com as pessoas ou as famílias dobradas sobre si mesmas.

23.12.03

Francis Bacon



Lembro-me como se fosse hoje. A primeira vez que vi uma pintura de Francis Bacon foi -- sim, é verdade! -- no Paris Match, há coisa de 40 anos, e ía no comboio Lisboa-Porto.

Retrospectiva



A reedição que o Público está a fazer das aventuras do Tintim fez-me compreender que a minha geração não é filha de Marx e da Coca-Cola (ambos proibidos em Portugal até ao 25 de Abril) mas do Cavaleiro Andante e da laranjada do Buçaco.

Roy Lichtenstein



Lichtenstein começou por propor-nos que olhássemos a arte comercial dos cartoons como se fosse pintura abstracta.

Em seguida, invertendo o processo, sugeriu-nos que observássemos a pintura abstracta através das lentes da arte comercial.

Suprematismo



Como pode alguém ter acreditado que «isto» era compatível com o comunismo soviético.

Mas Malevitch acreditou, e a esse equívoco devemos nós esta visão singular que desde a Perestrioka começou a reemergir das caves de coleccionadores particulares que arriscaram as suas vidas para a preservar.

22.12.03

A Era dos Autores

Pasmado com a velocidade a que eram editados novos livros no século XVII, Samuel Johnson considerou que a humanidade tinha entrado na Era dos Autores.

Que diria ele desta loucura dos blogues? Provavelmente insistiria em que esta proliferação de centros de proliferação de textos nos impõe a todos uma ética da concisão.

O respeito pelos outros e por nós mesmos impõe-nos que digamos depressa e bem o que temos para dizer.

Há mais gente na bicha.

A paragem

Em 1903, o homem conseguiu pela primeira vez fazer voar uma máquina mais pesada do que o ar. Se a primazia pertenceu a Santos Dumont ou aos irmãos Wright é coisa de somenos.

Em 1969, Neil Armstrong pisou o solo da lua.

Desde o momento em que o homem conseguiu erguer-se uns metros acima do solo e o instante em que pisou o solo de outro planeta decorreram apenas 66 anos.

E que aconteceu desde então? O que é que parou? O que é que foi aqui interrompido e porquê?

Em defesa do egotismo

Não posso gastar demasiado tempo com as ideias dos outros se quiser dedicar suficiente atenção às minhas.

Preocupação

O nosso ensino, ainda e sempre autoritário e de raiz livresca, consegue quando muito produzir gente obediente, executantes competentes das ideias alheias, jamais notáveis criadores ou conceptores.

Curiosamente, vejo pouca gente preocupada com isto e muita obcecada com o reforço da autoridade na sala de aula.

Por outro lado...

Por outro lado, não preciso de ler aquilo que consigo perfeitamente imaginar.

Mea culpa

Reconhecço que é muito fácil criticar-se as ideias de alguém quando se desconhece o que efectivamente disse ou escreveu.

Observação

Comecei a reparar que as pessoas que passam o tempo a exigir coisas mais práticas são usualmente destituídas de sentido prático.

Eu concordo com Boltzmann: «Não há nada mais prático do que uma boa teoria».

Sublinho: uma boa teoria.

Derrotado por KO

Em que estado terá ficado o Marcello depois de ler o Economist deste fim de semana?

Sim, como reagirá ele, o tal que lê um livro por dia, ao saber que há nos EUA uma autora de livros infantis que escreve um livro num dia?

Ponham-se a pau

O sempre imprevisível Cintra Torres sustenta hoje no Público que a exibição de Saddam na tv não violou a convenção de Genebra porque, tendo a guerra acabado (says who?), ele não pode verdadeiramente ser considerado um prisioneiro de guerra.

Admitindo que seja verdade, achará ele que os direitos humanos não se aplicam aos prisioneiros de direito comum? Pelos vistos, acha. Não vale a pena um homem ler tantos livros, para depois aderir tão inesperadamente à ética tablóide.

Apesar de tudo, eu concordo com a conclusão do autor: «As imagens não estão lá, mas sim nos nossos olhos». E não me agrada o que os meus olhos vêem.

Albergue dos doentinhos

Demónios acamados por obra e graça de um mísero vírus? Valha-nos Deus, que o Diabo também já não é o que era!

18.12.03

Os nossos e os outros

É fácil defender os direitos do homem quando são os dos nossos que são atacados.

O caso muda completamente de figura quando estão em causa os dos outros. Por aqui se vê a pinta destes «democratas».

O essencial sobre isto foi escrito aqui.

Ser ou não ser não é a questão

A estupidez de George Bush pode não ser uma questão política essencial. Também há muita gente estúpida à esquerda, como por exemplo aquele tipo de cujo nome agora de momento não me consigo lembrar...

Mas o facto de gente inteligente e bem informada se esforçar a todo o custo por negar o óbvio, isso sim, não pode deixar de ter um significado que não podemos ignorar.

A saber, o de que a cegueira ideológica se apoderou de uma parte da direita conservadora mundial no decurso dos últimos anos, tornando-a disponível para transigir com gente tão pouco recomendável como Donald Rumsfeld, Silvio Berlusconi ou Paulo Portas.

E isto, meus amigos, é uma novidade.

17.12.03

A guerra contra a concorrência segundo Bush

Escreve Alan Murray no Wall Street Journal:

"Saddam's capture provides Mr. Bush an opportunity to try again. At his news conference Monday, the president sounded more subdued but continued to insist that rebuilding contracts shouldn't go to French or German contractors. 'The idea of spending taxpayers' money on contracts to firms that didn't participate in the initial thrust -- that's not something I'm going to do,' he said.... "

Empresas que não participaram no ataque inicial? Esta é nova! provavelmente isto quer dizer que a Halliburton do Vice-Presidente Dick Cheyney participou no ataque inicial.

(Devo esta referência ao site de Brad de Long -- link aqui ao lado)

O clube dos autores mortos

As minhas inclinações literárias são todas para os clássicos. Se há tanta coisa magnífica escrita há séculos de que ainda não disfrutei, porque é que hei-de perder tempo a ler aquela obra incontornável editada hoje de que ninguém vai lembrar-se amanhã?

Apesar de tudo, para não perder totalmente o contacto com os outros peixinhos do meu aquário temporal, de vez em quando atiro-me a um autor contemporâneo.

Lamento informar, porém, que o resultado, mesmo quando agradável para mim, revela-se desastroso para o próprio, visto que pouco depois morre.

O primeiro caso ocorreu com o Bruce Chatwin, que só sobreviveu uns meses à minha leitura fatal. Seguiu-se o Robert Carver, acompanhado de perto pelo Italo Calvino e, depois, pelo Primo Levi. No ano passado comecei a ler o prodigoso W. G. Sebald; este ano, ei-lo que morre num acidente de automóvel.

Que estranha maldição será esta? Serei eu uma espécie de Rei Midas ao contrário que transforma em cadáver tudo aquilo em que toca?

Estava eu a contar isto ao Miguel, quando ele alvitrou: «Ó pá, porque é que tu não começas a ler o Saramago?»

Acudiu o Luis: «E não queres experimentar também o Lobo Antunes?»

Alguém aí na plateia tem mais alguma encomenda a fazer?

Mas atenção: não julguem que vou trabalhar à borla. Acho que acabo de descobrir uma forma de me tornar num assassino a soldo sem correr o risco de ser descoberto!

16.12.03

Ainda dizem que não há progresso...

A reboque do Bispo do Porto, e talvez espantado pela tranquilidade das reacções públicas às afirmações por ele proferidas, o PSD lá abriu finalmente a portinha para a despenalização do aborto.

(Ou será descriminalização? Abre-se aqui mais uma daquelas estéreis discussões que excitam os juristas e adormecem os restantes cidadãos).

E era preciso que tanta gente tivesse continuado a sofrer durante mais uma dúzia de anos para, finalmente, se resignarem a abolir contrafeitos e arrastando os pés mais esta selvajaria que exprime melhor do que qualquer coisa a nossa triste identidade nacional?

A pouco e pouco, lá vamos progredindo.

15.12.03

As três mortes de Saddam Hussein

Politicamente, o Saddam já estava morto antes de ser ontem preso nas circunstâncias humilhantes que todos pudémos ver pelas tropas norte-americanas. Pois não vêem que o homem foi abandonado pelos compinchas?

Desde que o regime encabeçado por ele caiu, outros facínoras tomaram o controlo e comandam hoje a chamada «resistência iraquiana». Acredito que isso vai tornar-se cada vez mais claro nas próximas semanas.

É natural que as pessoas fiquem contentes com a prisão de Saddam Hussein porque as suas atenções continuam concentradas na guerra anterior, não na actual. A mim parece-me que o natural regozijo pela captura não deve fazer-nos esquecer que, no essencial, tudo continua rigorosamente na mesma.

Eu pensava que era só a esquerda que permanecia fixada nas condições políticas anteriores à invasão, mas constato agora que o mesmo se passa com a direita, sinal de que ainda ninguém parece ter-se apercebido do abismo que se abriu naquela zona do globo.

Em particular, não há ainda uma consciência clara de que o Iraque se tornou de facto, por obra da intervenção norte-americana, num verdadeiro santuário do terrorismo.

Saddam Hussein já morreu duas vezes este ano. E ainda vai morrer uma terceira, se Deus quiser-mas isso é politicamente quase irrelevante.

12.12.03

Sim, Turing

Sim, Porfírio. Concordo com essa maneira de pôr a questão.

Encalhado no tempo


Manuscrito de Proust

Genet dizia que o local mais indicado para ler Proust é a prisão ou o hospital.

Como não fui constituido arguido em nenhum processo judicial nem consegui aquela baixa psiquiátrica a que indiscutivelmente tinha direito, tive mesmo que rebaixar-me a conviver com a Recherche apenas nos meus tempos livres.

Não sou, por conseguinte, um leitor sério, apenas um pobre amador que se esforça por ocultar a sua incompetência essencial para desempenhar a contento esta tarefa.

Nessas condições, arrastei-me penosamente durante os últimos quatro anos ao longo das quase cinco mil páginas do enorme tijolo de papel. Sim, porque ler Proust é, antes de mais, uma proeza atlética que põe à prova a nossa capacidade de resistência intelectual, mas também física e anímica. De vez em quando contraem-se lesões de esforço que nos impedem de prosseguir a caminhada por uns tempos.

Andando, andando, há um mês atrás notei que finalmente me encontrava apenas a 25 páginas de concluir o livro.

Foi então que sucedeu uma coisa estranhíssima: seja por isto ou por aquilo, nunca mais consegui avançar uma página.

Mergulhei na biografia do Proust escrita pelo Edmund White (uma maravilha de concisão e precisão), reli o How Proust Can Change Your Life do Alain de Botton, voltei a passar os olhos pela Pomba Ensanguentada do Pietro Citati... mas quanto voltar a pegar na Recherche, isso é que nada.

O que se passa? Alguém é capaz de me explicar?

11.12.03

Juventude desenganada

Na sua resposta ao meu post («Não está certo abusar da ingenuidade da juventude») Semiramis prova que, além de conhecimentos, também tem bom senso.

Surpreendemente, ou talvez não, concordo com quase tudo o que ela diz.

Também eu conclui há muito tempo que a Organização Industrial é uma das poucas áreas da teoria económica em que se faz verdadeira investigação científica. O problema é que, quanto mais se estuda essa sub-disciplina, mais se conclui que o grosso da Microeconomia é um engano.

As simplificações da Microeconomia não são um primeiro passo no caminho da verdade; são uma auto-estrada sem portagem para o erro. Vai daí, a obsessão de fundar a Macro na Microeconomia assegura que a primeira assenta nas estacas podres da segunda.

(Diga-se de passagem que, se a física admitisse essas absurdas exigências metodológicas, não conseguiria viver com as contradições entre a mecânica quântica e a mecânica clássica.)

O problema é que, se Semiramis admitir isto, não pode continuar a recorrer à teoria económica para pronunciar sentenças definitivas sobre toda a espécie de problemas da nossa organização social. O equilíbrio económico geral é uma ficção. A eficiência dos mercados é, em geral, uma miragem. O comportamento dos consumidores é certamente racional, mas não no sentido usualmente atribuido ao termo. A livre concorrência nem sempre conduz a bons resultados.

Admitir isto não obriga a concluir o contrário, ou seja, que o mercado é condenável, que o progresso se obtém condicionando a concorrência, que o controlo da actividade económica deve ser entregue ao Estado, etc., etc. Mas força-nos certamente a analisar cada situação concreta com muito mais cuidado.

Não duvido que haja muita coisa útil na teoria económica. Mas acredito que o seu mainstream é uma simples doutrina ideológica e politicamente motivada que não merece muita confiança.

9.12.03

Mystic River



Em Mystic River, um acontecimento inesperado e cruel despoleta uma sequência imparável de eventos que arrasta os seus protagonistas como a torrente de um rio caudaloso.

Naquele dia, todos os três amigos entraram naquele carro. E, com eles, não o esqueçamos, nós também. Parte da magia de Mystic River consiste em fazer-nos sentir desde o primeiro momento que não há salvação para aqueles rapazes porque algo de profundo morreu ali.

Neste filme tudo é inevitável como uma tragédia grega, como uma vida ou como uma história bem contada. O final está inteiramente contido no princípio, como se de uma demonstração lógica se tratasse. A assinatura dos três amigos no cimento permanece lá gravada para que nenhum possa alguma vez esquecer como tudo começou.

Jimmy, Sean a Dave fazem todos o seu melhor, cada um à sua maneira, mas isso de nada serve. Não há como inverter a marcha dos acontecimentos. Jimmy quer ser um bom pai, mas a filha estava a preparar a fuga quando foi morta. Dave quer proteger as vítimas, mas só consegue criar outras. Sean quer amar, mas só provoca sofrimento.

Clint Eastwood criou um filme perfeito: pela unidade e eloquência do enredo, pelo poderoso sentimento de verdade que dele se desprende, pela riqueza dos personagens (mulheres incluidas, especialmente Celeste), pelo modo como cada um deles ocupa alternadamente o centro da acção, pelos pequenos detalhes decisivos que dão espessura ao filme, pelo desempenho de todos os actores principais e secundários, pela forma discreta mas eficaz como a metáfora do rio é utilizada.

O princípio da história mostra-nos como o mal destrói a inocência. Como esta tese é demasiado banal, ficamos a saber no fim que a inocência também pode ser a inesperada causa do mal.

Surpreendemente, e bem vistas as coisas, o final é feliz, na medida em que a felicidade é possível para os sobreviventes, todos eles a um tempo crentes e descrentes num novo começo.

Este não é um filme desesperado, apenas humano. Às vezes, como recorda Jimmy a dado momento, um pequeno acontecimento pode mudar a história. Ou não.

Como criar confiança

Que haveremos nós então de fazer para promover a confiança entre os portugueses? Confrontados com uma sondagem recente que nos coloca entre os cidadãos mais desconfiados da Europa, a nossa tendência, como povo pouco prático, é colocar o problema no plano da moral colectiva.

O sermão, como se sabe, é o nosso grande instrumento de reforma social. Onde os outros fazem planos, nós fazemos sermões. Mas não me parece que se vá longe por aí.

Por muito estranho que pareça, este problema da criação de confiança já está suficientemente bem estudado para que se saiba como abordá-lo racionalmente.

O Dilema do Prisioneiro mostra que, em muitas situações, nós temos interesse em adoptar comportamentos anti-sociais. Todavia, quando é jogado repetidamente, os jogadores podem ser prejudicados se sistematicamente tentarem enganar os seus parceiros. É que, a longo prazo, a criação de uma reputação (positiva ou negativa) determina o modo como os outros nos tratam.

Simplificando muito, a reputação, na qual assenta a confiança, emerge mais facilmente quando as interacções entre os indivíduos são intensas e repetidas. Quando o contexto social favorece a informalidade e os encontros ocasionais e esporádicos é mais difícil criar confiança. Quando as pessoas colaboram estreitamente em comunidades onde toda a gente se conhece, o caso muda de figura.

A estratégia geral deduz-se daqui. Alguém quer começar a fazer o plano?


5.12.03

Não está certo abusar da ingenuidade da juventude

Milton Friedman

Semiramis é um blogue que se debruça com invulgar seriedade sobre os temas que aborda, situados principalmente, mas não só, na área económica. O cuidado que põe na argumentação não pode deixar de seduzir um racionalista em part-time como eu.

Surpreende-me, porém, a credulidade da autora em relação à ciência que abraçou. Embora eu partilhe com ela a mesma formação de base, habituei-me a desconfiar de uma parte substancial da teoria económica pela simples razão de que está tão longe de qualquer método reconhecidamente científico como a escolástica medieval.

Pegue-se, por exemplo, na Macroeconomia do Barro ou na Microeconomia Intermédia do Varian, e é impossível a alguém não totalmente toldado pelos preconceitos da profissão deixar de ficar perplexo. A matéria encontra-se organizada de uma forma rigorosamente lógica, com as diversas teorias a serem deduzidas de um conjunto de axiomas de base, um método certamente recomendável para a geometria, mas não para uma ciência que se quer experimental.

Uma boa parte desses axiomas são reconhecida e demonstradamente falsos, como resulta das investigações de economistas laureados como Simon, Arrow e outros. Mas esses factos são ocultados aos jovens estudantes, e toca a andar. Mais tarde, quando também eles tiverem cumprido todos os ritos de iniciação e lhes for muito difícil voltar atrás, serão confrontados, tarde demais, com a terrível verdade.

Estes e outros manuais raramente se incomodam a falar da realidade (mesmo sob a forma de factos estilizados, que é o nome que os economistas dão às teorias observacionais). Algumas historietas, às vezes meras anedotas, bastam para criar a ilusão de que a teoria lida adequadamente com os factos económicos conhecidos.

Em geral, nada ou quase nada se diz como é que as teorias expostas se sairam quando testadas contra os factos, pela simples razão de que muitas delas têm uma sustentação empírica nula ou altamente duvidosa.

Resumidamente, a ciência económica (e particularmente o seu ensino) tem vindo a evoluir por caminhos muito duvidosos. Basta comparar a riqueza da análise de economistas como Keynez com a pobreza franciscana das argumentações que hoje nos são servidas para se perceber o que eu quero dizer.

O chapéu de três bicos



Ver a música de Falla tocada ao vivo na Gulbenkian ajudou-me a perceber como ele revolucionou a utilização da orquestra sinfónica. Um caso em que os sentidos da vista e do ouvido se combinaram para produzir um resultado superior.

4.12.03

Dilema

Parece que agora só são aceitáveis as ideias compatíveis com aquilo que os economistas consideram bom para o aumento da competitividade do país.

Então eu pergunto: deveria o país mudar de religião (de preferência consagrando-a na Constituição) se se provasse ser verdadeira a tese de Max Weber sobre as vantagens do protestantismo em relação ao catolicismo nesse particular?

O anti-americanismo existe

Foi Heidegger quem escreveu que, «do ponto de vista metafísico, nazismo, comunismo e americanismo são equivalentes».

O surpreendente é que, por via do radicalismo francês dos anos 60, as opiniões do nazi Heidegger tenham sido tão bem acolhidas por uma parte da esquerda.

Sendo os EUA a sociedade mais genuinamente demótica à face da terra, o anti-americanismo enquanto posição de princípio só faz sentido numa perspectiva de direita.

Puro engano

Quando comecei este blogue, o meu maior temor era que me faltasse o assunto.

Nada disso: neste momento, tenho 87 ideias para posts à espera de oportunidade para serem utilizadas.

Aleluia




Depois de um ano cinematograficamente fraquinho, eis que aparece um filme perfeito: Mystic River.

Voltarei a ele.

Pobre outra vez

Há dias encontrei, nas minhas deambulações pela net, um curioso site americano chamado BlogShare que mantém uma espécie de sistema de cotações de acções (fictícicias, claro está) de blogues.

Mais surpreendente ainda, descobri que alguns maduros se distraiam a simular compras e vendas do Blogoexisto, cuja capitalização bolsista ascendia nessa data ao fantástic valor de 330 dólares.

Estava eu já a pensar lançar uma OPV que haveria de assegurar a minha reforma antecipada quando eis que, inesperadamente, o BlogShare anunciou o seu encerramento.

Adeus, ó sonhos de fortuna! Ainda não é desta que me livro da escravidão assalariada!