Num raro assomo de profundidade filosófica, a Srª Thatcher pronunciou certa vez a frase em epígrafe.
Algumas pessoas (aqui, por exemplo), usualmente dadas ao individualismo metodológico, acreditam na existência das entidades individuais, mas negam a das colectivas. Assim, fará sentido falar-se de "eleitores", mas não de "eleitorado", o qual não passaria de uma colecção de eleitores individuais.
Sem entrar em detalhes, convém assinalar que, de Wittgenstein para cá, a filosofia analítica se encarregou de questionar que espécie de realidade pode de facto ser atribuída a uma coisa aparentemente tão óbvia como um eleitor individual, e isso porque também ele é constituído de diversas partes integrantes relevantes para a sua unidade.
Uma versão mais sofisticada desta discussão consiste em fazer notar que, mesmo que se reconheça a existência real de certas entidades colectivas, não fará sentido falar-se de escolhas do eleitorado no mesmo sentido em que se fala de escolhas de um eleitor. E este argumento parece muito convincente até ao momento em que somos confrontados com dados empíricos sobre o comportamento dos indivíduos que só podem ser explicados pelo facto de que, na verdade, os indivíduos não fazem escolhas nenhumas. Por outras palavras, é tão questionável a ideia de que os eleitores fazem escolhas como aqueloutra de que o eleitorado opta por isto ou por aquilo.
Em que ficamos então?
Na minha qualidade de adepto do pragmatismo americano, comungo do relativismo ontológico de W. V. Quine. Por outras palavras, estou disposto a aceitar provisoriamente a existência de quaisquer entidades que pareçam ser relevantes para explicar uma dada situação, sejam elas quarks, demónios ou eleitorados. Nessas condições, posso mesmo reconhecer utilidade - e, logo, realidade - a uma entidade em certas circunstâncias, mas não noutras.
Dito isto, o problema (real) de se atribuírem vontades ou intenções a um eleitorado é outro. Todos sabemos que, através do voto, os cidadãos não podem pronunciar-se especificamente sobre este ou aquele ponto particular do programa de um partido. Ao votarem nele, limitam-se a dar-lhe uma caução global em resultado de complexos mecanismos de avaliação cuja explicação nos escapa. Por conseguinte, do facto de alguém ter votado no SPD nas últimas eleições alemãs não se segue necessariamente que seja favorável à Agenda 2010, por exemplo.
Para complicar ainda mais as coisas, mesmo quando, como é o caso em referendos, os eleitores se pronunciam sobre uma única questão, sabemos que o resultado da consulta depende das regras específicas da votação, sendo que não existe uma regra que possa ser indiscutivelmente considerada mais justa do que as alternativas. Até já houve um sujeito (Ken Arrow) que ganhou um prémio Nobel da Economia por demonstrar isto.
Por conseguinte, quando dizemos que o eleitorado se pronunciou neste ou naquele sentido, estamos apenas a formular uma opinião (ou uma hipótese), não a enunciar um facto objectivo e inquestionável. Com alguma sorte, pode ser que a evolução posterior dos acontecimentos ajude a esclarecer se essa opinião estava ou não correcta. Mas nem isso é certo.
Desde que isto esteja claro, não será muito grave dizer-se que o eleitorado "recusou", "rejeitou", "condenou", "aprovou", "escolheu", "receou", "desejou","sentiu", "desconfiou de" ou "enviou uma mensagem a ".
Mas é verdade que, demasiadas vezes, se usa e abusa de expressões deste tipo para manipular a percepção pública do que aconteceu ou está a acontecer. E, nesse sentido, partilho em absoluto da preocupação do Pedro Magalhães.
22.9.05
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