31.12.05

O judeu errante



Tal como Wittgenstein e Heidegger, também Dylan teve a sua "viragem". É esse, se não estou em erro, o tema central do filme de Scorsese.

A dada altura de No Direction Home, Liam Clancy fala-nos sobre a extraordinária metamorfose sofrida por Dylan após a sua primeira visita a Nova Iorque. Nessa época, ele absorvia com sofreguidão todos os géneros musicais populares, impregnava-se deles, reelaborava-os e, nesse processo, criava uma síntese inovadora e pessoalíssima, ao mesmo tempo estranha e familiar.

Mas Dylan não conseguia ficar parado. Cada patamar que atingia era um mero degrau que deveria conduzi-lo ao seguinte. Segundo o próprio, não o fazia de forma consciente: limitava-se a seguir o seu instinto, sem sequer se sentir seguro de que aquilo que fazia era bom.

Essa constante transformação suscitou primeiro a perplexidade e depois, como não poderia deixar de ser, a desconfiança dos seus amigos e associados.

Pete Seeger viu nele o continuador da linhagem do folk esquerdista inspirado em Woody Guthrie. Essa esperança, brevemente alimentada pelo apoio de Dylan ao movimento dos direitos cívicos, cedo se esfumou. A sua adesão era puramente institiva, não racional. O cantor limitava-se a absorver o espírito do tempo e a encontrar as palavras certas para exprimi-lo.

Mas o espírito do tempo começara a já a mudar. Num ano, Dylan trocou os jeans e as camisas aos quadrados pelos blusões de cabedal, as tee-shirts e os óculos escuros, do mesmo modo que trocou os instrumentos acústicos pelos eléctricos. Ele entendeu rapidamente que, depois dos Stones e dos Beatles, a música popular nunca mais voltaria a ser a mesma.

A reacção de desapontamento e repúdio de uma boa parte dos seus anteriores fãs à viragem é excelentemente documentada no filme pelas monumentais pateadas durante a tournée inglesa e, principalmente, no festival de Newport de 66.

Testemunhamos as reacções em primeira mão do próprio Dylan, por vezes manifestamente pedrado. Apesar da segurança que procurava exibir, ele estava obviamente confuso. Para apaziguar o público, dividiu então os concertos entre uma primeira fase acústica e uma segunda eléctrica, o que provocava ainda mais descontentamento. O oportuno colapso decorrente do tão célebre quando misterioso acidente de moto pôs um ponto final nessa fase.

O retrato que Scorsese traça de Dylan é o do típico judeu errante: sem lar, sem destino, sem família, talvez mesmo sem amigos duradouros. No imaginário popular - e também no anti-semita - o judeu não reconhece nenhuma pátria e nenhuma cultura como suas. Ele transforma-se continuamente para se adaptar às circunstâncias, desenvolvendo uma espécie de cinismo que mais não é, porventura, do que uma estratégia de sobrevivência. Ele é o movimento e a instabilidade. Por instinto, não é fiel a situações, a grupos e a formas. Ele é o solitário que vagueia sem sentido.

Por mim, a viragem de Dylan não me incomodou nada. Bem pelo contrário, preferi claramente a segunda fase à primeira. Só tive pena que, depois do acidente de moto, não tivesse havido uma terceira. Até nisso, Dylan foi um símbolo da sua geração - uma geração que, vá-se lá saber porquê, se cansou demasiado depressa.

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