Helena Matos assina no Público de ontem (ando com as leituras atrasadas) um artigo fascinante. Não tanto pelo conteúdo como pela forma, que revela de uma forma exemplar o habitual template das suas intervenções públicas.
Ora vejam:
1. A inspiração da autora provém com frequência de um crime, que tanto pode ser um assassinato, uma violação ou uma simples agressão. Esta semana a escolha recaiu sobre uma mão cheia de acontecimentos registados em França no passado recente: o ataque a um autocarro em Marselha, o lançamento de fogo a caixotes do lixo e violências diversas sobre escolas e automóveis.
2. As vítimas são sempre pessoas vulgares, de preferência pobres e pertencentes a minorias étnicas. Neste caso trata-se de Mama Galledou, cidadã francesa nascida no Senegal, cujo corpo sofreu extensas queimaduras, e de Jean-Charles Le Chenadec, assassinado por um bando de delinquentes quando tentava salvar o seu automóvel.
3. Helena indigna-se por não se ter falado suficientemente dos dramas dessas pessoas, e em particular por não ter havido manifestações para denunciar tais violências.
4. Helena indigna-se por as pessoas de esquerda não aceitarem que os responsáveis pelos actos narrados são criminosos que escolhem como seus alvos os mais pobres e os mais frágeis.
5. Helena indigna-se por as pessoas de esquerda em geral, e Rui Tavares em particular, invocarem o racismo latente na sociedade francesa para explicarem os surtos de violência nos seus subúrbios.
Chegados a este ponto, constatamos que Helena tem um de dois problemas: ou não conhece ninguém de esquerda que possa explicar-lhe o que a esquerda de facto pensa; ou tem dificuldade em acompanhar raciocínios um bocadinho mais elaborados do que aqueles que podemos encontrar no 24 Horas.
Manifestamente, Helena não entende que um acto não deixa de ser criminoso pelo facto de poder ser explicado por causas sociais. Tal como não entende que não é a classificação dos actos mencionados como criminosos que distingue a esquerda da direita, mas o facto de a direita se satisfazer com isso e a esquerda não.
A direita recusa-se a procurar compreender o que pode ter causado um tal surto de violência urbana. Para ela, trata-se de um mero caso de polícia. Quanto à esquerda, considera que a actuação policial só tem efeitos no imediato e que, se não forem removidas as causas, elas voltarão a produzir efeitos similares mais cedo ou mais tarde.
A direita é míope, e pelos vistos orgulha-se disso. Recusa-se a contemplar soluções de fundo para os motins porque deseja que tudo continue na mesma. A esquerda procura perceber o que se passa para poder ir à raiz do problema. E também se orgulha disso.
Virando agora as nossa atenções para a estrutura do argumento apresentado, podemos talvez resumi-lo do seguinte modo:
1. Os casos de polícia respigados do 24 Horas ou do Jornal do Crime provam que a comentadora se encontra sintonizada com o sentimento popular.
2. Ao contrário da esquerda, a direita está atenta aos sofrimentos dos pobres e oprimidos.
3. Embora a esquerda se arvore em defensora da gente remediada e dos imigrantes, a verdade é que os despreza.
4. Em conclusão, é a direita que encarna o ideal de justiça correctamente entendido.
Note-se que, para que o esquema funcione, basta atribuir à esquerda a opinião que mais convém à conclusão que Helena nos quer propor.
Uma ou duas vezes - vá lá, meia dúzia de vezes - isto pode fazer algum efeito. Repetido semana após semana, põe a nu a pobreza do raciocínio. Estou convencido de que seria possível construir um programa de computador capaz de produzir dezenas de argumentos deste género.
15.5.07
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