19.2.08

Como se atrevem?



O Metro de Londres impediu a afixação nas suas instalações de um cartaz anunciando uma exposição na Royal Academy of Arts. Motivo: a figuração de uma mulher nua susceptível de excitar a líbido dos transeuntes.

Li a este propósito muito comentário indignado de lusitanas criaturas preocupadas com a inexorável decadência das liberdades públicas na pérfida Albion. Como se atrevem? - exclamam elas de todos os lados.

Acontece que a empresa que gere o Metro de Londres se encontra apetrechada com um código de princípios e de conduta que regula com a necessária minúcia que tipo de publicidade pode ser exibido no espaço à sua guarda, tendo em conta que por ele circula toda a espécie de gente, incluindo obviamente crianças.

Podem estar certos que regulamentos desses existem em todos os países civilizados, embora seja duvidoso que existam entre nós. Tal como podem estar certos que, nesses mesmos países e ao contrário do que por cá sucede, as cadeias de televisão respeitáveis fazem aplicar códigos de ética estritos no que à publicidade respeita.

De modo que, face a qualquer campanha que este ou aquele anunciante se propõe exibir, das duas uma: ou está conforme com os regulamentos - ou não está.

Chama-se a isso auto-regulação, lembram-se? Algumas pessoas nunca se lembram, nem sabem ao certo o que seja, excepto quando temem que o Estado tome a iniciativa de legislar para proteger os cidadãos.

É verdade que, no caso que agora nos ocupa, a mulher desnudada representada no cartaz era a Vénus de Lucas Cranach, uma pintura datada de 1532, podendo ser razoavelmente sustentado que se trata de uma imagem muito distinta daquelas que os regulamentos pretenderiam prevenir.

Pois muito bem: na próxima oportunidade o regulamento poderá ser revisto e aperfeiçoado se assim o entenderem os responsáveis do Underground londrino. Para já, porém, é este que existe, pelo que não há que dar um jeito, mas apenas que aplicá-lo.

A resolução deste tipo de problemas com recurso a critérios antecipadamente definidos com a maior clareza é algo muito estranho para a mentalidade entre nós prevalecente. É por isso que, quando o Scolari agride um jogador adversário, a discussão sobre a eventual sanção a aplicar se centra em pontos laterais, tais como o desempenho do treinador, a sua empatia com o público ou a vontade dos jogadores.

Nada disso seria possível se a Federação tivesse antecipadamente aprovado um regulamento abstracto definindo a pena a aplicar em casos semelhantes. A maçada seria que, nessas circunstâncias torna-se impossível dar um jeitinho, aplicar a justiça com humanidade e outras balelas do género.

Os países que tomam a sério a importância do comportamento ético praticam a auto-regulação a todos os níveis, nas empresas, nos organismos públicos, nas agremiações recreativas e nos clubes de futebol. Isso escandaliza muito as tais pessoas que exigem a Vénus de Cranach no Metro de Londres já.

Parece-me claro que a corrupção e, em geral, o crime económico em larga escala são apenas a ponta visível do icebergue, cuja massa submersa é constituída pela miríade de comportamentos não-éticos socialmente tolerados que infectam os clubes de futebol, as associações de bombeiros, os canais de televisão, os bancos, e por aí fora.

Fico por aqui, que já é tarde.

PS - Para a história fica esta declaração imbecil de John Whittingale, presidente da Comissão de Cultura e Media do Parlamento britânico: "É impensável que um quadro clássico possa chocar". Ou a educação artística deste homem deixa muito a desejar, ou o pobre sofre de disfunção eréctil.

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