5.11.04

Relativismo moral?

No seu magnífico artigo de hoje no Público, Bénard da Costa cita a dada altura o Livro de Daniel, onde o Senhor Iavé diz a Ezequiel:

«Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé.»

Não sei se Iavé terá mesmo dito isto textualmente a Ezequiel. Mas, tenha ou não dito, estou em crer que, há dois mil anos, estes preceitos seriam aceites sem hesitação por qualquer homem de bem.

A maioria deles ainda hoje farão a unanimidade - dar de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, não oprimir, desviar a mão do mal, etc. - mesmo que a sua aplicação prática deixe muito a desejar. A própria ideia de «não conspurcar a mulher do próximo» parece aceitável, pelo menos se tomarmos à letra a palavra «conspurcar».

Também tendemos a concordar com a exortação para «não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel», embora a aplicação do espírito autêntico do mandamento requeira alguma actualização.

Outros, porém, parecem-nos algo mais estranhos, como essa ideia de «não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza». Se isso significa o que eu penso que significa, acho mais uma questão de gosto do que de moral, seja ela pública ou privada.

Mas não cobrar juros? E, acima de tudo, não comer no alto das montanhas, essa actividade eminentemente inocente, se é que estamos a pensar em comer a mesma coisa? Valha-nos Deus! Essa não lembrava ao Buttiglione!

Os muçulmanos (ou, pelo menos, muitos deles) tendem a aceitar à letra estas regras, resultando daí sarilhos monumentais. Pelo contrário, cristãos e judeus (ou, pelo menos, a grande maioria deles) preocupam-se mais com o espírito do que com a letra da mensagem de Iavé. Aceitam que há um núcleo duro de preceitos éticos comuns a todas as épocas e a todas as culturas, mas também que, fora desse núcleo, há margem para alguma fantasia moral não essencial explicável pelas idiossincrasias do tempo e do lugar.

Já Xenofonte chamava a atenção para o facto de que os deuses Etíopes tinham o nariz achatado e a pele negra, ao passo que os Trácios exibiam olhos verdes e cavalgavam cavalos de fogo. Mas pouco nos afecta que eles pintem os seus deuses com os traços que quiserem, desde que todos ensinem os caminhos da rectidão. Esta tolerância para com os caprichos das divindades aconselha-nos inclusivamente a não dar demasiada importância a embirrações irracionais, como essa de nos proibirem os piqueniques no alto das montanhas, agora que há por todo o lado caixotes para depositar o lixo.

O relativismo moral é insustentável, mas o absolutismo moral é absurdo.

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