24.6.05

Goyescas

«Duvido que a [Arca de Noé] contivesse uma colecção de animais mais heterogénea do que a que saiu de um escaler de cinquenta remadores, que acabava de pôr em terra o velho marquês de Marialva e o seu filho D. José, acompanhados de uma multidão de músicos, poetas, toureiros, lacaios, macacos, anões e crianças de ambos os sexos, fantasiosamente vestidas!

«Todo aquele bando, creio eu, voltava de uma romaria à capela de um santo no outro lado do Tejo. O primeiro que saltou foi um anão corcunda, que fazia uma chiadeira infernal numa gaitinha de um palmo de comprimento; seguiam-se depois dois serviões parasitas aparentemente comandados por um velho de uniforme muito usado, e de aspecto singular e fanfarrão, que me disseram ter militado como brigadeiro numa ilha qualquer. A Barataria que ela fosse, Sancho tê-lo-ia mandado tratar da sua vida, porque, a dar crédito à crónica escandalosa de Lisboa, poucas vezes se tem visto um truão, um parasita e um gatuno mais impudente do que ele!

«No encalço destes caminhavam um empoado e asselvajado monge, tão alto como Sansão, e dois frades capuchinhos, ajoujados não sei com que espécie de provisões. Vinha em seguida um magro e pálido botecário, todo vestido de preto, correspondendo completamente no trajo e no porte à figura que imaginamos do Señor Apuntador, do Gil Blas, e após este vinha um improvisador meio tonto, disparando-nos versos, quando passou por baixo das varandas de onde estávamos vendo desfilar o cortejo.

«Era quase impossível ouvi-lo por causa do confuso tropel de barqueiros e criados com gaiolas de pássaros, lanternas, cabazes de fruta e grinaldas de flores, que vinham alegres e saltando, com grande gáudio de um bando de crianças, as quais, para parecerem mais habitantes do Céu do que a Natureza as fizera, traziam umas asinhas transparentes presas aos seus ombros cor de rosa. Alguns desses anjinhos de teatro eram extremamente formosos, e tinham o cabelo garridamente disposto em anéis.

«O velho marquês gosta deles doidamente; vivem com ele noite e dia, dando-lhe tudo o que a frescura e a inocência pode oferecer a uma organização decadente.»

William Beckford: Viagens a Portugal, 1797.

Sem comentários: