13.6.05

Um sobrevivente

Imaginem que um tipo passa os melhores anos da sua vida no exílio, na clandestinidade ou na prisão, acossado pela polícia e obcecado pela traição.

Imaginem que, dos onze anos seguidos passados na prisão, durante oito permaneceu incomunicável. Que sofreu e viu amigos sofrerem as piores violências e vexames. Que travou uma luta constante contra si mesmo para não ceder nem dar o flanco.

Imaginem que desde muito novo conviveu com o arbítrio policial, que sentiu terror de não ter força para resistir-lhe, que acima de tudo teve medo do próprio medo, de não estar à altura das circunstâncias, de arrastar consigo para o desastre familiares e companheiros.

Imaginem que se treinou a controlar os seus sentimentos, a não criar sólidos afectos, a ser duro e insensível, a evitar revelar as suas fraquezas, a valorizar os outros antes de mais pela sua capacidade de resistirem nas mais brutais situações.

Imaginem que se auto-persuadiu de que, para resistir eficazmente à violência, tudo - absolutamente tudo - se encontrava justificado, inclusive o recurso, se necessário, a uma violência equivalente.

Imaginem que, quando finalmente pôde circular em liberdade pelo seu próprio país, tinha já sessenta anos de idade e que, entretanto, há muito desistira de poder ter aquilo que a esmagadora maioria de nós considera uma boa vida.

Imaginem, finalmente, que, ao contrário de muitos outros que, como Bento Gonçalves, Pavel ou Júlio Fogaça, foram de um modo ou de outro cilindrados pela vida, ele, triunfando sobre si próprio, não cedeu, não desistiu, não traíu, não se desviou um milímetro que fosse do seu rumo até ao dia da sua morte.

Só quem não percebe nada da psicologia humana pode admitir que este homem alguma vez possa ter-se sentido um falhado.

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