Arnoldo Jabor escreveu n'O Globo online de ontem (com os meus agradecimentos ao Gilson):
Não era preciso ser profeta para ver nosso triste presente nos filmes americanos dos anos 90. Em 1996, eu escrevi sobre dois filmes que me arrepiaram a espinha. Um deles era Forrest Gump e o outro, Independence Day, filme-catástrofe-ufanista que todos viram. Foram sucessos internacionais e também dois recados para o mundo de hoje.
Relendo hoje os dois textos, vejo que as condições objetivas para a desconstrução do mundo atual por Bush já estavam sendo cozinhadas no fogão das bruxas. Dava para ouvi-las como em Macbeth, cantando: «Something wicked this way cometh» («Coisas terríveis vêm por aí...»).
Na era Clinton a sabotagem dos republicanos já estava rolando. Não deram um minuto de sossego para o homem. A cada dia inventavam uma nova sacanagem.
Foram acusações imobiliárias em Whitewater, pecados em Little Rock, até que um belo dia caiu do céu a história da Monica Lewinksy dando chance ao promotor Kenneth Starr de liderar a campanha mais implacável que vi na vida, iniciando o golpe de direita que agora se consumou com a reeleição de Bush.
Estranhamente, tudo começou e acabou em sexo da boca de Monica até a questão do aborto e do casamento dos gays. Hoje já dá para ver que as administrações democratas, dos anos 60 até Clinton, foram fogos-fátuos; vemos que os democratas são tucanos passageiros, exceções fortuitas, pois a verdadeira América é
fisicamente republicana.
Mas, no cinema, está e estava inscrito o desejo psicótico desse país. Qual cinema do mundo que celebra permanentemente a violência, o sangue, a porrada e a inclemência? O cinema americano sempre foi um sintoma.
Quando eu vi Forrest Gump, senti (e escrevi) que alguém como Bush viria nos infernizar a vida. Estavam ali os sinais. Primeiro, me espantou o infinito sucesso de Forrest Gump. Foi das maiores bilheterias da História. Por quê? pensei. E escrevi que aquele filme transformava os últimos 30 anos da História americana num trem de banalidades, desmoralizando as lutas românticas que a América travou nos anos 60, 70. Forrest Gump condena os que criticaram o conformismo e o preconceito.
Tudo aquilo que contestou o sonho americano, tentando aperfeiçoá-lo, é ridicularizado para impor uma «sabedoria do idiota», superior a qualquer reflexão culta ou politicamente moderna.
O movimento negro foi transformado num grupo de loucos que espancam mulheres; os hippies, liderados por um Abbie Hoffman imbecil, parecem mendigos-palhaços; as liberdades sexuais conquistadas são viradas em sujas orgias pecaminosas e decadentes; os heróicos veteranos do Vietnã aleijados e abandonados foram retratados como detestáveis e mentirosos, numa prefiguração das calúnias fabricadas este ano contra Kerry pelos ex-soldados comprados por Bush, que, na época, vivia alcoolizado no Texas, fora da guerra pelas graças do pai. No filme, a namorada de Gump, Jenny, é punida por seus excessos, já que ela foi hippie, namorou um negro, contestou a guerra em Washington.
Por isso, morre castigada por um vírus misterioso, uma sugestão da Aids.
Escrevi na época: Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade conformista do futuro. É o idiota que venceu. Bush, em 2004 discursou em Yale para os alunos: Eu sou a prova de que um mau estudante pode ser presidente...!.
Gump foi lançado em 1995. Em 96 um outro filme prefigura (e não só,ele, mas outros como Godzilla, Deep Impact, Armaggedon,
tantos...) a América e o mundo de hoje: Independence Day. Também senti o arrepio do horror e escrevi sobre ele. Gump era o personagem; e Independence Day, o cenário e o contexto. Para quem não viu, Independence Day conta a história de Ets invadindo os Estados Unidos.
Com o fim da Guerra Fria, os americanos ficaram sem inimigos claros. No imaginário de Hollywood, os inimigos passaram a ser os rebeldes e psicopatas anti- sociais que Gump condena ou então, no caso de Independence, os ETs que eram visivelmente uma metáfora de invasores estrangeiros. Seriam quem? Os chicanos, os islâmicos, os excluídos, nós de Governador Valadares? Quem tinha ocupado o lugar dos comunistas?
Em plena propaganda da «globalização liberal», que ainda se considerava multilateral, já estava ali, visível a olho nu, o nacionalismo republicano, o protecionismo e a paranóia unilateral contra o resto do mundo.
E mais: o filme denotava um desejo inconsciente de autodestruição, um desejo de vitimização paranóica, de modo a legitimar revides e vingança.
Escrevo em 1996: «O filme atende aos desejos do Unabomber e dos
terroristas. (muito antes de Osama) No filme a América é destruída com fogo e sangue, espatifada com amor e ódio. No filme vemos um pavoroso delírio de ruína misturado com um patriotismo vingativo. Os marginais e os vagabundos (como os contestadores dos anos 60) vibravam na cena em que os ETs destroem a Casa Branca».
Quando vi Forrest Gump, tive um mal-estar de que algo importante estava mudando, quando vi Independence Day tive a visão esquisita de um futuro torto. Quando vi o Clinton acuado na TV, humilhado por ter comido a Monica, senti que a barra pesava nos Estados Unidos, depois, quando a Suprema Corte legitimou a fraude na Flórida, vi que o godzilla republicano já andava solto. Aí, o 11 de Setembro chegou e disparou tudo. Agora, sinto medo e depressão. A ficção virou realidade? Ou será o contrário?
17.11.04
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