29.9.04
28.9.04
No desaniversário de Isaiah Berlin
O que mais me agrada em Isaiah Berlin é o que de mais convencionalmente judeu há nele, ou seja, aquelas mesmas qualidades que tanto desagradam aos anti-semitas: a incapacidade de se sentir completamente em casa em qualquer lugar ou doutrina particular e, por decorrência, a crença na importância da pluralidade dos valores e a recusa a reduzir a vida intelectual e moral a rígidos esquemas abstractos.
Berlin gostava de dizer que se sentia uma espécie de taxista: incapaz de se decidir por tomar um rumo bem definido enquanto não aparecesse alguém que lhe dissesse: «Leve-me a tal sítio» ou «Siga aquele carro».
As suas tentativas de produzir um pensamento filosófico coerente não me impressionam. Tampouco encontro grande valor na distinção que propôs no seu Essay on Liberty entre liberdade negativa e liberdade positiva. Não recomendo a ninguém que siga em detalhe a intrincada argumentação com que tentou fundamentar a sua tese, porque é tempo perdido.
Ao que dizem, Berlin foi um notável orador, tanto pela sua presença física como pela sua capacidade de apresentar um assunto sob diversos e inesperados ângulos. Muitos dos seus escritos traem uma origem oral, o que, embora lhes confira um tom informal e despretensioso, nem sempre é um mérito. No seu ensaio sobre Maquiavel, por exemplo, as contínuas repetições da ideia essencial segundo a qual o florentino seria um proponente convicto de uma ética pagã em confronto aberto com a convencional ética cristã acabam por se tornar maçadoras para quem o lê.
Tampouco vejo Berlin como um grande historiador de ideias, na medida em que, fixando-se demasiado em determinadas personalidades chave, e atribuindo uma importância excessiva à sua contribuição individual, ele parece incapaz de seguir o fio de uma ideia, desde o seu surgimento até à sua decadência, passando pelas suas diversas fases de desenvolvimento, saltando de cabeça em cabeça e de escola em escola.
Berlin é talvez mais interessante quando revela a importância de pensadores relativamente (e talvez injustamente) desconhecidos como Vico, Hamman ou de Maistre e nos mostra o modo subtil como eles anteciparam formas de pensamento que lograram influenciar o curso da história contemporânea.
Li recentemente que Berlin teria talvez sido um personagem menor se não fossem três ocorrências decisivas na sua vida: o seu envolvimento com a fundação do Estado de Israel; o seu trabalho diplomático tendo em vista persuadir os americanos a entrarem na Guerra ao lado da Grã-Bretanha; e, finalmente, a ligação que estabeleceu com os intelectuais russos após 1945, num momento particularmente negro da repressão estalinista.
Eis, pois, mais um homem infinitamente superior à obra escrita que nos deixou.
27.9.04
A nobre missão de informar
O DN Negócios de hoje anuncia na página 3 que a RTP teve os seus primeiros resultados positivos em mais de dez anos. Uau! Como é que eles conseguiram isso?
No corpo do artigo lemos o seguinte: «A estação estatal obteve um resultado consolidado líquido de 4 milhões no 1º semestre de 2004, depois de ter registado 52 milhões de euros de prejuízos no período homólogo de 2003».
Bom, afinal são só os resultados de um semestre, não de um ano completo. Mas, mesmo assim...
Porém, eis que, logo de seguida, o jornalista admite que afinal o resultado foi beneficiado pela venda do edifício da 5 de Outubro por 18,4 milhões de euros. É uma pena não se poder vender o edifício todos os anos, não é verdade? Seja como for, esta pequena correcção já transforma o alegado lucro de 4 milhões num prejuízo de 14,4 milhões.
Mas há mais, porque o jornalista incluiu também no «lucro» as indemnizações compensatórias pagas pelo Estado no valor de 60,1 milhões de euros. E o que compensam as indemnizações compensatórias? - Pois compensam a RTP, obviamente, pelo prejuízo resultante dos custos inerentes à prestação do seu pretenso serviço público.
Por conseguinte, vamos já num prejuízo real de 74,5 milhões de euros em metade de 2004. Tendo em conta que, antes de estes magos terem tomado posse, o déficite anual da RTP rondava os 100 milhões de euros, confesso que não estou impressionado, tanto mais que, entretanto, a taxa paga pelos consumidores de electricidade passou a reverter inteiramente em favor da RTP.
Em contrapartida, não posso deixar de felicitar os autores da peça, de seus nomes Cátia Almeida e Miguel Gaspar. Eles, sim, deveriam ser imediatamente nomeados para o Conselho de Gestão da RTP pela sua milagrosa capacidade de transformar a água em vinho.
No corpo do artigo lemos o seguinte: «A estação estatal obteve um resultado consolidado líquido de 4 milhões no 1º semestre de 2004, depois de ter registado 52 milhões de euros de prejuízos no período homólogo de 2003».
Bom, afinal são só os resultados de um semestre, não de um ano completo. Mas, mesmo assim...
Porém, eis que, logo de seguida, o jornalista admite que afinal o resultado foi beneficiado pela venda do edifício da 5 de Outubro por 18,4 milhões de euros. É uma pena não se poder vender o edifício todos os anos, não é verdade? Seja como for, esta pequena correcção já transforma o alegado lucro de 4 milhões num prejuízo de 14,4 milhões.
Mas há mais, porque o jornalista incluiu também no «lucro» as indemnizações compensatórias pagas pelo Estado no valor de 60,1 milhões de euros. E o que compensam as indemnizações compensatórias? - Pois compensam a RTP, obviamente, pelo prejuízo resultante dos custos inerentes à prestação do seu pretenso serviço público.
Por conseguinte, vamos já num prejuízo real de 74,5 milhões de euros em metade de 2004. Tendo em conta que, antes de estes magos terem tomado posse, o déficite anual da RTP rondava os 100 milhões de euros, confesso que não estou impressionado, tanto mais que, entretanto, a taxa paga pelos consumidores de electricidade passou a reverter inteiramente em favor da RTP.
Em contrapartida, não posso deixar de felicitar os autores da peça, de seus nomes Cátia Almeida e Miguel Gaspar. Eles, sim, deveriam ser imediatamente nomeados para o Conselho de Gestão da RTP pela sua milagrosa capacidade de transformar a água em vinho.
24.9.04
Por falar em falácias
John Kay esta semana no Financial Times: «The notion that there is some abstract entity called the economy, which is distinct from the welfare of the people who live in it, is a crude materialistic fallacy. Gross domestic product is not an end in itself and the government budget is not a profit and loss account.»
O resto do artigo pode ser lido aqui.
O resto do artigo pode ser lido aqui.
Pânico em Seattle
«Estamos francamente preocupados com as notícias que nos chegam de Lisboa», declarou hoje Bill Gates em Seattle, sede da multinacional americana de software Microsoft.
«Se um grupo de algumas centenas de pessoas conseguir de facto fazer em 10 dias o que um computador não logrou em seis meses, escuso de sublinhar a gravidade da situação para nós. Este sistema de informática manual ameaça concorrer seriamente com os nossos produtos. Pura e simplesmente, não estamos em condições de concorrer contra um computador humano.»
Quando alguns jornalistas lhe perguntaram se esta situação não revelaria que o sucesso passado da empresa a teria tornado complacente e desatenta às manobras da concorrência, perdendo por isso a liderança tecnológica para o Estado português, Gates reagiu assim: «Faço notar que, dados o baixo nível dos salários portugueses e o elevado déficite público do país, há fortes indícios de que estejamos perante um caso de dumping. Vamos pedir ao Departamento Federal de Comércio que investigue o caso e, se essa suspeita se confirmar, apresente um protesto formal perante o governo português.»
Confrontado com estas declarações, o primeiro-ministro português Santana Lopes reagiu com evidente desagrado. «A reacção deselegante do senhor Bill Gates só mostra que o atingimos num ponto sensível. O Governo está a conseguir mobilizar os portugueses para fazerem coisas novas que enchem o mundo de espanto. Como no tempo dos Descobrimentos, voltámos a ser motivo de admiração universal, mas também de inveja. É assim a vida.»
«Se um grupo de algumas centenas de pessoas conseguir de facto fazer em 10 dias o que um computador não logrou em seis meses, escuso de sublinhar a gravidade da situação para nós. Este sistema de informática manual ameaça concorrer seriamente com os nossos produtos. Pura e simplesmente, não estamos em condições de concorrer contra um computador humano.»
Quando alguns jornalistas lhe perguntaram se esta situação não revelaria que o sucesso passado da empresa a teria tornado complacente e desatenta às manobras da concorrência, perdendo por isso a liderança tecnológica para o Estado português, Gates reagiu assim: «Faço notar que, dados o baixo nível dos salários portugueses e o elevado déficite público do país, há fortes indícios de que estejamos perante um caso de dumping. Vamos pedir ao Departamento Federal de Comércio que investigue o caso e, se essa suspeita se confirmar, apresente um protesto formal perante o governo português.»
Confrontado com estas declarações, o primeiro-ministro português Santana Lopes reagiu com evidente desagrado. «A reacção deselegante do senhor Bill Gates só mostra que o atingimos num ponto sensível. O Governo está a conseguir mobilizar os portugueses para fazerem coisas novas que enchem o mundo de espanto. Como no tempo dos Descobrimentos, voltámos a ser motivo de admiração universal, mas também de inveja. É assim a vida.»
23.9.04
Lógicas divergentes
O quase em português demonstra irrefutavelmente algo que eu apenas intuira: o computador da Compta não foi programado para entender a lógica portuguesa. Daí toda esta confusão.
Abençoado seja esse blogue por não conseguir raciocinar "inteiramente em português".
Abençoado seja esse blogue por não conseguir raciocinar "inteiramente em português".
22.9.04
À unha, à unha
Será verdade que os povos aprendem com o exemplo? Se for, já estou daqui a imaginar as consequências da decisão da Ministra da Educação de realizar à mão o trabalho de distribuição dos professores pelas escolas. As escavadoras serão substituidas por colheres de sopa, as camionetas por burros, os emails por pombos-correios.
Este caso tem, apesar de tudo, o mérito de permitir a todo o país perceber uma quantidade de coisas, entre elas as causas da nossa baixa produtividade. Torna-se evidente, por exemplo, que de nada vale pôr um conjunto de pessoas a trabalhar dia e noite durante meses a fio, até cairem para o lado, se os dirigentes não têm a mínima ideia do que estão a fazer.
A organização eficiente do trabalho depende em grande medida da sensatez dos objectivos e da adequação dos instrumentos utilizados à tarefa proposta. Ora não é efectivamente sensato centralizar a decisão de distribuir os professores na 5 de Outubro.
A complexidade de um sistema aumenta exponencialmente à medida que cresce o número dos seus elementos (lei de Metcalf). Por conseguinte, quando estamos a lidar com centenas de escolas e dezenas de milhar de professores avaliados segundo múltiplos parâmetros, mesmo o mais poderoso computador terá dificuldade em enfrentar tais níveis de complexidade, sobretudo se as regras de distribuição forem elas próprias confusas.
Nestas condições, aquilo que cada escola individualmente resolveria com uma simples folha de Excel transforma-se numa missão virtualmente impossível para um super-programa a correr num super-computador.
Os computadores podem ser uma extraordinária ferramenta ao serviço da produtividade das organizações, se se aproveitar a sua introdução para simplificar e racionalizar os métodos de trabalho. Quando os procedimentos são estúpidos e complicativos, enfiá-los num computador só aumenta a rigidez do sistema, na medida em que impede o desenrascanço que entre nós usualmente mantém as coisas a trabalhar.
Interrogam-se os nossos sábios porque é que os portugueses se dão tão mal com a Matemática. O estrondoso fracasso dos computadores do Ministério da Educação sugere que, afinal, essa nossa indiferença revela um saudável bom-senso. Talvez a Matemática funcione bem lá na América ou na Alemanha, mas cá, manifestamente, não se aplica. Modernices...
Este caso tem, apesar de tudo, o mérito de permitir a todo o país perceber uma quantidade de coisas, entre elas as causas da nossa baixa produtividade. Torna-se evidente, por exemplo, que de nada vale pôr um conjunto de pessoas a trabalhar dia e noite durante meses a fio, até cairem para o lado, se os dirigentes não têm a mínima ideia do que estão a fazer.
A organização eficiente do trabalho depende em grande medida da sensatez dos objectivos e da adequação dos instrumentos utilizados à tarefa proposta. Ora não é efectivamente sensato centralizar a decisão de distribuir os professores na 5 de Outubro.
A complexidade de um sistema aumenta exponencialmente à medida que cresce o número dos seus elementos (lei de Metcalf). Por conseguinte, quando estamos a lidar com centenas de escolas e dezenas de milhar de professores avaliados segundo múltiplos parâmetros, mesmo o mais poderoso computador terá dificuldade em enfrentar tais níveis de complexidade, sobretudo se as regras de distribuição forem elas próprias confusas.
Nestas condições, aquilo que cada escola individualmente resolveria com uma simples folha de Excel transforma-se numa missão virtualmente impossível para um super-programa a correr num super-computador.
Os computadores podem ser uma extraordinária ferramenta ao serviço da produtividade das organizações, se se aproveitar a sua introdução para simplificar e racionalizar os métodos de trabalho. Quando os procedimentos são estúpidos e complicativos, enfiá-los num computador só aumenta a rigidez do sistema, na medida em que impede o desenrascanço que entre nós usualmente mantém as coisas a trabalhar.
Interrogam-se os nossos sábios porque é que os portugueses se dão tão mal com a Matemática. O estrondoso fracasso dos computadores do Ministério da Educação sugere que, afinal, essa nossa indiferença revela um saudável bom-senso. Talvez a Matemática funcione bem lá na América ou na Alemanha, mas cá, manifestamente, não se aplica. Modernices...
21.9.04
Oremos
Se a Igreja Católica tivesse sido inventada por portugueses, podemos estar certos de que nunca funcionaria.
Um fiel dirigia-se ao confessionário e narrava os seus pecados, tal e qual como agora sucede, mas, quando pedia a absolvição, o padre retorquia-lhe: «Alto lá! Isso agora mais devagar! Tem que fazer um requerimento ao Papa e depois aguardar uma resposta.»
«E a resposta vem depressa? É que, se eu morro entretanto, corro o risco de ir parar ao Inferno.»
«Aí é que já não é comigo... Tem que ter paciência... Demora o que tem que demorar, porque há muito serviço acumulado e ouvi dizer que as listas de espera estão a aumentar todos os dias. Mas olhe, não perca mais tempo com lamúrias: vá já à sacristia buscar o impresso, porque depois de preenchê-lo ainda tem que reconhecer a assinatura no notário. E, quando mandar pelo correio, junte a declaração do IRS, para provar que está isento de taxa moderadora.»
Entretanto, lá no Vaticano, as listas de espera iam de facto crescendo. Um estrangeirado, desses que estudaram nos EUA, alvitrava que, para pôr cobro ao estrangulamento e salvar mais almas, fosse delegado nos padres o poder de perdoar os pecados.
Noutros tempos, esse herege seria queimado numa fogueira, mas agora, em pleno século XXI, os tugas de serviço limitar-se-iam a rir-se-lhe na cara por se atrever a sugerir que um poder tão transcendente poderia ser cometido a um qualquer sacerdote de base.
Além disso, explicariam eles, a descentralização do poder de decisão conduziria inevitavelmente ao crescimento da corrupção. Pois não se estava mesmo a ver que os padres começariam a extorquir dinheiro, galinhas ou presuntos aos paroquianos a troco da entrada no Reino dos Céus?
Pois é assim mesmo: Deus delega a responsabilidade do perdão dos nossos pecados a qualquer pároco de aldeia, mas o Ministério da Educação de Portugal não permite às escolas recrutarem livremente os professores de que necessitam.
Um fiel dirigia-se ao confessionário e narrava os seus pecados, tal e qual como agora sucede, mas, quando pedia a absolvição, o padre retorquia-lhe: «Alto lá! Isso agora mais devagar! Tem que fazer um requerimento ao Papa e depois aguardar uma resposta.»
«E a resposta vem depressa? É que, se eu morro entretanto, corro o risco de ir parar ao Inferno.»
«Aí é que já não é comigo... Tem que ter paciência... Demora o que tem que demorar, porque há muito serviço acumulado e ouvi dizer que as listas de espera estão a aumentar todos os dias. Mas olhe, não perca mais tempo com lamúrias: vá já à sacristia buscar o impresso, porque depois de preenchê-lo ainda tem que reconhecer a assinatura no notário. E, quando mandar pelo correio, junte a declaração do IRS, para provar que está isento de taxa moderadora.»
Entretanto, lá no Vaticano, as listas de espera iam de facto crescendo. Um estrangeirado, desses que estudaram nos EUA, alvitrava que, para pôr cobro ao estrangulamento e salvar mais almas, fosse delegado nos padres o poder de perdoar os pecados.
Noutros tempos, esse herege seria queimado numa fogueira, mas agora, em pleno século XXI, os tugas de serviço limitar-se-iam a rir-se-lhe na cara por se atrever a sugerir que um poder tão transcendente poderia ser cometido a um qualquer sacerdote de base.
Além disso, explicariam eles, a descentralização do poder de decisão conduziria inevitavelmente ao crescimento da corrupção. Pois não se estava mesmo a ver que os padres começariam a extorquir dinheiro, galinhas ou presuntos aos paroquianos a troco da entrada no Reino dos Céus?
Pois é assim mesmo: Deus delega a responsabilidade do perdão dos nossos pecados a qualquer pároco de aldeia, mas o Ministério da Educação de Portugal não permite às escolas recrutarem livremente os professores de que necessitam.
18.9.04
«Um mestre de categoria»
Fartos das baboseiras que regularmente se ouvem e lêem sobre o que está mal no ensino, alguns bloggers deitaram mãos à patriótica missão de contar o que de facto se passa nas salas de aulas das nossas universidades. Agora, foi a vez da Turing Machine nos relatar uma história edificante.
Como também eu sou professor, sei de ciência certa que no nosso ensino superior predominam ainda e sempre o autoritarismo e a ausência de pedagogia, e não a cedência à alegada preguiça dos alunos.
Como também eu sou professor, sei de ciência certa que no nosso ensino superior predominam ainda e sempre o autoritarismo e a ausência de pedagogia, e não a cedência à alegada preguiça dos alunos.
Abençoados os pobres de espírito
Sabe-se que João Carlos Espada, nesse aspecto fiel ao seu leninismo original, mantém uma relação paranóica com a realidade. Não se deve, pois, ligar muito ao que ele diz.
Hoje, porém, foi demasiado longe quando escreveu na sua coluna do Expresso que a cultura política britânica «fez todas as revoluções da época moderna sem nunca recorrer à Revolução».
Será possível Espada ignorar que em 1642, século e meio antes da Revolução Francesa, os ingleses cortaram a cabeça ao seu rei Carlos I? Nunca terá ouvido falar da ditadura de Cromwell e dos seus Cabeças Redondas? Desconhece a guerra civil sangrenta que assolou o país até 1660 e que depois, de forma intermitente, se prolongou até à Gloriosa Revolução de 1688, data em que uma intervenção estrangeira finalmente pôs termo à desordem e ao caos? Não sabe que o reinado do terror, com o massacre sistemático de populações civis inteiras, durou lá muito mais tempo do que em França?
A honestidade intelectual nunca foi o forte de Espada. Mas pode ao menos guardar a ignorância só para si.
Hoje, porém, foi demasiado longe quando escreveu na sua coluna do Expresso que a cultura política britânica «fez todas as revoluções da época moderna sem nunca recorrer à Revolução».
Será possível Espada ignorar que em 1642, século e meio antes da Revolução Francesa, os ingleses cortaram a cabeça ao seu rei Carlos I? Nunca terá ouvido falar da ditadura de Cromwell e dos seus Cabeças Redondas? Desconhece a guerra civil sangrenta que assolou o país até 1660 e que depois, de forma intermitente, se prolongou até à Gloriosa Revolução de 1688, data em que uma intervenção estrangeira finalmente pôs termo à desordem e ao caos? Não sabe que o reinado do terror, com o massacre sistemático de populações civis inteiras, durou lá muito mais tempo do que em França?
A honestidade intelectual nunca foi o forte de Espada. Mas pode ao menos guardar a ignorância só para si.
No desaniversário de John Stuart Mill
James Mill, o pai de John Stuart Mill, foi, a par de Bentham, uma das figuras de proa do utilitarismo, uma filosofia política radical inspirada no iluminismo e no republicanismo francês.
James orientou toda a educação do seu filho segundo as rígidas normas dos princípios filosóficos dos utilitarismo. John, uma criança prodígio, começou a aprender grego aos três anos de idade e latim aos oito. Com doze anos escrevia pequenos tratados de história antiga. Aos treze dedicou-se ao estudo da lógica, de que em breve se tornou um grande especialista. Com tudo isto, não convivia praticamente com crianças da sua idade fora do ambiente familiar.
Ao entrar na idade adulta, apercebeu-se subitamente de que se tornara num pequeno monstro por força da ausência de uma educação sentimental adequada. Descobriu que não tinha objectivos na vida e mergulhou numa profunda depressão.
A pouco e pouco conseguiu libertar-se da ideias do seu pai. Mas foi o seu encontro com Harriett Taylor que de facto mudou a sua vida. Harriett era, para escândalo geral, uma mulher casada, com quem só pôde contrair matrimónio muitos anos mais tarde.
Mill descobriu que o hábito ou mania da análise tende a destruir os sentimentos e que a aceitação de leis rígidas, morais ou outras, estiola o pensamento. Concluiu que as chamadas verdades morais universais não passam, as mais das vezes, de preconceitos disfarçados. Decidiu «renunciar definitivamente à perigosa palavra necessidade».
Concebeu então um sistema de pensamento liberal original, dado que o seu liberalismo era uma exigência, não uma doutrina. Segundo John Stuart Mill, a pluralidade não só de formas de pensar como de formas de viver torna-nos mais fortes, tanto individual como colectivamente, porque só o confronto de perspectivas distintas permite seleccionar as melhores e rejeitar as piores. É por isso que o princípio da proliferação é benéfico e deve ser promovido.
Isso coloca também exigências particulares a cada um de nós, dado que o valor das nossas opiniões tem que ser permanentemente provado em competição aberta.
Esta variante de liberalismo tem uma preferência evidente pelas formas de organização política que fomentam a expressão de ideais opostos, por muito subversivos que eles possam ser para a ordem vigente. Nessa medida, tende obviamente a simpatizar com a economia de mercado.
Todavia, não é possível deduzir daí recomendações específicas sobre, por exemplo, qual deverá ser o grau de intervenção do Estado na economia e de que modo ele deverá ser exercido.
Como o pluralismo de Stuart Mill admite a existência de sistemas de valores diferentes e conflituantes igualmente legítimos, não restringe o debate à discussão dos meios mais adequados à prossecução de propósitos supostamente absolutos e universais. Os valores podem e devem ser questionados, o que torna impossível a elaboração de programas políticos e sociais prontos a vestir.
A excepcionalidade portuguesa
Tenho assistido, entre o perplexo e o divertido, à interminável saga da colocação dos professores. Repartir o stock de professores disponíveis pelas escolas é aparentemente tão difícil para a nossa nação valente e imortal como para a Agência Espacial Europeia colocar uma sonda em Marte.
E qual é a raiz do problema? - Pois, ao que parece, o programa do computador não funciona em condições.
É possível que sim. Mas eu, com base na minha experiência pessoal em situações de algum modo semelhantes, atrevo-me a conjecturar outra hipótese.
Ao que parece, o Ministério da Educação lançou um concurso, e várias empresas terão concorrido para fornecer o software pretendido. Ao analisar o caderno de encargos, suponhamos que uma das empresas concorrentes detectou vários erros ou imprecisões nas especificações. Além disso, pareceu-lhe que a complexidade das regras de colocação dos professores era de tal ordem, e as excepções e casos particulares tão numerosos, que o mais natural seria que, no decurso do trabalho, se viessem a descobrir situações de incompatibilidade lógica. Para piorar ainda mais coisas, o prazo proposto era extremamente restrito, não deixando tempo para a realização dos necessários testes.
Muito respeitosamente, chamou a atenção ao funcionário competente para estes problemas e pediu que eles fossem esclarecidos. A resposta poderia ter sido qualquer coisa deste género: «Meus caros amigos, se querem concorrer, apresentem a vossa proposta. Se não querem, saiam da fila, que não falta quem esteja disposto a fazer o trabalho».
Imaginemos ainda que o responsável máximo dessa empresa ponderou seriamente não concorrer. Mas depois pôs-se a pensar que todos os meses tinha que assegurar o salário de umas dezenas de pessoas, as quais por sua vez tinham mais uns quantos bicos para alimentar lá em casa. Depois de consultados os seus mais próximos colaboradores, decidiu correr o risco.
A empresa concorreu - e, para sua desgraça ganhou.
O pior foi depois. As piores suspeitas realizaram-se: à medida que o trabalho avançava, confirmava-se que as tolas regras inventadas por cabeças delirantes se contradiziam mutuamente em múltiplas situações. Os computadores não são tão inteligentes como as pessoas, mas, ao contrário dos burocratas, não toleram falhas de lógica.
Agora chegámos a esta situação de escândalo nacional e, já se sabe, há uma empresa que está lixada. Os jornais de hoje anunciam que a senhora ministra tenciona processá-la criminalmente. Leram bem: criminalmente. Desconfio que não deve ter sido nenhuma multinaciomal poderosa.
É claro que o que escrevi é apenas uma suposição, mas uma suposição baseada em situações que já presenciei de perto. Agora, pergunta-se, porque é que a administração pública se comporta de uma forma tão estúpida. É claro que há lá imensa gente capaz que poderia ter tratado do caso com outra competência, mas esses não estão envolvidos nestes processos. Ao leme estão, sim, os yes-man que prometem ao ministro coisas que uns e outro, na sua santa ignorância, não sabem ser impossíveis. No final, safam-se nas calmas atribuindo a culpa ao programa informático. Caso encerrado. E passam ao seguinte.
É claro que, para além de tudo isto, a questão de fundo reside nessa ideia peregrina de centralizar num departamento da 5 de Outubro a tarefa de alocar professores a escolas. Porque não hão-de as próprias escolas tratar disso, como se faz em todo o mundo? É claro que essa alternativa colocaria outros problemas, como por exemplo o risco do compadrio na contratação de docentes, mas isso resolve-se responsabilizando as escolas pelo seu desempenho.
Estranho, muito estranho mesmo, é não haver aparentemente um único partido que defenda publicamente esta solução. É isto a excepcionalidade portuguesa.
E qual é a raiz do problema? - Pois, ao que parece, o programa do computador não funciona em condições.
É possível que sim. Mas eu, com base na minha experiência pessoal em situações de algum modo semelhantes, atrevo-me a conjecturar outra hipótese.
Ao que parece, o Ministério da Educação lançou um concurso, e várias empresas terão concorrido para fornecer o software pretendido. Ao analisar o caderno de encargos, suponhamos que uma das empresas concorrentes detectou vários erros ou imprecisões nas especificações. Além disso, pareceu-lhe que a complexidade das regras de colocação dos professores era de tal ordem, e as excepções e casos particulares tão numerosos, que o mais natural seria que, no decurso do trabalho, se viessem a descobrir situações de incompatibilidade lógica. Para piorar ainda mais coisas, o prazo proposto era extremamente restrito, não deixando tempo para a realização dos necessários testes.
Muito respeitosamente, chamou a atenção ao funcionário competente para estes problemas e pediu que eles fossem esclarecidos. A resposta poderia ter sido qualquer coisa deste género: «Meus caros amigos, se querem concorrer, apresentem a vossa proposta. Se não querem, saiam da fila, que não falta quem esteja disposto a fazer o trabalho».
Imaginemos ainda que o responsável máximo dessa empresa ponderou seriamente não concorrer. Mas depois pôs-se a pensar que todos os meses tinha que assegurar o salário de umas dezenas de pessoas, as quais por sua vez tinham mais uns quantos bicos para alimentar lá em casa. Depois de consultados os seus mais próximos colaboradores, decidiu correr o risco.
A empresa concorreu - e, para sua desgraça ganhou.
O pior foi depois. As piores suspeitas realizaram-se: à medida que o trabalho avançava, confirmava-se que as tolas regras inventadas por cabeças delirantes se contradiziam mutuamente em múltiplas situações. Os computadores não são tão inteligentes como as pessoas, mas, ao contrário dos burocratas, não toleram falhas de lógica.
Agora chegámos a esta situação de escândalo nacional e, já se sabe, há uma empresa que está lixada. Os jornais de hoje anunciam que a senhora ministra tenciona processá-la criminalmente. Leram bem: criminalmente. Desconfio que não deve ter sido nenhuma multinaciomal poderosa.
É claro que o que escrevi é apenas uma suposição, mas uma suposição baseada em situações que já presenciei de perto. Agora, pergunta-se, porque é que a administração pública se comporta de uma forma tão estúpida. É claro que há lá imensa gente capaz que poderia ter tratado do caso com outra competência, mas esses não estão envolvidos nestes processos. Ao leme estão, sim, os yes-man que prometem ao ministro coisas que uns e outro, na sua santa ignorância, não sabem ser impossíveis. No final, safam-se nas calmas atribuindo a culpa ao programa informático. Caso encerrado. E passam ao seguinte.
É claro que, para além de tudo isto, a questão de fundo reside nessa ideia peregrina de centralizar num departamento da 5 de Outubro a tarefa de alocar professores a escolas. Porque não hão-de as próprias escolas tratar disso, como se faz em todo o mundo? É claro que essa alternativa colocaria outros problemas, como por exemplo o risco do compadrio na contratação de docentes, mas isso resolve-se responsabilizando as escolas pelo seu desempenho.
Estranho, muito estranho mesmo, é não haver aparentemente um único partido que defenda publicamente esta solução. É isto a excepcionalidade portuguesa.
17.9.04
O Benfica nunca existiu
Sinto hoje uma irresistível tentação de vos dizer a verdade, mesmo se ela é irrelevante, mesmo se a própria noção de verdade deixou provavelmente de fazer sentido.
E a verdade é que o Benfica - esse conceito omnipresente na vida social portuguesa por virtude da permanente e sufocante pressão dos media - o Benfica, de facto, nunca existiu.
Ou, por outra: o Benfica existe, mas apenas na nossa delirante imaginação colectiva. É, como dizem os pós-estruturalistas, um significante sem significado, uma palavra sem referente, que voga por aí ao sabor das ondas hertzianas. O que não existe, nem nunca existiu, é o Glorioso Benfica, o Benfica Vitorioso, o Benfica de Eusébio e Coluna, o Benfica Campeão da Europa, do Mundo e Arredores.
Esse Benfica mítico é por inteiro uma realidade fabricada pelos media com base na montagem de alguns pedaços de filmes antigos cuja autenticidade jamais foi possível comprovar, até porque os poucos investigadores que se abalançaram a essa tarefa desapareceram em circunstâncias misteriosas. Os testemunhos de pessoas da época não merecem, por junto, qualquer credibilidade, visto que os próprios reconhecem ter estado embriagados nos dias em que os alegados acontecimentos milagrosos teriam tido lugar.
Mas, se assim é - perguntar-se-á - se tudo se baseia em truques cinematográficos e efeitos especiais porque é que não prossegue a falsificação nos dias de hoje? Ora, pela simples razão de que fica muito cara a manipulação de imagens necessária para transformar um conjunto de jogadores medíocres numa equipa campeã. Pura e simplesmente, a relação custo-benefício não é compensadora.
E, além disso, para quê ter tanto trabalho, se, hoje em dia, os benfiquistas se dão por satisfeitos só por serem campeões na pré-temporada? No seu medo do real, no seu pavor de toda e qualquer realidade sensível, eles criaram este gigantesco simulacro colectivo e vivem perfeitamente felizes no seu interior.
Valerá a pena acordá-los? Se calhar, não. Fica então combinado: não contem a ninguém.
E a verdade é que o Benfica - esse conceito omnipresente na vida social portuguesa por virtude da permanente e sufocante pressão dos media - o Benfica, de facto, nunca existiu.
Ou, por outra: o Benfica existe, mas apenas na nossa delirante imaginação colectiva. É, como dizem os pós-estruturalistas, um significante sem significado, uma palavra sem referente, que voga por aí ao sabor das ondas hertzianas. O que não existe, nem nunca existiu, é o Glorioso Benfica, o Benfica Vitorioso, o Benfica de Eusébio e Coluna, o Benfica Campeão da Europa, do Mundo e Arredores.
Esse Benfica mítico é por inteiro uma realidade fabricada pelos media com base na montagem de alguns pedaços de filmes antigos cuja autenticidade jamais foi possível comprovar, até porque os poucos investigadores que se abalançaram a essa tarefa desapareceram em circunstâncias misteriosas. Os testemunhos de pessoas da época não merecem, por junto, qualquer credibilidade, visto que os próprios reconhecem ter estado embriagados nos dias em que os alegados acontecimentos milagrosos teriam tido lugar.
Mas, se assim é - perguntar-se-á - se tudo se baseia em truques cinematográficos e efeitos especiais porque é que não prossegue a falsificação nos dias de hoje? Ora, pela simples razão de que fica muito cara a manipulação de imagens necessária para transformar um conjunto de jogadores medíocres numa equipa campeã. Pura e simplesmente, a relação custo-benefício não é compensadora.
E, além disso, para quê ter tanto trabalho, se, hoje em dia, os benfiquistas se dão por satisfeitos só por serem campeões na pré-temporada? No seu medo do real, no seu pavor de toda e qualquer realidade sensível, eles criaram este gigantesco simulacro colectivo e vivem perfeitamente felizes no seu interior.
Valerá a pena acordá-los? Se calhar, não. Fica então combinado: não contem a ninguém.
Acerca do nacional-achadismo
Há uns bons vinte anos que António Barreto debita nos jornais a sua interminável lenga-lenga. É um bocado como as telenovelas: a gente passa três meses sem assistir a nenhum episódio, mas depois, quando retoma o contacto, verifica que não perdeu nada, porque a história continua a marcar passo.
Agora, deu em moer-nos o juízo há uma semana no público com uma catilinária cujo propósito não se vislumbra. Mas eis que hoje, de repente, sai-se com esta a propósito dos problemas do ensino da Matemática: «Eu não sei qual é a resposta. Só sei que está mal e que está errado.» Ora, boa noite. Se não sabe a resposta, nem tem nada para dizer, porque é que insiste em dizê-lo? Se ao menos o cantasse...
Um dos grandes problemas nacionais é o achadismo. Toda a gente se sente no direito de achar qualquer coisa e de maçar os compatriotas com as suas opiniões. Uma das características distintivas dos nossos media é que os comentaristas raramente se atêm aos domínios em que desfrutam de alguma competência (se é que a têm), coisa impensável nos países civilizados. É assim que temos que suportar Prado Coelho a discutir a globalização, Sousa Tavares a criticar a regionalização, Marcello a analisar a selecção nacional de futebol, Pulido Valente a debitar sobre política económica, e por aí fora. E estes, note-se bem, ainda são os melhores...
Entre nós, empresa cujo negócio não assenta nalguma espécie de renda de situação resultante do acesso privilegiado a algum activo escasso, nunca passa da cepa torta. Nos jornais esse bem escasso é o centímetro quadrado, na rádio ou na tv é o segundo, que são disputados com ferocidade canina, porque os achadores (ou serão achadiços?) adoptam a táctica de não deixar jogar o adversário, mantendo-o afastado da bola.
O importante é que todos os espaços disponíveis sejam ocupados por malta amiga - entenda-se: pessoal da mesma seita -, de forma a impedir que opiniões diversas possam exprimir-se. Não sei se já repararam que só em Agosto, quando os achadores profissionais se deslocam para outras pastagens, sobra algum espaço nos jornais para termos acesso às opiniões de gente que de facto entende o que de facto está em causa nos incêndios, na interrupção voluntária da gravidez ou na descentralização administrativa do país.
Silly season? Pelo contrário, é a única estação em que tomamos conhecimento de que há vida para além do cinzento país oficial.
Agora, deu em moer-nos o juízo há uma semana no público com uma catilinária cujo propósito não se vislumbra. Mas eis que hoje, de repente, sai-se com esta a propósito dos problemas do ensino da Matemática: «Eu não sei qual é a resposta. Só sei que está mal e que está errado.» Ora, boa noite. Se não sabe a resposta, nem tem nada para dizer, porque é que insiste em dizê-lo? Se ao menos o cantasse...
Um dos grandes problemas nacionais é o achadismo. Toda a gente se sente no direito de achar qualquer coisa e de maçar os compatriotas com as suas opiniões. Uma das características distintivas dos nossos media é que os comentaristas raramente se atêm aos domínios em que desfrutam de alguma competência (se é que a têm), coisa impensável nos países civilizados. É assim que temos que suportar Prado Coelho a discutir a globalização, Sousa Tavares a criticar a regionalização, Marcello a analisar a selecção nacional de futebol, Pulido Valente a debitar sobre política económica, e por aí fora. E estes, note-se bem, ainda são os melhores...
Entre nós, empresa cujo negócio não assenta nalguma espécie de renda de situação resultante do acesso privilegiado a algum activo escasso, nunca passa da cepa torta. Nos jornais esse bem escasso é o centímetro quadrado, na rádio ou na tv é o segundo, que são disputados com ferocidade canina, porque os achadores (ou serão achadiços?) adoptam a táctica de não deixar jogar o adversário, mantendo-o afastado da bola.
O importante é que todos os espaços disponíveis sejam ocupados por malta amiga - entenda-se: pessoal da mesma seita -, de forma a impedir que opiniões diversas possam exprimir-se. Não sei se já repararam que só em Agosto, quando os achadores profissionais se deslocam para outras pastagens, sobra algum espaço nos jornais para termos acesso às opiniões de gente que de facto entende o que de facto está em causa nos incêndios, na interrupção voluntária da gravidez ou na descentralização administrativa do país.
Silly season? Pelo contrário, é a única estação em que tomamos conhecimento de que há vida para além do cinzento país oficial.
16.9.04
15.9.04
Sopa
Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
Com uma colher.
Carl Sandburg, tradução de Alexandre O'Neil.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
Com uma colher.
Carl Sandburg, tradução de Alexandre O'Neil.
«E se carimbássemos a testa?»
Sobre a ideia de pôr cada um a pagar os cuidados de saúde segundo os rendimentos de cada qual, a palavra definitiva está aqui.
(Perdoem-me a vaidade, mas, aqui há uns meses, escrevi um post cuja ideia era mais ou menos a mesma.)
De passagem, notem como este blogue com pouco mais de um mês de existência merece ser lido regularmente. Não tarda nada, vai parar aos links aqui ao lado.
Obrigado ao Bloguítica, que me chamou a atenção para ele.
(Perdoem-me a vaidade, mas, aqui há uns meses, escrevi um post cuja ideia era mais ou menos a mesma.)
De passagem, notem como este blogue com pouco mais de um mês de existência merece ser lido regularmente. Não tarda nada, vai parar aos links aqui ao lado.
Obrigado ao Bloguítica, que me chamou a atenção para ele.
14.9.04
Agora a sério...
Lembram-se daqueles óculos excêntricos que o Bagão Félix usava no filme Tráfico, realizado por aquele seu amigo que, para além de não saber fazer filmes, ainda por cima é benfiquista?
Estou sempre a ver se volta a pô-los quando nos vem explicar que o Orçamento Geral do Estado é como o orçamento de uma família. Ficava tudo muito mais claro e toda a gente percebia a piada.
Estou sempre a ver se volta a pô-los quando nos vem explicar que o Orçamento Geral do Estado é como o orçamento de uma família. Ficava tudo muito mais claro e toda a gente percebia a piada.
O crítico
Bagão Félix foi em tempos (não sei se recordam, mas eu sou danado para registar estas coisas) um «apoiante crítico», para usar as suas próprias palavras, da Direcção de Vale de Azevedo.
Ficámos ontem a saber, a posteriori, que também foi um apoiante crítico do governo de Durão Barroso.
Uma vez, ainda vá. Mas duas, já revela uma certa falta de discernimento.
Ficámos ontem a saber, a posteriori, que também foi um apoiante crítico do governo de Durão Barroso.
Uma vez, ainda vá. Mas duas, já revela uma certa falta de discernimento.
Tens um prá troca?
Para o Victor Fernandez, uma equipa é uma colecção de cromos. Desde que ponha os craques todos a jogar, não é culpa dele se as coisas correrem mal. É assim que se faz em Espanha, o que é que querem?
Fornicação, não
Vai por aí grande excitação porque na Turquia, um país que até quer entrar para a União Europeia, o adultério é crime punido por lei. Mas acontece que nos EUA o adultério também é crime em metade dos estados da União; e que, em metade dessa metade, a fornicação fora do casamento, mesmo entre solteiros, também o é. É verdade que essas leis já não são aplicadas há muito tempo. Mas lá que existem, existem - e podem ser reactivadas a qualquer momento por qualquer juiz mais zeloso. |
13.9.04
Eles não querem aliados
Porque raptam as Brigadas de Alá dois jornalistas franceses, se a França não aprovou a invasão do Iraque? Porque ameaçam assassinar duas inocentes italianas pacifistas que foram para o país cuidar de um povo que consideram esmagado pelos ocupantes americanos? Porque fazem explodir bombas em mesquitas apinhadas de fiéis ou em mercados frequentados por iraquianos comuns?
A utilização do terror para impor desígnios políticos é tão velha como a humanidade - sabemo-lo por diversíssimos registos escritos e vestígios de massacres.
Mas sabemos também que, muito frequentemente, a vertigem do terror adquire a sua dinâmica própria, perdendo de vista o impulso político primordial que lhe deu origem. Quando as coisas chegam a esse ponto, a destruição - sempre mais destruição - é o único prémio da própria destruição. É inútil investigar a sua racionalidade, porque já não a tem.
Cada vez me convenço mais de que uma das características essenciais do hiper-terrorismo actual é que, mau-grado algumas aparências, mau-grado inclusivamente certas alegações dos seus promotores, ele já não tem nada a ver com política.
Qualquer movimentação política, por pouco respeitável, responsável ou inteligente que seja, guia-se por propósitos fundamentais que apontam para a tomada total ou parcial do poder. Nesse impulso, busca congregar à sua volta todos os apoios que for possível, não só para aumentar a sua força própria, como para reduzir a do adversário.
O estabelecimento de alianças é uma parte vital desse jogo. Por isso podemos dizer, com toda a segurança que, se alguém despreza as oportunidades mais evidentes e elementares de fazer amigos e uni-los contra os inimigos, esse alguém não faz política, mas outra coisa qualquer.
Estou certo de que qualquer pensador minimamente qualificado da acção política sob as suas formas mais radicais, de Leo Strauss a Carl Schmitt, de Maquiavel a Karl Marx, concordaria com isto.
A utilização do terror para impor desígnios políticos é tão velha como a humanidade - sabemo-lo por diversíssimos registos escritos e vestígios de massacres.
Mas sabemos também que, muito frequentemente, a vertigem do terror adquire a sua dinâmica própria, perdendo de vista o impulso político primordial que lhe deu origem. Quando as coisas chegam a esse ponto, a destruição - sempre mais destruição - é o único prémio da própria destruição. É inútil investigar a sua racionalidade, porque já não a tem.
Cada vez me convenço mais de que uma das características essenciais do hiper-terrorismo actual é que, mau-grado algumas aparências, mau-grado inclusivamente certas alegações dos seus promotores, ele já não tem nada a ver com política.
Qualquer movimentação política, por pouco respeitável, responsável ou inteligente que seja, guia-se por propósitos fundamentais que apontam para a tomada total ou parcial do poder. Nesse impulso, busca congregar à sua volta todos os apoios que for possível, não só para aumentar a sua força própria, como para reduzir a do adversário.
O estabelecimento de alianças é uma parte vital desse jogo. Por isso podemos dizer, com toda a segurança que, se alguém despreza as oportunidades mais evidentes e elementares de fazer amigos e uni-los contra os inimigos, esse alguém não faz política, mas outra coisa qualquer.
Estou certo de que qualquer pensador minimamente qualificado da acção política sob as suas formas mais radicais, de Leo Strauss a Carl Schmitt, de Maquiavel a Karl Marx, concordaria com isto.
11.9.04
A música do instante
A gente prepara-se para ouvir uma peça de Webern, mas ainda não está bem sentada quando ela já terminou.
Raras são as composições que duram mais do que cinco minutos, e há andamentos com apenas vinte segundos, coisa para menos do que cinco ou seis compassos. A Sinfonia opus 21 não tem, ao todo, mais que dez minutos. As obras completas cabem, sem excessivos apertos, em três CDs.
A audição da música de Webern coloca particulares dificuldades pela total concentração que exige do auditor. Há alguma grande música que também pode servir, embora com evidente perda para quem a escuta, como música de fundo. Não assim a de Webern: ou se lhe dedica uma atenção absoluta e não partilhada, ou se perde integralmente.
Por isso ela funciona tão mal nas salas de concerto, onde raramente é escutada. Há demasiados factores de perturbação, mesmo em espaços públicos pequenos, a inbirem a necessária concentração de espírito. O seu meio ideal é, por isso, o registo fonográfico.
Webern não tem tempo a perder, e também não nos quer fazer perder tempo a nós. Devemos louvá-lo por isso. Ele nunca repete duas vezes a mesma ideia musical. Redu-la à sua essência e entrega-a ao público sob essa forma depurada. Não lhe interessa a parra, apenas a uva.
Webern é um excelente exemplo da ética da concisão na arte. Por isso, a sua música tem sido comparada aos haiku japoneses.
A riqueza tímbrica - Schoenberg chamou-lhe melodia tímbrica - da música da Webern confere-lhe um colorido particular. A concisão, a sobriedade, o miniaturismo e a invenção cromática fazem dela o equivalente sonoro da pintura de Paul Klee ou da escrita de Italo Calvino.
9.9.04
A luz
«A vida é um processo de combustão; o intelecto é a luz produzida por esse processo.»
Schopenhauer.
Schopenhauer.
Abaixo o colesterol
Esta moda das barriguinhas à mostra deve ser invenção de algum malévolo estilista castelhano que assim pretende humilhar as mulheres portuguesas revelando ao mundo os seus inenarráveis toucinhos.
A normalidade anormal
Acham normal, isto de se descobrir, depois da sua morte, que o Presidente do Tribunal Constitucional era membro de uma sociedade secreta?
Porque é secreta essa sociedade? Acaso as suas ideias são perseguidas? Não o sendo, que ocultos propósitos justificam então esse secretismo?
Porque é secreta essa sociedade? Acaso as suas ideias são perseguidas? Não o sendo, que ocultos propósitos justificam então esse secretismo?
Educação popular
Uns anos antes do 25 de Abril a revista Seara Nova criou uma secção onde reproduzia verbatim os mais notáveis ditos do Presidente da República Américo Thomaz. Passado pouco tempo, a Censura Prévia proibiu a secção.
Está a chegar a altura de algum jornal criar uma secção preenchida unicamente com as melhores frases de Jorge Sampaio e Santana Lopes.
Lamentavelmente, isso convenceria definitivamente os nossos meninos e meninas que não é preciso estudar para se ser alguém na vida.
Está a chegar a altura de algum jornal criar uma secção preenchida unicamente com as melhores frases de Jorge Sampaio e Santana Lopes.
Lamentavelmente, isso convenceria definitivamente os nossos meninos e meninas que não é preciso estudar para se ser alguém na vida.
Ou será que é ao contrário?
O primeiro-ministro fez uma curta interrupção nas suas férias para viajar até ao Brasil. À chegada, declarou: «Isto não é juntar o útil ao agradável, é juntar o agradável ao útil».
8.9.04
A armadilha
Ainda não ouvi ninguém notar que Beslan está muito perto do Iraque. Para ser exacto, a Ossétia está mais perto do Iraque do que Lisboa de Madrid.
É certo que não há auto-estradas, nem sequer estradas decentes, e que as comunicações são geralmente muito difíceis naquelas partes do mundo, mas, ainda assim, a proximidade é indiscutível.
Assim sendo, a lógica subjacente aos trágicos acontecimentos da semana passada pode muito bem ser a de atrair a Rússia para o conflito iraquiano. Tendo em conta as declarações de hoje de Putin - «perseguiremos os terroristas onde quer que eles se encontrem» -, o isco já foi mordido.
Mais uma vez, a Rússia revela-se, por todas as razões, o elo mais fraco do sistema mundial de estados. É de temer que os fundamentalistas islâmicos possam vir a alcançar a sua primeira vitória decisiva no Cáucaso, terreno que lhes é a vários títulos favorável.
É certo que não há auto-estradas, nem sequer estradas decentes, e que as comunicações são geralmente muito difíceis naquelas partes do mundo, mas, ainda assim, a proximidade é indiscutível.
Assim sendo, a lógica subjacente aos trágicos acontecimentos da semana passada pode muito bem ser a de atrair a Rússia para o conflito iraquiano. Tendo em conta as declarações de hoje de Putin - «perseguiremos os terroristas onde quer que eles se encontrem» -, o isco já foi mordido.
Mais uma vez, a Rússia revela-se, por todas as razões, o elo mais fraco do sistema mundial de estados. É de temer que os fundamentalistas islâmicos possam vir a alcançar a sua primeira vitória decisiva no Cáucaso, terreno que lhes é a vários títulos favorável.
7.9.04
Rápido
Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançadas através da pradaria, na névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-cama, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
«Omaha», responde.
Carl Sandburg, traduzido por Alexandre O'Neil.
Lançadas através da pradaria, na névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-cama, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
«Omaha», responde.
Carl Sandburg, traduzido por Alexandre O'Neil.
Arte comercial
A 3 de Dezembro de 1781, Josef Haydn, mestre de capela de Sua Alteza Sereníssima, o Príncipe Nicolau Esterházy, dirigiu aos seus amigos e aos seus mecenas uma carta circular. A carta endereçada ao Príncipe Krafft-Ernst von-Oettingen, que chegou até nós, dizia o seguinte:
Alteza Sereníssima, Gracioso Príncipe e Venerável Senhor!
Na vossa qualidade de grande mecenas e conhecedor de música, permito-me apresentar a Vossa Alteza Sereníssima os meus recentíssimos quartetos para 2 violinos, viola e violoncelo concertante, correctamente copiados, ao preço de assinatura de 6 ducados. Estão escritos num estilo novo e particular, porque há já 10 anos que eu não compunha quartetos. Os nobres assinantes residentes no estrangeiro receberão os seus exemplares antes de serem editados aqui. Solicito o vosso acolhimento favorável para esta oferta. Sou, como sempre, o mais humilde e devotado servidor de Vossa Alteza Sereníssima,
Josephus Haydn
Mestre de Capela do Príncipe Esterházy
Viena, 3 de dezembro (1781)
Os quartetos em causa são o opus 33 de Haydn. Recomendo a luminosa interpretação do Quatuor Mosaiques, gravada em 1995 e 1996 para a editora Astrée.
6.9.04
4.9.04
Uma conspiração maçónica
- Eu gosto de os ouvir - disse o padre. - Falam assim, mas, em chegando a ocasião, vão todos votar nele como carneiros.
O Brasileiro encolheu os ombros e sorriu, como confirmando o dito..
- Pois havemos de ver o que será! - berrou o Sr. Joãozinho. - Isso é consoante cá umas coisas.
- A falar a verdade - disse o Pertunhas - não tem pago muito bem ao círculo o nomeá-lo há tantos anos seu deputado; só essa teima agora em querer obrigar o povo a enterrar-se no cemitério!
- Essa, a falar verdade! - disse um lavrador.
- Quero ver se lá me hão-de enterrar a mim! - disse ameaçadoramente o Sr. Joãozinho, como se esperasse, ainda depois da morte, impor as suas vontades à força de murros e de pragas.
- Deram-lhe para dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e acabou-se. Dantes enterrava-se lá toda a gente, e não havia mais doenças do que agora - isto dizia o padre.
- Os Romanos tinham as suas catacumbas - ponderou o mestre da latinidade, forçando as suas reminiscências romanas.
- Vamos - ponderou o Brasileiro, como quem vira pretexto de fazer novo discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade científica. - O enterrar nas igrejas é anti-higiénico; porque os químicos sabem que... o ar que não é puro... é mau para a saúde pública. Ora os cadáveres... em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o ar... Há uns insectozinhos invisíveis que a gente respira... e vão para a massa do sangue e corrompem-na... e o resultado é a febre... porque a febre são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e, se saem, muito bem; e, se não saem, ficam retidos e azedam o corpo todo.
A teoria fisiológico-patológica foi recebida com atenção igual à que merecera a económica.
- Tudo isso será assim - disse o padre - mas o conselheiro faz aquilo por instigações das lojas maçónicas e dos pedreiros livres.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
O Brasileiro encolheu os ombros e sorriu, como confirmando o dito..
- Pois havemos de ver o que será! - berrou o Sr. Joãozinho. - Isso é consoante cá umas coisas.
- A falar a verdade - disse o Pertunhas - não tem pago muito bem ao círculo o nomeá-lo há tantos anos seu deputado; só essa teima agora em querer obrigar o povo a enterrar-se no cemitério!
- Essa, a falar verdade! - disse um lavrador.
- Quero ver se lá me hão-de enterrar a mim! - disse ameaçadoramente o Sr. Joãozinho, como se esperasse, ainda depois da morte, impor as suas vontades à força de murros e de pragas.
- Deram-lhe para dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e acabou-se. Dantes enterrava-se lá toda a gente, e não havia mais doenças do que agora - isto dizia o padre.
- Os Romanos tinham as suas catacumbas - ponderou o mestre da latinidade, forçando as suas reminiscências romanas.
- Vamos - ponderou o Brasileiro, como quem vira pretexto de fazer novo discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade científica. - O enterrar nas igrejas é anti-higiénico; porque os químicos sabem que... o ar que não é puro... é mau para a saúde pública. Ora os cadáveres... em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o ar... Há uns insectozinhos invisíveis que a gente respira... e vão para a massa do sangue e corrompem-na... e o resultado é a febre... porque a febre são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e, se saem, muito bem; e, se não saem, ficam retidos e azedam o corpo todo.
A teoria fisiológico-patológica foi recebida com atenção igual à que merecera a económica.
- Tudo isso será assim - disse o padre - mas o conselheiro faz aquilo por instigações das lojas maçónicas e dos pedreiros livres.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
Miles
A crítica mais severa que se pode fazer à má música é que fica muito cara. Aquilo ouve-se uma vez - e está ouvido. O custo por minuto de audição é verdadeiramente astronómico.
O contrário disto é Highlights from the Plugged Nickel, gravado ao vivo em Dezembro de 1965 pelo melhor quinteto de Miles Davis (vejam só: Miles ele próprio, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams) e só editado trinta anos mais tarde.
Escuta-se e volta-se a escutar e descobre-se sempre novos motivos de interesse neste fascinante ponto de viragem no percurso criativo de Miles. É essa riqueza e complexidade que faz do melhor jazz autêntica música clássica. O jazz é a música de câmara do século XX.
O que é o latim
- Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode achar-se gosto em lê-los? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma vontade!... O latim!... A mais destemperada e desesperadora língua que se tem falado no mundo! Se é que se falou - acrescentou em voz baixa.
- Então duvida que se falasse latim? - perguntou Henrique, sorrindo.
- Eu duvido. Não sei como os homens se pudessem entender com aquela endiabrada contradança de palavras, com aquela desafinação que faz dar volta ao juízo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguém se lembra onde tem as suas coisas quando precisa delas e passa o tempo todo a procurá-las? Pois é o que é o latim.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
- Então duvida que se falasse latim? - perguntou Henrique, sorrindo.
- Eu duvido. Não sei como os homens se pudessem entender com aquela endiabrada contradança de palavras, com aquela desafinação que faz dar volta ao juízo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguém se lembra onde tem as suas coisas quando precisa delas e passa o tempo todo a procurá-las? Pois é o que é o latim.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
Sacudidela ao intelecto
- Pois sim: mas não deve meter-se a falar em coisas que não entende. As estradas não servem para nada! As estradas são meios de comunicação e... facilitam o... o... tráfego comercial e aumentam por conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho representa o capital... sim, senhores, mas... mas um capital... sim... um capital morto... quero dizer... um capital que... não vive... Quero dizer... sim... suponhamos: o crédito por exemplo... O crédito... sim... aí está o crédito... Pois que é o crédito... O crédito é... é o crédito... depende de muitas coisas... Por outra, suponhamos... se nós não tivéssemos estradas... Uma suposição... partamos de um princípio. A produção excede o consumo... Quero mesmo que o consumo exceda a produção... Sim, quero mesmo isso... Muito bem... Daí que resulta? Está claro que um desequilíbrio. E depois? Depois, boas noites... Não havendo estradas... Aí está que se diz por aí que a livre exportação, que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquilo... Pois não é assim. É preciso que se atenda também às condições económicas dos povos. Sim... eu digo: o comércio deve ser livre... Muito bem... Em termos, já as sabe... Mas... o comércio livre... a livre troca... entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu digo que... Ora suponhamos... suponhamos que não havia estradas... Os transportes eram mais difíceis e portanto mais caros... E, se além disso, os géneros fossem escassos, e... Diz vossemecê: para que servem as estradas? Ora diga-me uma coisa, Sr. Manuel: suponhamos que... os impostos indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer?
- Impostos, Deus me livre deles! - murmurou o lavrador, cujos instintos trepidaram à palavra «impostos».
- Isso também não é assim... Deus me livre! Não se diz «Deus me livre», porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra... isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a exploração... Percebe?... Ou... suponhamos... por exemplo... Não... vamos cá por outro lado... Há um déficite num orçamento... desce o preço das inscrições... Ora bem... Mas... suponhamos que há boas estradas, et coetera... A riqueza tende a aumentar... e... e... Enfim, lá que as estradas são úteis, isso é que não tem questão.
Toda esta lengalenga económica foi escutada pelo auditório com profunda atenção.
O Brasileiro, assinante e leitor infalível de vários periódicos políticos, conseguira, à força de leitura, fixar na memória certas frases do artigo de fundo, e acabara de convencer-se de que possuía grandes noções de ciência política. Em ocasiões como esta dava uma sacudidela ao intelecto, e aquelas frases, como os variados objectos do interior de um caleidoscópio, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saía uma dissertação, como essa que viram. A doença não é das mais raras entre políticos.
O Sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesuradamente e ruidosamente a boca, depois do discurso do Brasileiro, e disse:
- Eu cá por mim não sei dessas coisas. Não se me dava das estradas para poder ir à feira de Penafiel com menos trabalho, mas já disse, que me não venham mexer na quinta, porque então têm que ver.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
- Impostos, Deus me livre deles! - murmurou o lavrador, cujos instintos trepidaram à palavra «impostos».
- Isso também não é assim... Deus me livre! Não se diz «Deus me livre», porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra... isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a exploração... Percebe?... Ou... suponhamos... por exemplo... Não... vamos cá por outro lado... Há um déficite num orçamento... desce o preço das inscrições... Ora bem... Mas... suponhamos que há boas estradas, et coetera... A riqueza tende a aumentar... e... e... Enfim, lá que as estradas são úteis, isso é que não tem questão.
Toda esta lengalenga económica foi escutada pelo auditório com profunda atenção.
O Brasileiro, assinante e leitor infalível de vários periódicos políticos, conseguira, à força de leitura, fixar na memória certas frases do artigo de fundo, e acabara de convencer-se de que possuía grandes noções de ciência política. Em ocasiões como esta dava uma sacudidela ao intelecto, e aquelas frases, como os variados objectos do interior de um caleidoscópio, tomavam uma disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e assim lhe saía uma dissertação, como essa que viram. A doença não é das mais raras entre políticos.
O Sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesuradamente e ruidosamente a boca, depois do discurso do Brasileiro, e disse:
- Eu cá por mim não sei dessas coisas. Não se me dava das estradas para poder ir à feira de Penafiel com menos trabalho, mas já disse, que me não venham mexer na quinta, porque então têm que ver.
(Júlio Dinis, «A Morgadinha dos Canaviais»)
3.9.04
2.9.04
Diga-me, doutor
Ando há quase três anos a passear os euros na minha algibeira, mas, apesar deste longo período de sã e proveitosa convivência, continuo a fazer as contas em escudos.
Diga-me, doutor: isto é normal?
Diga-me, doutor: isto é normal?
Um grande bem-haja
Para que é que a gente há-de perder tempo a ler amadores, se alguém se encarregou já de compilar tudo o que de melhor de escreveu?
Este homem é um benemérito.
Este homem é um benemérito.
O que é o socialismo hoje?
Lenine costumava dizer que a social-democracia era política burguesa para operários - o que pode ser encarado como um elogio ou como um insulto, dependendo do modo como cada um valoriza a chamada política burguesa.
O que não se pode é negar algum fundamento a essa caracterização. Depois de se afastarem das suas origens marxistas, os partidos da 2ª internacional converteram-se em paladinos da moderação. E que moderavam eles? Pois moderavam, no essencial, os ímpetos revolucionários dos movimentos laborais reivindicativos inflamados pela retórica bolchevique.
No fundo, porém, os objectivos declarados de longo prazo dos socialistas não diferiam acentuadamente dos dos comunistas, na medida em que deveriam conduzir, a prazo, à socialização do sectores-chave da economia. Apesar se batiam por esses objectivos com mais jeitinho. Com tanto jeitinho que, na opinião dos comunistas, isso implicava adiar o seu cumprimento para um futuro indefinidamente longínquo.
Quando a ideologia comunista começou a entrar em decadência, muito antes ainda da queda do Muro de Berlim, os socialistas, deixando de ter uma esquerda para moderar, passaram a dedicar os seus melhores esforços a moderar a direita. Não serei eu a criticá-los por isso: porque era preciso, e porque sempre é melhor que nada.
Permanece porém, este facto, a meu ver indesmentível: a esquerda passou a ter uma postura puramente reactiva e deixou de ter um programa próprio. No essencial, ela vive da saudade, como exemplarmente se constata na chamada esquerda do PS, a qual, não tendo ideias diferenciadoras relevantes, se contenta em brandir orgulhosamente ícones inofensivos do seu passado glorioso, como sejam os cravos de Abril, o punho fechado e alguns poemas do Manuel Alegre.
Tanto quanto eu saiba, há só uma excepção no socialismo europeu, um só partido que demonstrou capacidade para se desembaraçar de um lastro inútil de lugares comuns e palavras de ordem vazios e de avançar com uma plataforma de esquerda relevante para o mundo de hoje. Estou a falar, obviamente, do execrado New Labour de Tony Blair, cuja reputação piorou ainda mais um pouco com o infeliz apoio do seu governo à guerra do Iraque.
Voltarei a este assunto.
O que não se pode é negar algum fundamento a essa caracterização. Depois de se afastarem das suas origens marxistas, os partidos da 2ª internacional converteram-se em paladinos da moderação. E que moderavam eles? Pois moderavam, no essencial, os ímpetos revolucionários dos movimentos laborais reivindicativos inflamados pela retórica bolchevique.
No fundo, porém, os objectivos declarados de longo prazo dos socialistas não diferiam acentuadamente dos dos comunistas, na medida em que deveriam conduzir, a prazo, à socialização do sectores-chave da economia. Apesar se batiam por esses objectivos com mais jeitinho. Com tanto jeitinho que, na opinião dos comunistas, isso implicava adiar o seu cumprimento para um futuro indefinidamente longínquo.
Quando a ideologia comunista começou a entrar em decadência, muito antes ainda da queda do Muro de Berlim, os socialistas, deixando de ter uma esquerda para moderar, passaram a dedicar os seus melhores esforços a moderar a direita. Não serei eu a criticá-los por isso: porque era preciso, e porque sempre é melhor que nada.
Permanece porém, este facto, a meu ver indesmentível: a esquerda passou a ter uma postura puramente reactiva e deixou de ter um programa próprio. No essencial, ela vive da saudade, como exemplarmente se constata na chamada esquerda do PS, a qual, não tendo ideias diferenciadoras relevantes, se contenta em brandir orgulhosamente ícones inofensivos do seu passado glorioso, como sejam os cravos de Abril, o punho fechado e alguns poemas do Manuel Alegre.
Tanto quanto eu saiba, há só uma excepção no socialismo europeu, um só partido que demonstrou capacidade para se desembaraçar de um lastro inútil de lugares comuns e palavras de ordem vazios e de avançar com uma plataforma de esquerda relevante para o mundo de hoje. Estou a falar, obviamente, do execrado New Labour de Tony Blair, cuja reputação piorou ainda mais um pouco com o infeliz apoio do seu governo à guerra do Iraque.
Voltarei a este assunto.
Crónica desfasada
Por sugestão de Samuel Butler (ver post de dia 30), vinda directamente de além túmulo, resolvi-me finalmente a dizer qualquer coisinha sobre a final da Super Taça Europeia.
O que se viu foi isto:
1.O Porto criou perigo praticamente sempre que atacou, mas praticamente não atacou.
2.O Porto raramente dominou o meio-campo. Desistiu de construir jogadas com princípio, meio e fim, limitando-se a pontapear directamente a bola da saída da sua área para a área adversária.
3.O Valência controlou quase inteiramente o jogo. O resultado lógico teria sido três a zero a seu favor.
Os comentadores que li adiantaram explicações que não colhem, tais como o atraso da preparação e a falta de tempo do novo treinador para preparar a equipa. A minha interpretação é diferente:
1.O Porto jogou com dois pontas-de-lança, coisa que não costumava fazer, nem nenhuma equipa deve fazer se não tiver dois jogadores excepcionais nessa posição (Ronaldo e Raúl por exemplo). Com isto, ficou com um jogador a menos no meio campo. Não vi ninguém observar que isto, mais o pontapé para a frente era precisamente o esquema de jogo que o Del Neri procurava implantar.
2.Ao jogar sem extremos, também ninguém deu apoio aos laterais nas tarefas defensivas, razão pela qual o Valência pôde sempre atacar com rapidez e perigo pelas alas.
3.Para piorar ainda mais as coisas, Costinha e Maniche postaram-se os dois à frente da defesa (como Scolari sempre quis e Mourinho nunca permitiu), o que, para além de ser desnecessário, consumou o fraccionamento da equipa e a estendeu desnecessariamente no terreno.
Desculpa-se Victor Fernandez pelo facto de não ter tido tempo para preparar a equipa. Mas um tipo que, apesar de não ter tempo, quer ganhar , não se põe a fazer experiências numa final. Deixa a equipa jogar como ela sabe.
Espero estar enganado, mas o que eu vi foi delnerismo sem Del Neri.
O que se viu foi isto:
1.O Porto criou perigo praticamente sempre que atacou, mas praticamente não atacou.
2.O Porto raramente dominou o meio-campo. Desistiu de construir jogadas com princípio, meio e fim, limitando-se a pontapear directamente a bola da saída da sua área para a área adversária.
3.O Valência controlou quase inteiramente o jogo. O resultado lógico teria sido três a zero a seu favor.
Os comentadores que li adiantaram explicações que não colhem, tais como o atraso da preparação e a falta de tempo do novo treinador para preparar a equipa. A minha interpretação é diferente:
1.O Porto jogou com dois pontas-de-lança, coisa que não costumava fazer, nem nenhuma equipa deve fazer se não tiver dois jogadores excepcionais nessa posição (Ronaldo e Raúl por exemplo). Com isto, ficou com um jogador a menos no meio campo. Não vi ninguém observar que isto, mais o pontapé para a frente era precisamente o esquema de jogo que o Del Neri procurava implantar.
2.Ao jogar sem extremos, também ninguém deu apoio aos laterais nas tarefas defensivas, razão pela qual o Valência pôde sempre atacar com rapidez e perigo pelas alas.
3.Para piorar ainda mais as coisas, Costinha e Maniche postaram-se os dois à frente da defesa (como Scolari sempre quis e Mourinho nunca permitiu), o que, para além de ser desnecessário, consumou o fraccionamento da equipa e a estendeu desnecessariamente no terreno.
Desculpa-se Victor Fernandez pelo facto de não ter tido tempo para preparar a equipa. Mas um tipo que, apesar de não ter tempo, quer ganhar , não se põe a fazer experiências numa final. Deixa a equipa jogar como ela sabe.
Espero estar enganado, mas o que eu vi foi delnerismo sem Del Neri.
Pão pão, queijo queijo
Há muitos portos por esse mundo fora - porto disto, porto daquilo, porto daqueloutro - mas, que eu saiba, só há um porto que se chama mesmo Porto.
Pode ser falta de imaginação, ou vontade de chamar os bois pelos nomes. Quem quiser desfazer esta dúvida, pode começar por aqui.
Pode ser falta de imaginação, ou vontade de chamar os bois pelos nomes. Quem quiser desfazer esta dúvida, pode começar por aqui.
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