17.6.08

De derrota em derrota até à vitória final

Nós, os bons europeus, não temos razões para nos alegrar com o resultado do referendo irlandês, porque, na ausência do Tratado de Lisboa, ganham aqueles que gostariam de transformar a União Europeia num mero espaço de comércio livre ao jeito da defunta EFTA. Vocês sabem de quem estou a falar.

Mas também não temos razão para nos carpirmos, não só porque o Tratado consagraria o domínio de um pequeno grupo de países sobre o conjunto da União, como também porque instâncias importantes de poder permaneceriam totalmente fora do controlo do Parlamento Europeu.

A via Sarkozy para a reforma europeia - parlapatice, cosmética e bullying - é inaceitável, pelo que é tempo de considerar as alternativas.

A primeira questão importante é esta: reforma para quê? O argumento dominante tem sido tecnocrático: trata-se de simplificar os procedimentos para acomodar a entrada de novos membros, de modo que acabariam, por exemplo, as presidências rotativas e a distribuição dos comissariados por todos os países membros. É natural que isto não só não entusiasme ninguém como desperte desconfiança em muitos, entre os quais me incluo.

Para mim, o essencial é democratizar a União Europeia, acabando com os poderes não eleitos nem responsáveis perante os representantes dos eleitores. Isso implica duas coisas: criar um verdadeiro Estado europeu, e construi-lo segundo o modelo federal.

A forma mais óbvia de fazê-lo consistiria em eleger uma Assembleia Constituinte e encarregá-la de redigir um projecto de Constituição Europeia. Os países que a adoptassem passariam a reger-se por ela, os restantes seriam convidados a assinar acordos de associação.

Recorde-se que, em 2001, 77% dos europeus declararam-se a favor de uma Constituição Europeia. Sendo assim, por que é que isso não se faz? Fundamentalmente, porque o projecto de uma Europa de cidadãos foi preterido em favor de uma Europa de estados, de modo que as posições em confronto não são as dos partidos, mas as dos países. A França acha isto e o Reino Unido acha aquilo, mas o Partido Socialista e o Partido Popular Europeu não acham nada.

Estamos muito longe - talvez cada mais longe - da Constituição Europeia e da Europa federal, porque não há literalmente nenhuma movimentação política de relevo orientada para esse propósito. De nada vale um objectivo sem uma estratégia para lá chegar.

Miguel Portas defendeu há dias, em nome do Bloco de Esquerda, que o próximo Parlamento Europeu, a eleger em 2009, deverá ser investido de poderes constituintes. Mas como podemos levar a sério uma tal declaração vinda de um partido que não só tem uma atitude ambígua em relação à União Europeia, como recusa por princípio dois dos seus traços centrais, a saber os princípios do comércio livre e da livre circulação dos trabalhadores?

Entre nós, os comunistas e os bloquistas fazem todos os dias propaganda contra a própria ideia da União Europeia, quando é absolutamente evidente que são os trabalhadores quem mais tem a ganhar com uma Europa federal e democrática.

É também esta falta de seriedade e esta estreiteza de vistas que, de momento, nos impede de ir mais longe.

14 comentários:

Anónimo disse...

Estes últios tratados, o constitucional e o de Liboa, consagram um aprofundamento político da UE e a grande questão é se os países o querem ou se apenas preferem que se mantenha uma organização predominanemente económica. No primeiro caso concordo e defendo o mesmo.

Luis M. Jorge disse...

Bom texto.

O problema é que a partir do momento em que se assumisse que se queria construir um verdadeiro Estado europeu, começava a confusão. A inglaterra e os nórdicos saltavam logo do barco (e não seria eu a condená-los), uma boa dezena de outros ficavam periclitantes (holanda, irlanda, Polónia), e arriscávamo-nos a ter uma "federação" retalhada entre a Alemanha, a península Ibérica e aguns estados pequenos do centro da europa e do leste — coisa improvável, já se vê.

Desde o início que me parece que o grande problema desta construção europeia é o voluntarismo: eles querem porque querem fazer a Europa, mas são incapazes de nos explicar porquê.

O que falta fazer, na europa, não necessita de instituições novas (com a excepção provável da politica externa)

Para os trabalhadores europeus terem liberdade de movimentos não é preciso mudar as instituições.

Para acabar com a PAC também não.

Para proteger os cidadãos contra a pobreza também não.

Então precisamos de mais europa para quê?

Ainda não consegui perceber. Nem eu, nem pelos vistos os ingleses, os suecos ou os holandeses.

No entanto, desconfio de uma coisa: os grandes "construtores" da Europa parecem ser hoje em dia os países que gostariam de impôr limítes aos modelos económicos mais bem sucedidos do continente.

Num certo sentido, julgo que a construção europeia se transformou quase só num ideal protecionista e regulamentador da economia, que serve para proteger "campeões" nacionais e sectores de actividade anquilosados. E isso preocupa-me muitíssimo.

Enquanto não me convencerem do contrário também hei-de votar contra. E uma coisa é certa: era mesmo bom que tentassem convencer-nos a sério. Ou então a coisa ainda acaba mal.

Sibila Publicações disse...

Estado Federal, já.

Uma boa razão para uma Europa Unida seria a harmonização fiscal, só para ficar no primeiro exemplo, e mais óbvio. Já unificaram a moeda, estão à espera de quê? Harmonização, já, e muita.

João Pinto e Castro disse...

É natural que a "Inglaterra" não queira uma Constituição, até porque o país é basicamente governado pela imprensa tablóide. Mas também é possível que a Escócia venha a ter uma opinião diferente. Não sei o que é isso dos "modelos económicos mais bem sucedidos do continente", e suponho que nos próximos dois anos muito mais gente irá interrogar-se sobre isso à medida que a propaganda que nos foi servida se for esboroando à vista de todos.

João Pinto e Castro disse...

Outra coisa, Luis, a confusão de que falas chama-se política.

Luis M. Jorge disse...

1.

João, o Economist e o Financial Times dificilmente se podem considerar imprensa tablóide embora alguns franceses sejam capazes de sugerir tudo. E sim, estava a referir-me à Grã-Bretanha, mas não deves exigir rigor aos teus comentadores se lhes pretendes responder com caricaturas.

2.

Não sei em que é que isso altera o meu raciocínio, mas é verdade que a essa "confusão" podiamos chamar "política". E se for mesmo grande, talvez até possamos chamar-lhe "democracia".

Não basta a alguém querer ser pastor para encontrar um rebanho.

Luis M. Jorge disse...

E para que não fique ignorado o essencial do meu comentário: ainda não consegui perceber porque é que precisamos de mais Europa, João.

João Pinto e Castro disse...

Luis, alguns dias em Londres chegam para perceber que quem faz a opinião pública é o Sun, não o FT nem sequer o Independent. O nível geral é de facto do mais baixo que conheço.

João Pinto e Castro disse...

Precisamos de uma Europa federal porque essa é a única forma de o nosso regime ser democrático. O actual não satisfaz os requisitos mínimos visto que cada vez mais decisões escapam ao escrutínio dos eleitores. Vivemos em regime de ditadura burocrática benigna - até ver.

Luis M. Jorge disse...

1. "alguns dias em Londres chegam para perceber que quem faz a opinião pública é o Sun, não o FT"

E alguns minutos na câmara dos comuns chegam para perceber que o debate político deles é muito mais profundo que o nosso.

2. "Vivemos em regime de ditadura burocrática benigna - até ver."

Nesse caso talvez fosse melhor desmantelar as instituições europeias em vez de as fortalecer.

3. Ainda aqui estou porque considero esta nossa discussão bem representativa do modo como tem estado a ser feita toda a discussão sobre assuntos europeus. Aparentemente, os recursos dos europeistas são sempre iguais:

- desqualificar o adversário — porque não usa os vocabulos certos, ou porque é governado pelos "tablóides"
- promover um wishful thinking descontrolado — os sucessos económicos dos outros (Grê-Bretanha) são "propaganda" e os "dois próximos anos" (ou o próximo século) é que nos vão dar razão
- explicar o mínimo, recorrendo a boutades: a "ditadura benigna", a "política"
- não reconhecer margem de manobra a quem tem dúvidas

E no fim de tudo concluir que só temos um remédio: dizer sim e calar.

Ou seja, parece-me que os nossos europeistas não precisam de uma nova "constituição", precisam é de uma lição de humildade. Mas não são os únicos. E em qualquer caso, não tardaram muito a recebê-la.

João Pinto e Castro disse...

Só um último comentário para dizer, Luis, que pelo menos numa coisa me interpretaste mal. Não pretendi "desqualificar o adversário", muito menos a ti. Acho que o problema veio de eu ter posto Inglaterra entre aspas, mas a intenção não era a que imaginaste, antes insinuar que na Inglaterra nem toda a gente recusa a Constituição Europeia (segundo as sondagens, uma maioria concorda).

Finalmente, se concluiste que eu acho que deveriamos "dizer sim e calar", então exprimi-me muito mal.

Sibila Publicações disse...

A verdade é que 25 estruturas de poder rendem muito mais cabides de emprego e benesses aos aparelhos do que uma. Que vai ser eleita um dia uma Assembleia Constituinte – a solução mais democrática, a menos que não se concorde com uma Constituição Européia – isso já todos sabem. Mas deixa lá para as próximas gerações, enquanto for possível empatar, empata-se. Esta é a mentalidade.

Luis M. Jorge disse...

Ainda hoje, no Público, o Jorge Miranda, que foi meu professor de ciência política e percebe mais destas coisas do que qualquer pessoa que eu conheça, alertava para o facto de a atitude dos governantes portugueses perante o resultado do referendo irlandês estar a diminuir a margem de manobra dos países pequenos para aceitarem (ou não) livremente os mecanismos propostos nesta constituição.

Ou seja, segundo ele deviamos estar a proteger o direito de a Irlanda dizer não, em vez de estarmos a forçar uma saída airosa que no futuro também servirá para nos "apertar".

Eu sei que o teu texto não ia nesse sentido, apenas defendo que a cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a alguém.

O Eduardo Pitta no da Literatura (quem me dera que tivesse caixa de comentários) sugeriu que a Irlanda devia ir "à sua vida" — mas não percebeu que isso que ele quer aplicar a irlanda é o mesmo que um dia nos irão querer impôr a nós (mas nunca à Alemanha ou à França, evidentemente).

De qualquer modo repito que gostei bastante do post, que sem dúvida coloca questões interessantes ao nosso tristonho e mortiço debate europeu.

Sibila Publicações disse...

A questão é se não há cautela e caldos de galinha a mais no debate europeu. Não será por isso que a Europa avança a passos de cágado?