16.6.13

A carta que nunca te escrevi.


O nosso João nasceu em 8 de Agosto de 1950, no Porto, cidade que sempre fez parte da sua identidade. 
No dia em que nasceu, o seu pai, o Engenheiro Francisco Almeida e Castro, Presidente da CP, homem pelo qual sempre nutriu a mais profunda admiração e respeito, estava nos Estados Unidos, num comboio a caminho de Chicago, preso durante dias numa tempestade de neve, viagem essa que resultou na introdução em Portugal da primeira locomotiva diesel.

Era ainda criança quando a família se mudou para Lisboa, cidade que amou profundamente, e onde cresceu e viveu quase toda a sua vida.
O Zinho, como a família sempre o chamou, corria e brincava na zona da Av. Roma e frequentou o Liceu Camões onde foi um aluno exemplar.
Enquanto jovem revelou ter um assinalável jeito para o desenho e um sentido estético apurado que facilmente poderia tê-lo levado a ter se tornado num grande artista plástico, facto facilmente comprovável pelos seus inúmeros desenhos e pequenas pinturas que há poucos anos reencontrei, arrumados numa velha caixa.

Educado em piano clássico por uma querida professora que mais tarde veio ser também minha e da minha irmã, a música sempre teve uma importância enorme para ele. Na nossa casa a música inundava constantemente o espaço, paixão visível pela forma como coleccionava LP’s, como se fossem a banda sonora da nossa felicidade.

Foi já na Faculdade de Economia que conheceu a senhora minha mãe, mulher carinhosa e de forte carácter, que desde o primeiro momento amou de forma sempre leal e honesta. Juntos partilharam as alegrias e dificuldades da vida, próprias de um jovem casal. 

Enquanto estudantes, envolveram-se activamente na luta política contra o regime fascista, da qual não faltam histórias absolutamente fantásticas algumas que ele próprio nos contou e outras que ainda vou descobrindo nos relatos de alguns dos seus bons amigos.

Várias vezes teve a grandeza de agir de forma contra-intuitiva, em nome da liberdade de pensamento que sempre defendeu com unhas e dentes.

3 anos após a revolução, teve o seu primeiro filho, eu, e passados 3 anos teve uma filha, a menina dos seus olhos, a minha irmã Inês.
Connosco sempre tratou de forma carinhosa, sempre um bom pai, sempre nos deu todas as oportunidades. 


O seu percurso profissional levou-o ao Marketing e à Publicidade, passando pela Direcção de Marketing de grandes empresas internacionais como a Ogilvy e a Wunderman e culminando na criação de uma Agência de sucesso, a Interact e mais recentemente na Ology, onde tive a enorme sorte de trabalhar a seu lado.

Guardo com muito carinho e saudade estes últimos 3 anos que passámos juntos, diariamente, e em que tanto me ensinou. Feliz circunstância essa em que, no auge da crise, perdi o meu emprego em Londres, o que me trouxe de volta a Portugal, de volta ao meu Pai e à senhora minha Mãe. Feliz circunstância essa que me permitiu este período em que reaprendi a estar com eles, a valorizá-los mais e a encontrá-los, em mim.

Possuidor de uma cultura absolutamente enciclopédica, que toda a vida alimentou consumido livros, música e cinema a uma velocidade estonteante, o João tornou-se conhecido na sua vida profissional pela verticalidade de princípios, pelo imenso respeito pelos outros, pelo seu altruísmo militante e pelo compromisso absoluto de continuamente se superar enquanto homem.

Era um homem pacifico, mas nunca conformado, sempre exigente com a vida e com os outros na mesma proporção em que era exigente consigo próprio. 
De entre as suas excepcionais qualidades sempre me impressionou a sua capacidade de sintetizar assuntos complicadíssimos, de resolver a complexidade sem qualquer esforço aparente. Como um artista que resolve tudo com um só gesto.

Sempre cuidado na sua presença, sempre ponderado nas suas palavras, o João era um verdadeiro alquimista no uso da palavra. 
Apreciava o discurso da mesma forma que sabia apreciar o silêncio.
Sabia ouvir os outros, era tolerante, e aceitava a diferença como ninguém.
Não se impunha, entendia e respeitava o espaço de cada um.
Era um grande conversador, um verdadeiro contador de histórias.
Vamos ter muitas saudades de o ouvir e de o ler. 
Da sua voz e da alegria que disponibilizava em tudo o que fazia.

Era um homem que amava ensinar e que se envolvia como um pai no percurso dos muitos alunos que tiveram a sorte de o ter como professor. Sei agora como essa forma de se relacionar com os alunos era apreciada e por isso reciproca.

O João era um homem que nunca se demitiu das suas responsabilidades.
Há uns dias, pedi-lhe que delegasse em mim os compromissos profissionais que o apoquentavam.  E ele disse: “ Não filho, em Julho, quando eu estiver melhor, eu próprio tratarei dos assuntos pendentes e de ver os trabalhos dos meus alunos.”

Na fase final da sua doença, é assinalável o enorme prazer que retirava das visitas dos seus amigos. As conversas com os amigos pareciam um remédio milagroso, e não fora o cansaço físico dir-se ia que estava encontrada a cura que o traria de volta.

Faltam-me as palavras para descrever a forma incrível como se manteve lúcido até aos últimos dias em que a vida o traiu. Impressionou-nos a forma como nunca se queixou da sua má sorte. Como manteve sempre a sua elevação e o seu acutilante sentido de humor. 

No meu aniversário, no passado dia 5 de Junho, ele estava, fraco, deitado numa cama de hospital, e eu aproximei-me dele e disse-lhe:
“Parabéns querido pai, faz hoje 36 anos que me tiveste. Lindo serviço!” 
Ao que ele me respondeu na sua doce e já algo debilitada voz: 
“Sabes André, foi o que se pôde arranjar.”

O nosso João nunca desistiu de viver. Caiu de pé como todos os grandes homens.
Defendeu as muralhas da cidade como ninguém, lutando como um herói, pronto a dar tudo pela sua família, pelos seus amigos e por tudo aquilo em que acreditava.
Nunca falou da morte talvez por não acreditar nela. 
Nunca mostrou uma pinga de medo. 
E isso é para mim a verdadeira imortalidade.

Da enorme tristeza de o ver partir, sobra-nos o alivio que sentimos de saber do fim do seu sofrimento e resta-nos a eterna saudade. 
É hoje nossa obrigação manter a sua memória viva aprendendo com ele a viver a vida até ao último momento, sempre com a máxima dignidade e amor pelo próximo.

Esta é a carta que nunca te escrevi.

Até já querido amigo,
André Castro


15.6.13

Professor Doutor João Manuel Pinto e Castro 08/08/1950 – 14/06/2013



Sua mulher Maria Regina Lourenço Ferreira, seus filhos André Ferreira e Castro e Inês Ferreira de Castro, sua mãe Maria Alice Torres Pinto de Castro, sua irmã Maria Leonor Pinto e Castro e demais família, participam o falecimento do seu ente querido na sequência de doença prolongada.

17.4.13

Queimar dinheiro na praça pública

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Depois de ler o meu artigo de ontem no Negócios, um amigo fez-me chegar um extracto de algo que encontrou no New Statesman:
This year’s initiation ceremony to join the Bullingdon Club, disclosed an Oxford student who has a chum in that oafish society, was to burn a £50 note in front of a beggar.
Queimar o dinheiro que se diz não haver na cara de quem mais dele precisa parece fazer parte do zeitgeist.
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8.4.13

O que significa sair do euro?

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Após a conclusão do acordo de resgate a Chipre, foi instituído na ilha o controlo de capitais, o que significa que as pessoas e as empresas não podem transferir livremente euros de ou para o estrangeiro.

As PMEs italianas muito dificilmente conseguem hoje obter financiamento a taxas inferiores a 10%; do outro lado da fronteira, na Áustria, o crédito custa metade desse preço.

O estado português financia-se - quando consegue financiar-se - a taxas não inferiores a 6%; em contrapartida, a Alemanha consegue financiamento a 1%.

A ideia de que a saída do euro é um acontecimento instantâneo e que se trata de uma opção de "tudo ou nada" revelou-se equivocada, como estes três exemplos demonstram.

Não se sai do euro - vai-se saindo. O que torna essa perspectiva simultaneamente mais provável e menos dramática.

Última hora: o eventual  pagamento do subsídio dos funcionários públicos com títulos da dívida é mais uma forma de começar a sair do euro sem grandes fanfarras, porque equivale à emissão de dinheiro numa moeda cujo valor estará indexado à capacidade esperada de o país pagar a sua dívida.
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6.4.13

A defensiva estratégica na resistência à troika



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Quando Aníbal invadiu a península itálica e impôs uma série de derrotas humilhantes às legiões romanas, Fabius Maximus foi designado ditador com poderes ilimitados para assegurar a salvação da pátria.

Mas Fabius optou pela estratégia impopular de evitar o confronto directo com o inimigo, preferindo segui-lo à distância, dificultar-lhe os abastecimentos e as comunicações e atacá-lo apenas em pequenos recontros de cada vez que uma parte das suas forças se deixava isolar. Isso valeu-lhe a alcunha de “Cuntactor” (contemporizador) e motivou não poucos conflitos com oficiais que, embora nominalmente sob as ordens, optaram, sempre com resultados trágicos (mormente na batalha de Canas), por desobedecer-lhe.

No final, porém, a estratégia de defesa activa de Fabius acabou por obrigar o enfraquecido e desmoralizado exército de Aníbal a retirar para o Norte de África.

Uns dois mil anos depois, os generais Barclay de Tolly, primeiro, e Kutuzov, depois, repetiram com êxito o estratagema de Fabius perante o exército napoleónico que, no Verão de 1812, atravessou o rio Nieman e avançou sobre Moscovo. Aplicando uma política de terra queimada, o exército russo recuou continuamente à frente de Napoleão, frustrado por não lograr uma batalha decisiva e obrigado a caminhar por um território deserto abandonado pelas populações, tornando muito difícil o dia a dia dos seus 285 mil homens.

Quando a Grande Armée se encontrava já consideravelmente enfraquecida, Kutuzov aceitou travar batalha em Borodino. Após um resultado inconclusivo, o exército russo continuou a retirar, abandonando inclusive Moscovo ao invasor. O caos que se seguiu obrigou à retirada precipitada de Napoleão em pleno Inverno, sendo o seu exército metodicamente dizimado e perseguido até Paris.

Já no século XX, Mao teorizou os princípios da defensiva estratégica nos seus escritos militares. Tanto na guerra contra o Kuomintang como, poucos anos depois, na guerra contra a invasão japonesa, foi forçado a reconhecer que a fragilidade dos seus efectivos, a insuficiência do seu equipamento e a vulnerabilidade da sua posição o impediam de bater-se frontalmente contra o inimigo. Nessas condições, inspirou-se em Sun Tzu para caracterizar a estratégia mais indicada: “O inimigo ataca, nós recuamos; o inimigo pára, nós flagelamo-lo; o inimigo cansa-se, nós atacamos; o inimigo cansa-se, nós perseguimo-lo.”

Portugal encontra-se numa situação de grande fragilidade política e financeira perante os seus principais parceiros internacionais. Aderiu ingenuamente a uma zona monetária mal concebida que, em vez de o proteger perante as tempestades internacionais, o condena a ainda maiores penas. Não estava nem está ainda em condições de recusar liminarmente as condições do resgate que foi forçado a pedir em 2011. Nenhum dos seus mais importantes parceiros europeus está disponível para defender uma solução diferente. A narrativa moralista e punitiva da Alemanha é todos os dias imposta sem contraditório. Extravasando as suas competências, o BCE permite-se ditar opções políticas aos países membros. Os países em dificuldades têm relutância em assumir posições comuns. Finalmente, a opinião pública europeia permanece em larga medida alheada destes problemas, em parte por sentir que a sua voz não conta.

Manifestamente, Portugal não dispõe de grandes trunfos neste confronto com forças incomparavelmente mais poderosas. Significará isto que não há nada a fazer?

Sustento que a alternativa é entre a capitulação e a resistência. A teoria e a prática da capitulação é ilustrada na perfeição pelo comportamento do governo português nos últimos dois anos. A total identidade de pontos de vista entre Vítor Gaspar e a troika assegura que a receita definida em conjunto pela UE, pelo BCE e pelo FMI é aqui aplicada na sua versão mais extrema. “Ir além da troika” significa, na prática, que as condições impostas a Portugal são mais graves do que as aplicadas à Grécia, à Irlanda, à Espanha, à Itália ou a Chipre. Não pode haver negociação pela simples razão de que o ministro das finanças português partilha por inteiro as concepções da troika.

Poderia ser diferente? Note-se, primeiro, que, com excepção de Portugal, nenhum – repito: nenhum – dos países sob assistência fez tudo aquilo que a troika lhe mandou fazer. A Irlanda, por exemplo, frequentemente apresentada como um caso exemplar, não só não procedeu à privatização do seu sector eléctrico, como nem sequer separou a produção da distribuição – medidas explicitamente exigidas no respectivo memorando de entendimento.

Depois, os governos desses países não se coíbem de criticar publicamente a concepção dos programas implantados pela troika e de exigir melhores condições. Inversamente, Gaspar critica em voz alta como irrealistas as iniciativas da Irlanda que poderiam também beneficiar-nos a nós.

Finalmente, tanto a Espanha como a Itália se uniram internamente para impedir a declaração oficial de um resgate, camuflando-o sob vestes que, sendo em parte formais, não deixam de ser menos humilhantes e atentatórias dos direitos dos seus povos.

Em resumo, apesar das condições de debilidade prevalecentes, é possível fazer-se muito mais e melhor – desde que se queira.

Por outro lado, Portugal tem algumas cartas que pode e deve jogar. Sendo membro do Conselho de Segurança da ONU, o seu voto tem relevância para a UE; porém, no caso da admissão da Palestina na UNESCO, o país submeteu-se prontamente à vontade dos alemães sem obter nada em troco. Algo semelhante se passa na NATO: apesar de traído pelos seus aliados, Portugal continua a despender recursos escassos com a sua presença militar no Afeganistão e na Bósnia, quando poderia legitimamente retirar-se invocando as dificuldades financeiras criadas pela teimosia da troika. Chama-se a isto fazer política internacional, algo que Paulo Portas deve achar muito cansativo.

Apesar de a situação permanecer desfavorável, é indiscutível que tendeu a melhorar no último ano, principalmente porque a política de austeridade favorecida pela Alemanha e pelo Partido Popular Europeu se encontra cada vez mais descredibilizada, dado que não só a saída da crise foi adiada, como a UE voltou a entrar em recessão a partir de meados de 2012.

Cada vez mais vozes autorizadas – incluindo as de Olivier Blanchard e Paul de Grawe – criticam a punição sem sentido a que Portugal está a ser submetido e demonstram que, se não ocorrerem modificações de fundo na atitude da UE, a estagnação e o desemprego não têm fim à vista. Além disso, aumentando os riscos de catástrofe em grandes economias europeias e de contágio a cada vez mais países, incluindo alguns do centro, até Christine Lagarde, Durão Barroso e Mario Draghi procuram distanciar-se de Angela Merkel.

Por outras palavras, a causa da troika perde adeptos na mesma medida em que a nossa ganha apoios. Pode-se legitimamente esperar que o tempo jogue a nosso favor.

Entretanto, a estratégia adequada à nossa presente circunstância continua a ser a defensiva estratégica, ou seja: recuar quando o inimigo avança; conspirar quando se detém; moer-lhe o juízo quando procura descansar; desacreditá-lo quando comete erros ridículos; persegui-lo quando se mostra desorientado; exigir a renegociação quando se torna evidente para todos que não sabe o que anda a fazer. Um dia, com muita persistência, chegará finalmente a hora de passar à ofensiva estratégica.

Tudo isto exige, porém, como condição prévia, um povo unido em torno de uma ideia do que tem direito a exigir, a começar pelo respeito pela sua vontade livremente expressa através do voto.

Fim da segunda lição sobre como fazer face à troika.
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5.4.13

Tempo de balanço

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Conjecturo a existência de uma correlação negativa entre o número de economistas portugueses doutorados nos EUA e o crescimento do nosso PIB per capita. Por outras palavras, quantos mais economistas dessa extracção temos, pior se comporta a economia portuguesa.

Qualquer pessoa sensata dirá que se trata de uma correlação espúria. Eu, porém, que não tenho que fingir sensatez quando escrevo num blogue, não estou tão seguro disso.

Ora vejamos. Ao longo do século XX a economia portuguesa recuperou uma boa parte do seu atraso em relação ao núcleo dos países europeus mais desenvolvidos.

Eis senão quando, a partir da década de 80, um escol de economistas portugueses recém-regressados ao país após o seu doutoramento na América veio explicar-nos que até aí tínhamos feito tudo errado e que eles é que sabiam o caminho para uma prosperidade para além dos nossas mais loucos fantasias.

Como por cá valorizamos muito o que vem “lá de fora”, muitas dessas pessoas lograram alcandorar-se rapidamente a lugares de destaque no governo, na administração pública, no banco central e na academia, o que lhes concedeu a oportunidade de porem em prática as suas ideias.

O que eles fizeram basicamente foi combater o chamado “intervencionismo estatal”, na convicção de que o livre jogo dos mercados encontraria automaticamente as melhores soluções para assegurar o crescimento para todos. Por outras palavras: nada de entraves ao comércio externo, nada de limitações aos movimentos de capitais, nada de política cambial, nada de política industrial, comercial ou agrícola, nada de promoção de novas actividades económicas, nada de selecção de sectores estratégicos para investimento, nada de empresas públicas, nada de intervenção directa do estado na economia, nada de regulação dos mercados de trabalho. A lista poderia continuar, mas creio que já ficou claro o receituário dos economistas da escola “não te rales”.

O advento do Mercado Único e do Sistema Monetário Europeu deram a esta corrente o apoio externo de que precisava para se impor sem contestação, de modo que, desde então, o país prescindiu voluntariamente de praticamente todos os instrumentos de política económica que contribuíram durante mais de oito décadas para a prosperidade da economia portuguesa.

Passados vinte anos, dir-se-ia que já vai sendo tempo de se fazer um balanço, não?
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4.4.13

A virtude do Norte

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Após constatar que em vários países europeus existe uma narrativa popular que opõe, dentro de cada um deles, o norte ao sul, sendo o primeiro sinónimo de trabalho, seriedade e progresso e o segundo de ócio, despreocupação e atraso, Theodor Adorno confrontou este mito com duas pequenas dificuldades.

Em primeiro lugar, como explicar a virtude do norte italiano, se ela está ao sul da negligência do sul alemão?
Em segundo lugar, como explicar que em vários casos, de que valem como exemplos a Grã-Bretanha e Portugal, o sul é mais desenvolvido do que o norte?
Adorno não tenta sequer resolver o paradoxo, deixando-nos por conseguinte o encargo de pensar melhor no assunto.
Sabe-se que, no hemisfério norte, existe uma elevadíssima correlação entre latitude e produto per capita, sugerindo que a geografia conta muito na explicação de níveis díspares de desenvolvimento.
Todavia, o que Adorno faz notar é que o preconceito anti-meridional ocorre mesmo quando tal correlação inexiste.
Isso leva-me a pensar que a valorização ética do norte é no essencial do domínio do simbólico. Os infelizes povos do norte, castigados com invernos mais rigorosos e privados durante boa parte do ano da luz e do calor, tendem a fantasiar o sul como uma espécie de paraíso terrestre onde todos são eternamente felizes e abundantes fluem o leite e o maná.
Em contrapartida, consolam-se acreditando que o seu sofrimento lhes assegura, nesta vida, o monopólio da virtude, e, na outra, quem sabe se um lugar privilegiado à direita de Deus Pai.
O fundo do mito do sul preguiçoso por contraste com o norte industrioso proviria, assim, do ressentimento ou da inveja.
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Olhar para o lado errado

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Uma das coisas que mais confusão me fazem nas discussões sobre as políticas dos governos de Sócrates antes da eclosão da crise internacional, ou seja até 2008, é a excessiva ênfase colocada nos temas financeiros.

Quem conhece e respeita os números dificilmente pode aceitar as acusações de "despesismo". Em primeiro lugar, nunca o controlo das contas públicas foi tão efectivo em Portugal como nesses anos. Em segundo, o investimento público situou-se a níveis historicamente baixos e com tendência para baixar. Finalmente, o acréscimo do défice em 2009 em mais de 6 pontos percentuais deveu-se em cerca de 80% à quebra das receitas fiscais, tendo o resto a ver sobretudo com o aumento das prestações sociais decorrente da recessão, principalmente o subsídio de desemprego.

Em conclusão, eu diria que não há muito a criticar do lado da política financeira dos governos Sócrates e que o desempenho de Teixeira dos Santos merece nota 18.

Inversamente, sou de opinião que se errou - e muito - na frente económica. Muito resumidamente, o país foi confrontado em meados dos anos 90 com a necessidade imperiosa de acelerar a transformação da sua estrutura produtiva, caso contrário ficaria condenado a competir directamente com outros que beneficiam de uma mão de obra incomparavelmente mais barata.

Assim sendo, a pergunta que eu faço é esta: o estado português ajudou de facto esse processo de requalificação das empresas e dos trabalhadores? E a minha resposta é: muito pouco.

De modo que a concentração do debate na política financeira - onde. a meu ver, se fez o que razoavelmente poderia ser feito - desvia as nossas atenções da política económica - onde pouco se fez e ainda tanto resta por fazer.
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29.3.13

Mudança da política de resgate na UE?

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Quando os bancos gregos, irlandeses e portugueses enfrentaram dificuldades era preciso protegê-los porque deviam muito dinheiro a bancos alemães, franceses e austríacos.

Idem, pelas mesmíssimas razões, quando a crise ameaçou de insolvência alguns bancos italianos e espanhóis.

Quando os bancos alemães, franceses e austríacos reduziram significativamente a sua exposição à Grécia, avançou-se para um perdão de cerca de metade da dívida soberana grega, porque isso já não os afectaria.

No mesmíssimo dia em que isso foi decidido, a banca cipriota, muito exposta à dívida grega, ficou automaticamente insolvente apesar de, curiosamente, ter passado todos os stress tests anteriormente realizados.

O pedido de resgate de Chipres esperou quase 9 meses por uma resposta da UE.

Quando finalmente chegou, o bail-out passara a bail-in: em vez de uma penalização dos devedores, propunha-se uma penalização dos credores.

Alguns ingénuos saudaram esta inovação como uma mudança de política no sentido certo. Afinal, não é justo que o custo do reajustamento recaia inteiramente sobre os devedores, quando os credores são tão ou mais responsáveis.

Há aqui um completo equívoco, pois, na verdade, não ocorreu nenhuma mudança de política.

A política permanece inalterável, e pode ser assim caracterizada: quando a situação ameaça directamente os bancos do centro, os devedores são penalizados; quando a situação não ameaça directamente os bancos do centro, os credores são penalizados, pois assim os países do centro não terão que garantir o financiamento de emergência e o BCE não assumirá encargos adicionais.

Entendido?
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Mudar de política em relação à troika

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Pedro Lains perguntou certa vez porque raio é que a delegação da troika é instalada no Ritz de cada vez que vem a Lisboa.

Este comentário aparentemente anódino faz todo o sentido, e entendo que faz sentido explorar um pouco esta via de questionamento. Não sugiro que se deva hospedar a troika numa qualquer Pensão Estrela num bairro de má nota, mas parecer-me-ia bem levá-los para um hotel decente mas económico, como convém a um país a atravessar uma fase de grandes apertos.

Pergunto-me também porque se vai recolhê-los ao aeroporto e transportá-los para as reuniões em carros de luxo de alta cilindrada, quando uma ou - vá lá - duas viaturas militares fariam perfeitamente o serviço.

Depois, aposto que durante as reuniões há pausas para café acompanhado de biscoitinhos dinamarqueses. Da próxima vez, deveria eliminar-se a benesse e, quando eles perguntassem pelo cafezinho, ficariam a saber que os cortes em pessoal auxiliar determinaram a eliminação dessas mordomias. Quem tiver muita sede, poderá ir à casa de banho servir-se de água da torneira. Em alternativa, faz-se uma pausa para ir até ao café da esquina e cada um pagará a sua despesa.

O ar condicionado passaria também à história, dando-se como exemplo a inovação do Ministério da Agricultura, onde os funcionários foram convidados a tirar a gravata no Verão. E no Inverno? Traz-se de casa um casaquinho de malha e um cachecol, e está o caso resolvido.

Ao contrário do que alguns poderão estar a pensar, não estou a brincar. O domínio das técnicas de negociação é tanto mais indispensável quanto mais frágil for à partida a nossa posição. Criar situações de desconforto ao adversário, sobretudo se subtis e de algum modo justificáveis pelas circunstâncias colocam-no a ele numa situação psicologicamente desgastada. Isto não mata, mas mói.

Por último, faz-lhes ver que não estão perante gente submissa e que, portanto, terão que preparar-se para enfrentar desafios potencialmente desagradáveis. Mudar de atitude em relação à troika começa por coisas pequeninas como esta.

Muito mais haveria para dizer, mas isso fica para outro dia. Fim da primeira lição.
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27.3.13

Bernstein: Inside Pop - The Rock Revolution

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6.3.13

Um grande salto em frente, dois grandes saltos atrás

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Do meu artigo de ontem no Negócios:
Não podemos pôr de parte a hipótese de se acentuar na União Europeia a presente deriva de degradação da convivência civilizada entre os povos e de liquidação definitiva de qualquer conceito de futuro mobilizador para os seus cidadãos. É por tudo isso que nós, os bons Europeus –, ou seja, aqueles que concebem a Europa antes de mais como um projecto de civilização – temos de reconhecer que, a persistir o curso actual, talvez seja necessário que ao grande salto em frente da criação da moeda única possam ter de seguir-se dois grandes saltos atrás, ou seja, não só o desmantelamento dessa moeda única como a anulação de uma parte das regras do Mercado Único que a precedeu.

Não há uma só maneira de os povos europeus conviverem e cooperarem entre si em razoável harmonia. Nos quase três milénios que leva de existência como instância geopolítica relevante, a Europa conheceu já múltiplas configurações, alternando períodos de aproximação entre os estados constituintes com outros de afastamento. Num horizonte longo, a presente UE deve ser encarada como apenas um dos arranjos institucionais possíveis, cuja principal carta de recomendação foi a sua orientação demo-liberal. Falhando essa inspiração distintiva, não há razão para que seja considerada preferível a arranjos mais estreitos, no limite pouco mais que zonas de comércio livre e cooperação política limitada.

Nós, os bons Europeus, deveremos por isso prepararmo-nos para reconsiderar radicalmente a posição de Portugal no contexto da Europa, quem sabe se começando por dar à expressão "países periféricos" um sentido positivo. Com tanto país a ser deitado fora da UE como carga imprestável, talvez se consiga fazer algumas alianças interessantes, deixando a Alemanha entretida com os seus estados tributários. 
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5.3.13

Forma de vida

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À conversa com o Abel Barros Baptista sobre o livro de Daniel Kahneman "Pensar, Depressa e Devagar", num podcast que pode ser ouvido aqui.
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1.3.13

O homem sem qualidades

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O Público online cita hoje com algum detalhe algumas declarações proferidas por Passos Coelho na Faculdade de Direito Lisboa, convenientemente rodeado de gorilas e jotinhas:

“A Europa construiu[-se] também como um dos exemplos de Estado social avançado, em que as pessoas adquiriram níveis de protecção contra riscos sociais e económicos muitos elevados”, mas (…) essas protecções foram adquiridas durante “um tempo em que a Europa crescia a um ritmo bastante vigoroso e em que a nossa demografia ajudava nesse crescimento”. Neste momento, lembrou, nenhuma das duas premissas se verifica e por isso levantam-se as perguntas: “Como é que podemos assegurar que os recursos estão disponíveis para aqueles que precisam mais e como é que temos a certeza de que os impostos que os cidadãos pagam e que depois o Estado redistribui correspondem a uma correcção das injustiças na distribuição do rendimento?”

Habituámo-nos, talvez precipitadamente, a encarar Passos Coelho como alguém que mente compulsivamente, desdizendo sistematicamente o que afirmou na véspera para pouco depois regressar à versão original, tudo isso sem revelar, como o próprio reconhece, o mínimo embaraço sempre que é apanhado em falso.

Este comportamento persistente recorda-me irresistivelmente as palavras que o então treinador do Benfica Graham Soughness pronunciou a respeito de Vale de Azevedo: “This man is a dangerous man. He lies while looking at you in the eye.”

Acontece que Passos não é Azevedo – este último um evidente psicopata que acredita piamente nas falsidades que profere. Não vislumbro um desequilíbrio psicológico no Primeiro-ministro; pelo contrário, parecem-me evidentes as suas carências cognitivas.

Passos Coelho é, por um lado, um penteado piroso, um olho de carneiro mal morto e uma voz bem colocada; por outro, uma suprema empáfia suportada por uma capacidade sintáxica de produzir frases ordenadas sem correspondência numa semântica susceptível de produzir qualquer sentido.

É manifesto exagero acreditar-se que Passos mente, visto que isso implicaria reconhecer que faz alguma ideia do que diz.

Passos adquiriu uma longa prática de décadas a discursar para patetas da JSD. Ora, o cerne desse tipo de intervenção discursiva consiste em jamais correr o risco de ficar sem nada para dizer, mesmo que – ou até de preferência quando – o que se diga seja nada. A palavra, nessas circunstâncias, não passa da negação do silêncio, e isso apenas e só na medida em que ela confere um poder sobre quem não foi bafejado por uma idêntica capacidade para debitar uma grande quantidade de inanidades durante um longo período de tempo.

O cérebro de Passos Coelho é uma das mais perfeitas máquinas de registar frases feitas e lugares comuns e de reproduzi-las sequencialmente nas mais variadas circunstâncias, certo de que disporá sempre de uma audiência que murmurará, embevecida: “Não percebi nada, mas que bem ele fala!”

Estamos, pois, conforme prefiram, perante um génio imitativo ou um idiota reprodutivo.
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28.2.13

Legitimidade

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Apesar das bizarras circunstâncias em que ocorreram, ninguém duvida que as legislativas de 2011 decorreram no respeito pela legalidade. Isto aqui não é a Venezuela, tampouco a Florida em 2004.

Vai daí, Passos Coelho deduz que não pode ser questionada a legitimidade do seu governo para fazer o que lhe der na real gana. Não espanta que o Primeiro-ministro ignore a diferença entre legalidade e legitimidade; porém, a avaliar pelo que por aí se escreve, dir-se-ia que o desconhecimento é generalizado.

Já se sabe que o calcanhar de Aquiles da democracia representativa é a latitude teoricamente vastíssima de que os governantes dispõem para interpretar o seu mandato. Um representante não é, nem pode ser, um mero “comissário” (bela expressão inventada em 1917 por Trotsky num momento de singular inspiração), antes beneficia de considerável e indispensável autonomia no desempenho das suas funções políticas.

Terá essa autonomia limites? Quem se der ao trabalho de ouvir os primeiros cinco minutos do debate televisivo que em 2011 opôs Passos Coelho a Sócrates sentir-se-á pelo menos inclinado a achar que sim, tal o contraste entre o que na altura jurou e o que pouco depois se decidiu a fazer.

Contra isto argumentam muitos que os políticos sempre prometem coisas que sabem ser impossíveis, e que, por conseguinte, tudo isto deverá de algum modo ser considerado normal. Mas eu desafio qualquer um a mostrar-me que alguma vez se tenha visto, em Portugal ou em qualquer outra democracia que se respeite, algo que sequer se aproxime desta total, sistemática e – pior ainda – crescente divergência da acção governativa em relação às ideias e ao programa anunciados antes e durante a campanha eleitoral.

E é aqui que surge o problema da legitimidade como algo bem distinto da mera legalidade. Num certo sentido, a legitimidade está muito para além da legalidade, na medida em que é o seu sustentáculo derradeiro.

Nas palavras de Max Weber, a legitimidade é “a razão profunda pela qual, em qualquer sociedade estável e organizada, há governantes e governados, e por que a relação entre uns e outros se estabelece como uma relação entre o direito, por parte de uns, de governar, e o dever, por parte dos outros, de obedecer.”

Ora a legitimidade assenta, já Locke o afirmava, no consentimento dos governados, por sua vez dependente da convicção de que quem exerce o poder o faz no entendimento, mesmo que discutível, de que se esforça o mais que pode e sabe por garantir o bem-estar colectivo.

Mas haverá, nos dias que correm, alguém minimamente atento ao que se diz nos mais variados círculos da sociedade portuguesa que ainda conserve a ilusão de que essa convicção, esse consentimento e, logo, essa legitimidade subsistem?

Quem sabe se o esclarecimento definitivo desta dúvida não chegará já no dia 2 de Março?
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26.2.13

A derrota do pró-cônsul

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Monti começou razoavelmente, negociando austeridade moderada (por comparação com a imposta noutros países) a troco da união bancária europeia e da flexibilização da atitude do BCE. Depois, Merkel adiou para 2014 os compromissos assumidos e Monti ficou com uma mão cheia de nada, a desempenhar o papel de pró-cônsul da Germânia no Lácio.

Que poderiamos esperar que o eleitorado italiano fizesse? Submeter-se de boa mente às sevícias teutónicas - ou resistir? Ao contrário doutros, a Itália pode credivelmente ameaçar abandonar o euro - um caminho duro e arriscado, mas ainda assim possível. Faz todo o sentido que use a capacidade negocial de que dispõe.

Tecnocratas bem comportados como Monti, mas insensíveis às consequências políticas e sociais dos arranjos financeiros que patrocinam, não levam a Itália para lado nenhum. Bersanni, uma outra variante de político "bem-comportado", apenas se propunha dar uma caução de esquerda civilizada e responsável à austeridade sem fim à vista.

Neste contexto, estava aberto o caminho para o voto de protesto, não só contra a austeridade, mas também contra o euro, o défice democrático europeu e a colonização financeira promovida pela Alemanha. Eleger um cobrador de fraque teleguiado a partir de Berlim não é uma perspectiva exaltante.

Já se viu que os novos senhores da Europa só entendem a linguagem da força. Caos político na Itália e na Espanha é a melhor coisa (ou, digamos, a menos má) que poderiamos esperar nas presentes circunstâncias.
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25.2.13

Fui eu que escrevi isto?

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Originariamente publicado neste blogue sob o título "Uma pessoa vulgar", em 19.10.11:

"Ninguém podia imaginar uma coisa destas. Um senhor tão calmo, tão sossegado, que falava sempre tão bem aos vizinhos... Quer dizer, ele não era de muitas falas, mas cumprimentava sempre toda a gente."

"Uma vez assustei-me porque me cruzei com ele nas escadas à noite com as luzes apagadas e ele vinha muito silencioso - ele nunca faz barulho nenhum - e só o vi quando quase choquei com ele."

"Não era uma pessoa muito alegre e expansiva, lá isso não. Via-o sempre muito metido consigo mesmo, a pensar nas suas coisas. Mas a gente sabe lá o que vai na cabeça das pessoas."

"Para dizer a verdade, eu cá continuo a não acreditar que ele tenha feito as coisas que se diz que ele fez. Ou, se fez, foi porque alguém o empurrou para fazer isso. Eu cá não acredito."

"Eu até disse à minha comadre: 'Era um bom partido para a sua Amelinha'. 'Jesus, valha-nos Deus!', disse-me ela, e afinal tinha razão."

"Tem aquela fala monocórdica e a gente sentia receio de conversar com ele, mas, tirando isso, é uma pessoa como as outras."

"Uma pessoa muito normal em tudo, muito amigo do seu amigo, com uma maneira de ser muita própria. As pessoas se calhar não acreditam, mas ele uma vez estava tão bem disposto que até o vi a rir-se."

"Uma vez houve um incêndio aqui no prédio que nunca se soube como começou. Ele ficou sempre muito calmo, mas não ajudou a apagá-lo, só olhou."
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Aforismos tempestivos de Friedrich Nietzsche

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Quem luta com monstros deve ver se, ao fazê-lo, não se torna também um monstro. E quando olhas durante muito tempo para um abismo, também o abismo olha para dentro de ti.

A objecção, a injúria, a alegre desconfiança, o gozo de troça são sinais de saúde; tudo o que é incondicionado releva da patologia.

A loucura é rara nos indivíduos, mas é a regra nos grupos, partidos, povos e épocas.

Não se odeia quando se considera alguém inferior, mas somente quando se o considera igual ou superior.

“Ele desagrada-me” “Porquê?” “Não estou à altura dele.” Já alguma vez alguém respondeu assim?

(Extraídos do Quarto Capítulo de Para Além do Bem e do Mal, Ed. Relógio d’Água)
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22.2.13

Direito à revolta e liberdade de expressão



No ano lectivo de 1969-70 foi a academia portuguesa varrida por uma vaga de contestação que ainda não vi relatada em qualquer livro de história sobre a época. Consistia o movimento na iniciativa que muitos estudantes de várias escolas tomaram de questionarem de viva voz o que os mestres lhes ensinavam, designadamente no que tocava aos pressupostos ideológicos e políticos subjacentes a esse saber.

Descontando a surpresa ou mesmo o choque de que uma coisa assim pudesse ter lugar num país que, para todos os efeitos práticos, vivia em ditadura, o debate processou-se durante algum tempo num clima notavelmente civilizado, apenas ameaçado pelas pressões que o governo exercia sobre as direcções académicas para que pusessem cobro à subversão.

Foi então que, na Faculdade de Direito de Lisboa, alguém, que eu aliás muito bem conhecia dos bancos do Liceu, introduziu um estilo novo e mais excitante de contestação consistente em insultar os mestres e arremessar-lhes tomates e ovos quando o debate não evoluía a seu contento. Como talvez fosse de esperar naquele contexto, o estilo pegou, alastrou a outras escolas e motivou uma escalada de violência que não mais recuou até ao 25 de Abril.

Consumada a revolução, os debates em assembleias populares começaram por decorrer num geral ambiente de fraternidade e respeito pelas opiniões alheias, que todavia não durou mais que escassas semanas. Logo que se tratou de eleger direcções de sindicatos, de comissões de trabalhadores ou de comissões de moradores, os comunistas e alguns grupos esquerdistas recorreram prontamente ao método de intimidação dos opositores, muitas vezes coadjuvados por membros do MFA que acorriam às assembleias para impor respeito.

Os acontecimentos desta semana no ISCTE trouxeram-me de imediato à memória essas recordações ao mesmo tempo que me confirmam na ideia de que comunistas e esquerdistas pouco ou nada evoluíram desde então.

Como tentei mostrar, aprendi muito novo que a afirmação do nosso direito à liberdade de expressão facilmente entra em confronto com a liberdade de expressão dos outros. Ao contrário do que à primeira vista se poderia pensar, a liberdade de expressão é um bem rival, na medida em que os antagonistas entre si disputam o tempo e o espaço de que dispõem para se manifestarem perante uma dada audiência recorrendo a um determinado medium.

É evidente que Relvas beneficia da vantagem de poder exprimir-se recorrendo a meios muito mais poderosos do que aqueles que estão ao alcance do comum cidadão. Vai daí, os anónimos humilhados e ofendidos sentem-se no direito de silenciar o ministro numa situação particular sob o pretexto de que ele tem outras oportunidades para falar.

Mas a liberdade de expressão não pode admitir tais entorses. Relvas não tem apenas um direito genérico e abstracto a exprimir-se, ele tem o direito a exprimir-se onde e quando entender, especialmente quando foi expressamente convidado a fazê-lo. De outro modo, um direito genérico poderia ser sempre negado em condições particulares – estratégia que, de resto, sempre foi a aplicada nos países comunistas.

Entendo a revolta de quem é diariamente espezinhado da forma mais cruel por este governo, carecendo de meios para se defender, e entendo também que é dessa violência objectiva que por fim emerge a violência subjectiva de grupos mais ou menos organizados. Em última análise, a responsabilidade do que se está a passar é, pois, de Passos, Relvas e Gaspar, ou seja, da troika interna.

Mas isso não me fará aplaudir a utilização da violência, pelo menos enquanto houver formas civilizadas de manifestar por muitos e vários meios a nossa oposição a este revoltante estado de coisas.

Tudo poderia ser aceitável nas manifestações das últimas semanas – as manifestações, os discursos inflamados, as canções, mesmo os insultos, por descabidos que sejam – tudo, menos as intimidações físicas e a negação do direito à palavra dos adversários. No que toca aos insultos, a única coisa que me desagrada é que sejam tantas vezes absurdos (“fascistas!” “bandidos!” “ladrões”) quando tantos bem mais contundentes seriam na ocasião apropriados.

Se os excessos não forem atalhados a tempo, temo bem que a resistência popular vá por mau caminho.