12.9.06

As imagens e as coisas



Quem por acaso deparasse com aquelas imagens na televisão fora de contexto e sem escutar o comentário, poderia tomá-las pelo trailer de um novo filme a estrear em breve ou por um spot publicitário de mau gosto, porque tendemos a encaixar as nossas percepções no quadro que parece ser-lhes mais apropriado.

O belo horrível não comporta em si mesmo qualquer novidade: há séculos que entrou nos nossos hábitos de sofisticados consumidores de cultura. Mas atirar realmente aviões contra arranha-céus parece ideia de uma perversa alma de artista demente. Daí a irresistível tentação de mirar uma e outra vez aquelas imagens, de as olharmos incansavelmente como se a cada olhar descobríssemos algo que ainda não víramos, como se dessa viciada contemplação esperássemos a emergência de algum oculto significado que teima em escapar-nos.

O efeito hipnótico dessas imagens oculta mais do que revela. Algumas pessoas declaram-se ofendidas por uma banda desenhada, ao ilustrar o momento do impacto, recorrer a onomatopeias como "Blam!" ou "R-r-rumble!" para sugerir o estrondo do impacto. Uma coisa vos garanto: ninguém que lá não tenha estado consegue imaginar a fúria destruidora daquele som, os ferros a guincharem, os vidros a projectarem-se, o fogo a irromper sem aviso. Para os que não morreram imediatamente, esse foi o primeiro indício cruel de que a sua hora chegara.

Acredito que tanto o heroísmo militar como a indiferença perante os efeitos da guerra se alimentam em grande parte da falta de imaginação. A morte é concebida na figuração a que nos habituaram os velhos westerns: um tipo apanha um tiro, grita "ai, ai", e cai morto. Se tudo fosse assim tão fácil, tão limpo, tão... sem dor...

É preciso voltar às descrições da Ilíada para nos recordarmos que a guerra é um pedaço de ferro a penetrar num pedaço de carne, olhos vazados, miolos esparramados, fígados perfurados, vértebras esmigalhadas. Tudo isso, e muito mais, sucedeu nesse dia, numa escala dificilmente concebível, a gente simples que, como todos os dias, se preparava para começar uma jornada de honesto trabalho.

Depois, houve os outros, a imensa maioria, que, não tendo perecido de imediato, sofreu na pele a tortura durante horas - senão dias para os que ficaram sepultados sob os escombros. Lembremos os que ficaram presos nos elevadores, os que, emparedados nos seus escritórios, assistiram impotentes ao avanço das chamas, os que, incapazes de resistir por mais tempo ao sofrimento, encontraram breves segundos de alívio saltando pelas janelas para a morte certa, os que morreram queimados pelo fogo, intoxicados pelo fumo, asfixiados pela poeira.

Ninguém poderia descrever a imensa concentração de dor que ocorreu naquele dia e naquele lugar, nem que para isso gastasse toda a sua vida.

Boa noite, e bons sonhos.

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