7.11.03

Em louvor da gripe

Uma gripe inopinada abriu um brusco hiato no meu dia a dia, essa corrente contínua de busy-ness impositivo a que bravamente me esforço por resistir para conquistar um espaço que seja meu.

Durante dois dias e meio vegetei num estado de semi-inconsciência não inteiramente desagradável. Subitamente, sou dono do meu tempo sem ter sequer que lutar por isso: tudo o que tenho a fazer é deixar-me levar pelos acontecimentos e soltar a fantasia, seguindo o capricho dos meus pensamentos para onde eles me quiserem levar.

E assim sou levado a pensar que a gripe, essa doença amiga entre todas, nunca foi louvada como merece. Bem vistas as coisas, faz muito mais bem que mal.

Da infância, traz-me recordações do Vick-Vaporub ternamente esfregado no peito e das costas. Mais tarde, na adolescência, recorda-me a ambicionada pausa na corveia quotidiana das aulas, o descontraido remanso de manhãs e tardes passadas a ouvir na rádio programas tolos, apresentadores tolos e canções não menos tolas de cuja existência não suspeitara sequer, ou então a reler pela enésima vez os meus Tintins favoritos.

Com o passar da idade, parece-me que se espaçaram as suas visitas amigas. Mas a gripe nunca deixa de, forçando-nos à inactividade, convidar-nos à sabedoria. Algo especialmente bem-vindo quando, adultos convictos da importância dos nossos afazeres profissionais, somos subitamente confrontados com a verdade indesmentí­vel de que não só o mundo continua perfeitamente a girar sem nós, como também nós passamos perfeitamente sem ele, numa espécie de antevisão do lado mais positivo da morte.

A gripe é uma forma especial de preguiça que tem a vantagem de não nos envergonhar perante os outros: quem terá o mau gosto de criticar-nos por estarmos doentes? Mas é uma preguiça intelectualmente mais produtiva, porque nos desperta a atenção para coisas a que usualmente não prestamos atenção, desde os ruidos da rua aos movimentos de entrada e saída no prédio denunciados pelas subidas e descidas dos elevadores. É uma oportunidade única para conversarmos com a mulher-a-dias, para conhecermos o carteiro, para sabermos como ocupam o seu tempo os filhos e o cão, para vermos a televisão à hora do almoço, para participarmos um pouco, enfim, das vidas de outros com quem habitualmente nos cruzamos demasiado de raspão.

Mas eis que, a pouco e pouco, recomecei a pedir os jornais e a espreitar a televisão. A internet teve que esperar mais um pouco, porque sempre dá mais trabalho. Quando, finalmente, volto à blogoesfera, entro em pânico, afligido tanto pela quantidade de posts que deixei de ler como pelos que deixei de escrever.

Acabou-se a boa vida!

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