De há uns tempos a este parte, tornou-se hábito justificar todas as políticas destinadas a reduzir os direitos de quem trabalha ou a favorecer os interesses de quem manda através do recurso ao imperioso argumento da competitividade externa.
«Nós até gostaríamos de reduzir a precaridade do trabalho, de aumentar o salário mínimo, de melhorar a segurança social, e por aí fora. Mas temos que ver que os países com os quais competimos, sejam eles asiáticos ou do leste europeu, não garentem benefícios equivalentes aos seus trabalhadores, de maneira que, ao fazê-lo, estaríamos a prejudicar a competitividade das nossas empresas, a afastar o capital estrangeiro e a criar condições para aumentar o desemprego em Portugal.» De modo que, embora o ministro Bagão Félix seja um adepto fervoroso da doutrina social da Igreja, é forçado a reconhecer com o coração destroçado que, na prática, ela não se encontra à altura dos acontecimentos. Se até o Papa se engana desta maneira, que haveremos nós de fazer?
Dou por mim às vezes a pensar se, neste contínuo processo de descida aos infernos (pode sempre aparecer um país com legislação laboral pior, e sabe Deus que alguns já a têm bem má), não surgirá um dia um economista a explicar que o melhor será mesmo restaurar a escravatura para assegurar o progresso do país.
«Impossível», dirão alguns optimistas, «toda a gente sabe que o esclavagismo era um regime menos produtivo do que o feudalismo, e este, por sua vez, menos eficiente do que o capitalismo. Foi por isso que o capitalismo triunfou, e este é um ponto em que toda a gente, marxistas incluídos, está de acordo.»
Mas imaginemos, por um instante, que um economista reputado conseguia provar o contrário, ou seja, que seria possível aumentar a produtividade instaurando o esclavagismo. Deveríamos nós seguir o seu conselho? E estaria o ministro Bagão Félix disponível para promulgar toda a legislação necessária?
Pois é, meus amigos, lamento muito informá-los, mas a verdade é que não só esse economista já apareceu, como inclusivamente a excelência da sua investigação foi há anos reconhecida e premiada com o prémio Nobel da Economia. Estou a referir-me a Robert W. Fogel, galardoado em 1993 conjuntamente com Douglas North.
Num conjunto de trabalhos memoráveis, de que se destacam Time on the Cross: The economics of negro slavery e Without Consent or Contract: The rise and fall of american slavery, Fogel demonstrou sem margem para dúvidas que, ao contrário do que muitas vezes se afirma, a escravatura era um regime de trabalho eficiente e rentável. Assim, segundo este autor, está demonstrado que o crescimento económico e tecnológico é perfeitamente possível, mesmo no interior de uma ordem sócio-económica profundamente imoral. Era costume ensinar-se nas faculdades de economia que a escravatura terminara porque constituía um entrave ao progresso, mas isso, pura e simplesmente, não é verdade: a abolição da escravatura resultou da determinação política de muita gente, impulsionada por factores de ordem diversíssima, entre os quais os éticos, para pôr termo à escravatura.
A lição de tudo isto é que a república dos economistas que actualmente vigora entre nós assenta numa combinação de falácias económicas, insensibilidade ética e fraude política. Não será altura de comprarmos o bilhete de regresso?
9.11.03
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